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A Buenos Aires do papa Francisco

Uma voz ressoava: “Não viemos protestar, viemos rezar, nesta praça, numa cidade que é uma ‘cidade aberta’, onde qualquer um pode entrar e escravizar. Todos os que aqui estamos a rezar também vamos pedir a Jesus a graça de não nos tornarmos distraídos. ‘Padre, que posso fazer contra a máfia?’ Rezar! Fere o coração de Deus. Se sabes algo, conta; não olhes para o outro lado, pode ser teu filho ou tua filha quem de um momento para o outro convertem em escravo. Podes ser tu.”

Era segunda-feira. A praça de maio, centro da vida política da Argentina, começara a encher-se para acompanhar o início do pontificado de Francisco. A Missão Católica montara uma tenda junto à grade que reserva uma parte da praça para a Casa Rosada, sede da presidência, e pusera-se a fazer batismos grátis.

Jorge Bergoglio vivia ali mesmo ao lado da Catedral Metropolitana de Buenos Aires. Dormia num quarto pequeno. Atendia num escritório simples, com dois cadeirões num lado, dois no outro. Oferecia um cadeirão a quem lá entrava e sentava-se num banquinho, muito atento. Gosta mais de ouvir do que de falar.

Foto Marcos Brindicci/Reuters

Naquela tarde, telefonara para o quiosque que há na Avenida Hipólito Yrigoyen, em frente à praça, a cancelar a entrega do La Nacion. Entregavam-lhe o jornal, conservador, de segunda a sábado - ao domingo ia ele lá buscá-lo, por volta das 5h30, antes de apanhar o autocarro 28 para Lugano, onde ia visitar doentes. Daniel del Regno, o filho do dono, até chorou ao ouvir a sua voz.

Buenos Aires é uma cidade imensa feita de ruas e avenidas longuíssimas. Quem não conduz não pode aspirar a melhor zona de residência do que aquele microcentro. Ali, na praça, de formato retangular, passam três linhas de metro. À volta, autocarros para qualquer ponto da cidade.

O sermão que ressoava na praça fora proferido em setembro de 2012. Dissera aquilo numa missa dedicada a vítimas de escravatura. Dedicava-se. Por elas, muitas vezes apanhava o autocarro número 126 e só saía cerca de uma hora depois na esquina da Rua Lacarra com a Avenida Diretório, onde se instalou uma organização não religiosa nascida no auge da crise económica de 2001.

“Falava muito com as vítimas”, contou-nos Gustavo Vera, líder da cooperativa La Alameda, que desde 2005 combate o tráfico de pessoas e o trabalho escravo. “Quando uma vítima estava muito angustiada, recebia-a imediatamente. Mudava a agenda, mesmo que tivesse um governador para receber. Solidarizava-se muito. Vi-o chorar várias vezes perante relatos tremendos.”

FotoDR

Não se limitava a consolá-las. Tentava arbitrar meios para facilitar a sua reinserção social. Levava o assunto para a praça pública. “As suas homilias sobre estes temas eram cada vez mais complexas”, recorda Gustavo. “Começou por fazer uma denúncia geral e foi aprofundando. Falou no suborno, na acumulação de capital, na lavagem de dinheiro, incorporou o narcotráfico.”

É um dos maiores atentados aos direitos humanos da Argentina atual. Na cave do edifício que a assembleia do bairro Parque Avellaneda ocupou em 2002, fazendo de um bar devoluto uma cantina social e centro cultural, Gustavo resume: “Há meio milhão de pessoas escravizadas. São angariadas com promessa de casa, comida, salário pago em dólares. Trabalham 15, 16, 17 horas por dia e dormem no mesmo sítio.”

O fenómeno predomina no ramo têxtil - “78% da indústria funciona com ateliers clandestinos, 90% dos quais com trabalhadores bolivianos”. Ocorre noutros setores da economia, que requerem mão de obra intensiva, como fruticultura, horticultura, calçado, construção civil, mais com argentinos.

