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Cair em si: a possibilidade de um encontro

O texto do Evangelho (Lc 15,1-32) começa com uma afirmação admirável: «os publicanos e os pecadores aproximavam-se todos de Jesus para o ouvirem... os fariseus e os escribas murmuravam entre si, dizendo: este homem acolhe os pecadores e come com eles.» Neste cenário, deciframos claramente quem é Jesus. Para Ele todos têm lugar, em todos existem imensas possibilidades de vida. Todos os homens e todas as mulheres são uma bênção para o mundo. Para manifestar esta realidade, Ele não hesita em romper com as fronteiras do instituído, colocando-se ao lado de quem está excluído por causa da sua história de vida; «para que todos tenham vida e a tenham em abundância» (Jo 10,10). Para isso, Ele veio ao mundo. Jesus é o Emanuel - o Deus connosco - mesmo connosco, com tudo o que vivemos e somos, com o que somos capazes e não somos capazes. Para Jesus, cada mulher e cada homem é um dom precioso que é preciso acolher, cuidar e amar até ao fim.

Na parábola que Jesus narra, o pai - figuração de Deus - não questiona o filho quando lhe pede a sua parte da herança. Dá-lha e deixa-o partir. Deus deixa-nos partir, fazermo-nos à vida, mesmo que isso implique deixar a sua casa. Deus respeita até ao fim as nossas decisões, os nossos percursos de vida. Deus não vê nos homens e nas mulheres marionetas de quem Ele pode dispor. Vê em cada mulher e em cada homem um ser amado e livre que pode determinar a sua vida e fazer-se ao caminho, seja ele qual for. Sem nos darmos conta, Ele acompanha-nos, sempre e incondicionalmente, mesmo, como diz parábola, quando esbanjamos os nossos bens numa vida dissoluta. O nosso comportamento, seja ele qual for, não condiciona a presença amorosa de Deus em cada um de nós. Vivendo o que vivemos somos sempre amados incondicionalmente por Deus.

O filho que parte, depois de ter gasto tudo, de estar a passar fome, que nem podia comer o que os porcos que guardava comiam, caiu em si. O que significará este momento na vida deste homem: cair em si? Atrevo-me a interpretar que este cair em si significa um momento de encontro consigo, com a sua história, com o seu percurso. E, possivelmente, um momento de acesso à sua consciência mais profunda. É um momento cheio do sopro do Espírito. Decide ir-se embora, ir ter com o pai, ainda que diminuindo-se: já não como filho, mas como um dos trabalhadores do pai. «Pai, pequei contra o céu e contra ti. Já não mereço ser chamado teu filho, mas trata-me como um dos teus trabalhadores.» E pôs-se a caminho. Ainda ele estava longe quando o pai o viu. O pai esperava-o. O que é admirável em Deus é que, mesmo antes de decidirmos voltar, Ele já está à nossa espera. Diria mais: acredito que a coragem para voltarmos vem desta espera permanente que Deus exerce face a cada um de nós. Há uma vigilância de Deus que nos habita. O Deus sempre na expectativa do encontro, da festa. Diz a parábola que o pai se encheu de compaixão, correu a lançar-se-lhe ao pescoço e cobriu-o de beijos. É impossível resistir a tanto amor! O filho, tal como tinha planeado, ainda tentou dizer que não vinha como filho... mas o pai pediu logo que se trouxesse a melhor túnica, o anel, as sandálias. José Tolentino Mendonça disse um dia sobre este momento da parábola: «a misericórdia interrompe o discurso.» Deus interrompe a nossa tentativa de nos diminuirmos, interrompe o reforçar da culpa. A culpa gera uma autoexclusão da vida. A culpa destrói a alegria; ameaça o futuro. A misericórdia, simbolizada neste abraço imenso do pai e nos muitos beijos, é cura profunda. Reparamos que é o corpo do filho que é envolvido pelo corpo do pai. Não há nenhuma palavra que possa ter a força deste gesto. O corpo, onde estavam inscritas as memórias destrutivas, é agora abraçado num amor imenso. O pai imprime neste corpo, de forma muito profunda, as marcas do amor. A vida é mesmo mais forte do que a morte! Para o pai, o importante era que o filho fizesse a experiência de que era muito amado, tal como era, com a sua história, com o seu percurso de vida.

Este filho mais novo simboliza-nos nos nossos percursos de vida, na nossa busca de liberdade e de sentido, na errância que tantas vezes experimentamos, na frustração do vazio, quando tocamos o nada. Mas também evoca para nós a presença permanente de Deus que nos acompanha, que nos espera com desejo, que nos abraça e envolve em beijos na nossa imensa fragilidade, e que segreda a cada um de nós: amo-te como tu és! Tu és uma festa para mim!

É esta experiência de amor total que nos converte ao amor, à misericórdia, à compaixão. Uma comunidade de homens e mulheres que fazem esta experiência de Deus - a de serem acolhidos na sua imensa fragilidade - é uma comunidade que acolhe, que não julga, que aprende a olhar os outros com a ternura de Deus. A Igreja nasce e renova-se aqui. A missão da Igreja - que somos todos nós - é fundamentalmente a disponibilidade para abrir a mesa - símbolo da Eucaristia - a todos, a começar por aqueles que mais sofrem, que se sentem excluídos, tantas vezes por razões morais. Quando nos temos na conta de perfeitos ou dos melhores enfermamos de um farisaísmo que mais não testemunha do que um deus tirano, o deus dos só pretensamente bons e bem comportados. Esse não é o Deus de Jesus Cristo! Na atitude dos fariseus evidencia-se um deus à semelhança do bezerro de metal fundido (Ex 32,8), o deus obra das nossas mãos, feito à nossa medida, controlado por nós. Um deus assim é, tantas vezes, transposto para as nossas relações sociais e só serve para reforçar um olhar de exclusão face aos outros. Excluímos os outros e excluímo-nos a nós da vida, porque invocando o nome de Deus, nada mais fazemos do que nos projetarmos a nós próprios.

A experiência religiosa requer uma vigilância, um espírito crítico, um discernimento permanente, uma escuta profunda do Evangelho. O Deus de Jesus Cristo, o Pai da misericórdia, é o totalmente Outro, que não vemos, que não controlamos, que está sempre para lá do horizonte já alcançado, tantas vezes desconcertante. Seguir Jesus é assumir estar sempre a caminho na busca do rosto de Deus, é aceitar atravessar a noite escura do não ver. Encontrá-lo-emos na construção da paz e da justiça, na vida partilhada, na vida fraterna, no perdão, na compaixão. Encontrá-lo-emos na nossa imensa fragilidade, quando dentro de nós ressoa uma voz que nos diz: amo-te como tu és; põe-te a caminho de novo; vai; estarei sempre contigo!

Aí diremos como Paulo diz na primeira carta a Timóteo: «Dou graças Àquele que me deu força, Jesus Cristo, nosso Senhor. (…) A graça de nosso Senhor superabundou em mim… Ao Rei dos séculos, Deus imortal, invisível e único, honra e glória pelos séculos dos séculos. Ámen» (1,12.14.17).

 

Carlos Maria Antunes
In Atravessar a própria solidão, ed. Paulinas
10.10.13

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