“Façamos um instante de silêncio no nosso coração para recordar sete pessoas que trabalharam aqui em regime de escravatura”, pediu Bergoglio, há dois anos, noutra missa dedicada a vítimas de trabalho escravo. “Harry Rodríguez Palma tinha cinco anos; Willfredo Quispe Mendoza 15 anos; Juana Vilma Quispe 25 anos e um filho no ventre cujo nome só Deus conhece; Elías Carabajal Quispe dez anos; Rodrigo Quispe Carabajal quatro anos e Luis Quispe quatro anos.”

Olga Cruz acorreu a essa fábrica clandestina, no bairro de Caballito, mal a notícia do incêndio chegou à cooperativa La Alameda. Fez-se passar por familiar das vítimas. A grávida e as crianças estavam num andar, dezenas de trabalhadores noutro. A música estava altíssima, para que trabalhassem sem falar. Não ouviram os gritos.

Foto Parroquia Virgen de Caacupe/AFP

Fora a primeira a falar na conferência de imprensa. Foi encarada como traidora pela sua comunidade, acusada de mentir, ameaçada de morte. Ainda é. O agora Papa Francisco incentivava-a a continuar a luta.“O padre dizia-me sempre: ‘A verdade chega tarde. A mentira é mais rápida.’ Não tenhas medo, nada vai acontecer. Eu sempre acreditei nele.”

Nunca conhecera “um padre tão simples”. Se andasse por ali à hora do almoço, sentava-se na cantina, “comia o que havia”. Um dia, depois da missa, encheu-se de coragem e pediu-lhe que batizasse as filhas. “Será uma honra”, sorriu. Nessa tarde ou na seguinte, ele pegou na sua agenda e telefonou-lhe. Ainda agora lhe parece espantoso. Uma filha tinha oito anos e a outra 13 e nenhuma fizera o primeiro sacramento. Para padrinhos, ela escolhera três ateus e uma judia. “Ele disse-me: ‘Não há problema, se essas são as pessoas que podes escolher, o que é importante é que sejam boas, que acompanhem as tuas filhas.’ Ele disse-me: ‘Vamos fazer isto simples, minha filha’.” E fizeram.

Juntaram-se na cantina social - um salão com um balcão e uma série de mesas de plástico branco ou metal preto, por cima dos escritórios da cooperativa. Ele pediu uma mesa, um recipiente transparente com água, uma toalha branca. E fez o sermão mais “bonito” que Olga alguma vez ouviu.

A mulher, de 37 anos, pele morena, cabelos negros, muito lisos reproduz o que a sua memória reteve do que então disse o cardeal: “Não é necessário que venham à igreja. Onde precisam de mim, eu tenho de estar.” Pediu aos padrinhos que ficassem atentos às afilhadas, que as acompanhassem. “Não importa a religião, não se pode exigir que os outros sejam sempre da mesma religião.”

FotoRicardo Gomez/Reuters

Olga viera de Sucre, na Bolívia, em 2000, com o marido, Zenón, e duas crianças. Trabalhara sem receber durante três meses. Nessa altura, o marido ganhava 10 a 12 pesos por dia (pouco mais de 1,5 euros) e com isso tinham de pagar a renda e de comprar comida. “Foi muito feio.” Só conseguiam comprar massa ou arroz. Em 2001, grávida, com os dois filhos, ia pedir comida às igrejas de Buenos Aires. “A crise era tão grande que tinha de fazer fila às 10h. Quem tinha mais força empurrava. Um dia, não consegui.”

Sente-se bem. Tem os três filhos a estudar. Trabalha na cooperativa La Alameda - há um atelier de costura no piso superior. Continua a infiltrar-se em fábricas clandestinas e em plantações agrícolas para denunciar trabalho infantil e trabalho escravo. “Gostava que as pessoas, quando fazem as suas compras, se perguntassem por que é que algumas coisas são tão baratas.” Há que atuar em várias frentes, não apenas junto dos costureiros. “O padre diz que há que caminhar devagar para não cair.”

O tráfico de pessoas e a exploração laboral preocupam-no tanto que falou nisso com a Presidente da
Argentina, Cristina Kirchner, a primeira chefe de Estado que recebeu, logo na terça-feira, ainda na casa de Santa Marta, o alojamento dos prelados que visitam o Vaticano, onde ficaria até estarem prontos os seus aposentos, no Palácio Apostólico, “demasiado grandes” para o seu gosto.

Não têm sido amistosas as relações entre ambos. “Os Kirchner desenvolveram conflitos com os vários poderes autónomos do Estado e um deles é a Igreja”, elucida o analista político Marcos Novaro. “Lidam mal com a crítica. Quem os critica é contra a distribuição de riqueza, é de direita, é golpista.”

Bergoglio sempre se preocupou com os mais pobres. Durante a crise de 2001, escreveu um documento a bradar por um compromisso coletivo de luta pela “equidade social” e “pela justa distribuição do rendimento”. Nada daquilo contradiz o programa que, volvidos dois anos, Néstor Kirchner apresentou. Kirchner assumiu a presidência em 2003 com a promessa de dar primazia à educação, à saúde, à justiça e à igualdade. Volvido um ano, não apreciou a homilia no Tedeum, a cerimónia anual que assinala a revolução contra Espanha, na qual o cardeal criticou o “exibicionismo” e os “anúncios estridentes”dos governantes.

Foto

No final do ano, Bergoglio tornou a fazer um sermão difícil de digerir, dessa vez sobre o incêndio que provocou 194 mortos na discoteca República Cromañon. Em 2005, o casal Kirchner não apareceu na catedral para o Tedeum. A partir daí, passou a celebrar a data em várias províncias no interior do país.

Pouco depois de ascender à presidência, em 2007, Cristina recebeu os líderes do episcopado. Quando quis aumentar a tributação das grandes produções agrícolas, insurgiram-se contra ela os grandes proprietários de terras. Bergoglio pediu-lhe que tivesse “um gesto de grandeza” no sentido do diálogo.

Repetia críticas feitas aos três presidentes anteriores aos Kirchner. Pedia diálogo, luta contra a corrupção, contra a pobreza. “A dívida social é imoral, injusta e ilegítima”, discursou na televisão, em 2009. “A sua maior imoralidade reside no facto de que isso acontece numa nação com razões objetivas para evitar e corrigir tais danos, mas que, lamentavelmente, parece optar por agravar ainda mais a desigualdade.”

A Presidente recusa esse género de reparos. A taxa de pobreza caiu de 26,9% para 21,9% entre 2007 e 2011. Ao mesmo tempo, a indigência passou de 8,1 para 5,4. Contas apresentadas pelo Observatório da Divisa Social da Universidade Católica Argentina, com base num estudo financiado pelo Banco da Galiza e pelo jornal La Nacion. Ninguém via números tão baixos desde que a economia estoirou, atirando a pobreza para os 45,4% e a indigência para os 20,9.

Os opositores desvalorizam tais conquistas. São atribuíveis a programas de transferência de rendimento do Estado para as famílias criados pelo Governo em 2009, como, por exemplo, o abono de família. “Não têm por base a educação e o emprego”, aponta Marcos Novaro. Acusam Cristina de ter desperdiçado um período de ouro, impulsionado pelas exportações de matérias-primas.

Foto Enrique Marcarian/Reuters

O maior choque entre o cardeal e a Presidente aconteceu durante o processo que conduziu ao casamento entre pessoas do mesmo sexo. Pouco antes da aprovação da lei, em julho de 2010, tornou-se pública uma carta que escrevera às monjas carmelitas a qualificar a proposta legislativa de “avanço do Diabo” e a convocá-las para uma “guerra de Deus”. Bergoglio tivera duas reuniões com a secretaria da diversidade da Federação de Lésbicas, Gays, Bissexuais e Trans. “Achava que se tinha de dar alguns direitos civis, mas que o casamento era a união entre homem e mulher”, recordou-nos o presidente daquela organização, Esteban Paulón. Não iria pronunciar-se em público. Talvez pensasse que a ideia morreria no debate, como já aconteceu em muitos países. “Quando foi aprovada na câmara de deputados, percebeu que podia ser aprovada no senado. Escreveu a carta, que começou a ser lida, aos domingos, nas igrejas.”

No final, contou ainda, em reuniões que manteve com membros do coletivo da diversidade, Bergoglio pediu desculpa. Nunca o fez em público. O que ficou para a História foi “um discurso muito radicalizado, muito dissociado do da sociedade argentina”. “Ele tem estado muito próximo dos pobres, mas uma coisa são os direitos dos pobres e outra são os das mulheres e os das minorias sexuais”, observa. “Há que ver agora como gere a agenda de género e a agenda da diversidade.”

Tudo isso parece ter ficado lá atrás. Dir-se-ia que Buenos Aires vive o ambiente de um mundial de futebol.
Na praça de maio, até se ouve dizer: “Ganhámos! Ganhámos ao Brasil!” Ali perto, na rua Peru, no Buenos Aires Clube, como que indiferentes a tudo isso, casais homossexuais dançavam milonga.

FotoDR

Emma de Garibaldi foi ver como está o lugar onde nasceu e viveu Bergoglio até aos 21 anos. Não se atreveu a tocar à campainha da casa que há 35 anos é morada de Marta Romano, doméstica, e do marido, Arturo, docente da Universidade de Buenos Aires. Ficou a admirar a fachada. “Está diferente.”

O número 531 da Rua Membrillar ganhou um andar. Em parte revestido a mármore escuro, tem uma varanda que cruza três janelas. Só no pátio interior se conserva parte do que foi a intimidade da família Bergoglio. O alpendre, à sombra do qual se sentava a ler ou a ouvir música, ainda lá está. O alpendre, as grades das janelas de baixo e a escada que os levava ao terraço.

Marta olha para as escadas que são suas e emociona-se só de pensar em quem as subiu e desceu. Desde que o nome do novo Papa foi anunciado, a 12 de março, para gente à porta. Alguns atrevem-se a tocar à campainha. Pedem para ver a casa, oferecem donativos. Para resgatar sossego, Marta pôs um papel na janela: “Por favor, oferendas ou homenagens que se efetuem em honra do Santo Padre Francisco, deixem-nas na Paróquia Santa Francisca Javier Cabrini.”

Emma caminhava sobre sapatos de salto, dentro de um sobretudo clássico, com um exemplar da Bíblia dentro da carteira, um terço enrolado na mão esquerda. É uma mulher elegante, loura, de 66 anos. Ainda estava a digerir a notícia de que há um papa nascido e crescido ali, no seu bairro. “Os primos do meu marido, Miguel Angel e Juan Carlos, andaram no colégio com ele”, dizia, radiosa. Jogavam futebol na praceta da Rua Membrillar com a Rua Bilbao, que o tempo transformou num parque infantil. Jogavam à tarde, depois das aulas. “É uma história linda, linda!”

Ficou-lhe o gosto pelo futebol. O Papa Francisco é o mais célebre adepto do San Lorenzo, clube fundado pelo padre Lorenzo Massa em 1908. Ouvia os relatos do “seu” “Ciclone”, um dos cinco grandes da Argentina, pela rádio - os jogos são transmitidos pela televisão pública, mas ele não tinha televisor.

FotoDR

Já lhe fizeram uma homenagem. Têm um equipamento especial com o seu rosto. Se os ouvir agora, deparar-se-á com um novo cântico: “Borom bom bom, borom, bom, bom, el nuevo Papa es del Ciclón.”

Não jogava como o irmão mais novo, Oscar. Tinha outros interesses. Ganhou grande gosto pela leitura. Apreciava poesia (Friedrich Hölderlin), literatura italiana (Dante Alighieri, Alessandro Manzoni), literatura universal (Fiódor Dostoievski, Leopoldo Marechal, Jorge Luis Borges). Certo dia, convidou Borges a dar um seminário de literatura no Colégio da Imaculada Conceição de Santa Fé, onde deu aulas entre 1964 e 1965. “Tinha a genialidade de falar de qualquer coisa”, comentou com Sergio Rubín e Francesca Ambrogetti, autores da biografia El Jesuita.

Flores já não é só um bairro de classe média, localizado no centro oeste de Buenos Aires. É a geografia de infância do Papa. O governador de Buenos Aires, Mauricio Macri, já está a planear um “Papa tour”, que isso de ter olho para o negócio não é exclusivo dos vendedores ambulantes que invadiram a Praça de maio.

Está tudo a curta distância. Caminhando uns metros, virando à direita na Avenida Diretório, o “seu” jardim infantil. Foi ali que se preparou para a primeira comunhão. Ainda vinha tomar chá com as irmãs e saudar os miúdos que correm pelos corredores do colégio de Nossa Senhora da Misericórdia. Tomava o seu malte sem açúcar, levantava-se, lavava a chávena e punha-a a escorrer. Frequentou a primária cinco quarteirões abaixo, no Colégio Cerviño. O seu nome consta nos livros de atas, grossos, de folhas amarelecidas, que por estes dias jornalistas de todo o mundo pedem para ver. “Suficiente”, lê-se. Só se podia tirar um “suficiente” ou um “insuficiente”. Era naquela escola laica, da Rua Verela, que também estudavam os primos do já falecido marido de Emma.

Todos têm qualquer história para contar sobre o Papa, qualquer história. Pode ser uma história assim, pequenina, pequenina, como a de Emma. “Estou feliz porque o via caminhando por aí. A palavra certa é calcorrear. Ele calcorreava pelas luzes e pelas sombras de Buenos Aires.”

Foto Daniel Garcia/AFP

Ninguém tem uma história como a de Amélia Damonte. Agora, tem o rosto encorrilhado. Aos 12 anos, era uma das meninas mais bonitas da rua e ele entregou-lhe uma carta, dobrada, com o desenho de uma casinha, de paredes brancas, telhado vermelho, dizendo-lhe que lha compraria quando se casassem.

Os tempos não estavam para namoricos. O pai dela zangou-se. Como se atrevera a receber uma carta de um rapaz? A mãe repreendeu-a. Afinal, ela era “uma senhorita de bem”. E ela pediu-lhe logo que se afastasse. “Não te aproximes, Jorge. Se apareces e o meu pai sabe, eu mato-te.”

Apesar do gosto pelas letras, Bergoglio matriculou-se numa escola técnica, montada numa casa da Rua Goya, ali perto, no Bairro de Floresta. Integrou uma turma de 12 que se dedicava à Química. Ajudava os colegas a estudar. Às vezes, jogavam futebol num terreno que havia perto da Igreja Medalha Milagrosa.

Começou a trabalhar antes de terminar o secundário por ordem do pai, Mario, que via nisso um modo de cimentar a cultura do esforço. Os avós tinham passado as passas do Algarve em Piemonte, Norte de Itália. A Argentina estava aberta à imigração. Primeiro, viera o avô, Lorenzo. Depois, o pai.

O pai desembarcara em Buenos Aires em 1929 e começara a trabalhar numa empresa de pavimentos. Ganhara bom dinheiro, mas perdera-o quase todo durante a grande crise dos anos 1930. Fez-se ferroviário. Com sacrifício, ele e a mulher, Regina, doméstica, criavam os cinco filhos.

FotoDR

Só uma irmã, María Elena, 12 anos mais nova, está viva. Mora em Ituzaingó, nos arredores da cidade. Ia tendo um ataque quando soube do Papa. Não se atreve a ir a Roma. Acompanha as cerimónias pela televisão. Espera vê-lo no Rio de Janeiro, no Brasil, lá para julho, na Jornada Mundial da Juventude.

Por influência de uma avó, muito devota, Jorge dedicava-se à religião. Ela é que o ensinou a rezar. Contava-lhe muitas histórias de santos.

Numa tarde primaveril, em que combinara sair com a namorada, deu um salto à igreja de São José de Flores. Ajoelhou-se num confessionário de madeira, que ainda lá está, encravado entre uma imagem da Virgem de Lujan e outra de São José. Ao sair, estava convencido de que haveria de ser padre.

Tinha 17 anos. Terminou o namoro, mas guardou segredo. Só o revelou com pouco mais de 20 anos, depois de ter estado muito doente — sofreu uma infeção pulmonar tão grave que lhe tiraram parte de um pulmão. A mãe demorou algum tempo a aceitar aquela decisão, que lhe parecia desadequada para ele.

Cheira a crisântemos dentro da igreja. No altar, São José ao centro, Sagrado Coração de Jesus à esquerda, Sagrado Coração de Maria à direita.

Foto AFP

A Igreja de São José de Flores era um dos mais apreciados refúgios de Bergoglio. Três a quatro vezes por vez mês, cruzava aquela porta e sentava-se num dos bancos do fundo, a rezar. Por estes dias, muita gente vai ali confessar-se, inclusive gente que não se ajoelhava em frente a um padre há mais de 20 anos.

A catequista Norma Beatriz Biscarra foi lá agradecer a ascensão de Bergoglio a chefe supremo da Igreja Católica. “Todos os anos, no princípio do ano, ele mandava uma carta, como que a dar força.” Trabalha num lar de idosos. Quando se soube, houve grito coletivo. “O meu coração começou a bater muito forte. Não parava de dizer: ‘Que responsabilidade! Que responsabilidade!’”

A devota, de 46 anos, sente-se mais perto dele ali, onde ele recebeu a revelação. “Isto é uma bênção. A Igreja está a ser muito criticada, está muito desvalorizada. As pessoas estão sem fé. E nós, como membros da Igreja, temos de a levantar.” Bergoglio parece-lhe o homem certo para liderar essa tarefa.

Há quem não pense assim. Há quem o acuse de ser cúmplice da ditadura militar que houve entre 1976 e 1983.

Em abril de 2010, o jornalista Horacio Verbitsky começou a escrever sobre o assunto: Bergoglio teria sido cúmplice do sequestro de dois jesuítas ou, pelo menos, ter-lhes-ia omitindo auxílio. Nessa versão, descuidaria desafetos políticos, mesmo quando eram roubados filhos de desaparecidos.

Há dois anos, Bergoglio prestou declarações, como testemunha, no julgamento dos crimes cometidos na Escola Mecânica da Armada, uma unidade da Marinha da Argentina, centro clandestino de detenção e tortura.

FotoDR

Contou que, primeiro, advertiu-os do perigo, ofereceu-lhes abrigo e que, depois, fez diligências para os libertar. Por estes dias, o diário Clarín, conotado com a oposição, repescou parte do testemunho.

- Lembra-se do que fez perante esta notícia? - perguntou-lhe o juiz.
- Sim, comecei a mexer-me, a falar com sacerdotes que eu supunha terem acesso à polícia, às Forças Armadas e mexemo-nos em seguida.
- Obteve alguma informação diferente da que lhe dera o vizinho?
- Confirmaram-me o que tinha acontecido e que não se sabia onde estavam. Depois, começou a dizer-se que tinham sido efetivos da Marinha. Dois ou três dias depois, pelo menos a mim disseram-me.
- Deu conhecimento disso a outra hierarquia eclesiástica?
- A todos os membros da Companhia de Jesus, recorri e recorri ao arcebispado. Era um domingo. Segunda ou terça avisei o cardeal Aramburu, e também a nunciatura, o monsenhor Lahgi.
- Como soube que tinha sido a Marinha? - perguntou o advogado, Luis Zamora.
- Comentava-se, vox populi, quem ia averiguar apontava para aí.
- Isso motivou alguma diligência diferente?
- Sim. Reuni-me duas vezes com o comandante da Marinha, Massera. Da primeira vez, escutou-me e disse que ia averiguar. Disse-lhe que esses padres não tinham nada que ver com algo estranho. Como não respondeu, ao fim de um par de meses, pedi um segundo encontro, além de outras diligências. Já estava quase certo de que eles os tinham. O segundo encontro foi muito feio, não chegou aos dez
minutos. Eu disse-lhe: “Olhe, Massera, eu quero que apareçam.” Levantei-me e saí.

FotoDR

Agora, páginas inteiras nos jornais a negar qualquer ligação entre o Santo Padre e a ditadura. Graciela Fernández Meijide, por exemplo, esteve na Assembleia Permanente dos Direitos Humanos e não se lembra de alguma vez, durante os anos de ditadura, alguém o ter referido. Adolfo Pérez Esquivel, prémio Nobel da Paz, não o encara como cúmplice, diz “que lhe faltou coragem para acompanhar a luta”.

Antes de entrar no seminário, Bergoglio trabalhara no laboratório Hickethier-Bachmann. A sua chefe, Esther Balarinode Careaga, era uma militante comunista que a ditadura haveria de sumir. Incutira-lhe o gosto pela política - fazendo-o ler, inclusive o que publicava o Partido Comunista -, não a ideologia.

A 11 de março de 1958, Bergoglio entrara na Companhia de Jesus. No Seminário de Santiago do Chile estudara ciências clássicas, aprofundando História, Literatura, Latim, Grego. De volta a Buenos Aires, concentrara-se na Filosofi a e na Teologia. A 13 de dezembro de 1969 fora ordenado sacerdote.

Nos anos 1970, os mais difíceis que o país viveu nas últimas décadas, Bergoglio não estava no lado mais progressista da Igreja. “É preciso atender ao contexto”, explica-nos a historiadora Iris Schkolnik. “O país estava dividido. Havia a Guerra Fria. Acontecera a revolução cubana. Camilo Torres fora morto na Colômbia. Padres, universitários, operários pensavam que vinha aí a revolução.”

Dentro do movimento jesuíta, aparecem defensores da chamada Teologia da Libertação - a adaptação do Evangelho ao marxismo. “Havia muito medo que o comunismo avançasse”, salienta Iris. “O que fazer para impedir esse avanço? A Igreja proclama que o rico tem de partilhar, que o operário tem de ter bem-estar. Isso são ideias que ele segue e que estão de acordo com o peronismo.”

Foto DR

Por toda a cidade há cartazes com uma fotografia a preto e branco a dizer que Francisco é argentino e peronista. Desde Juan Perón, na Argentina, a realidade, diz Iris, não cabe nas categorias de direita e de esquerda. “Até 1973, os peronistas não podiam ir a eleições. O peronismo era proibido. Havia grupos peronistas com um nacionalismo herdado de grupos semifascistas. Agora, há um governo que, sendo peronista, é progressista. E um Papa que, sendo peronista, é anticasamento igualitário, antiaborto, anticomunista.”

Na terça-feira de madrugada, o Papa telefonou ao padre Alejandro Russo, reitor da catedral metropolitana e pediu-lhe que arranjasse maneira de fazer chegar a sua voz a quem estava na praça. Eram 3h30 quando a sua voz se fez ouvir, já não gravada, como ao longo de tantas horas anteriores, mas em direto. “Olá!” E de imediato, na multidão, alguém gritou: “Fala o padre Francisco!”

Palmas. Bandeiras a esvoaçar — do Vaticano, da Argentina, de San Lorenzo. A praça estava repleta, sobretudo de jovens que tinham começado a chegar na véspera. Inúmeros vendedores tinham-se posicionado nas ruas adjacentes com comes e bebes e recordações. Muitos estavam no chão, enrolados em sacos-cama, a aguardar o início da missa, agendado para as 5h30.

“Caminhemos todos juntos”, pediu o Papa. “Cuidemos uns dos outros. Não façam mal uns aos outros. Cuidem uns dos outros, não pratiquem o mal. Cuidem-se, cuidem da vida, cuidem da família, cuidem da natureza, cuidem das crianças, cuidem dos velhos. Deixem de lado a inveja e não arranquem o couro a ninguém.”

 

Ana Cristina Pereira
In Público, (Revista 2), 24.3.2013
02.04.13

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FotoBuenos Aires, 19.3.2013
CNS/Reuters/Marcos Brindicci

 

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