

Escutar a cidade (logótipo, det.) | D.R.A professora catedrática Maria Benedicta Monteiro considera que o envelhecimento «galopante» da população e a incapacidade de integrar os migrantes e os seus descendentes constituem «ameaças» à coesão social em Portugal e na Europa.
A investigadora foi uma das intervenientes no primeiro encontro do ciclo "Escutar a cidade", que visa conhecer a reflexão sobre aspetos decisivos da sociedade por parte de quem vive no patriarcado de Lisboa mas não partilha a pertença eclesial.
As primeiras palavras da conferência foram de agradecimento pelo convite para a participação num encontro que contribui para «quebrar o silêncio entre cristãos e não cristãos», bem como para derrubar «os estereótipos» que mutuamente se alimentam, tarefa «difícil» porque de ambos os lados se pensa que «não vale a pena» e que já se sabe «o que os outros pensam».
«O que tenho eu, que sou agnóstica, para dizer aos católicos?», foi a questão que se lhe colocou antes de responder afirmativamente à proposta dos organizadores para intervir no encontro.
A primeira parte da conferência foi reservada à apresentação da biografia da fé: «Tive uma educação cristã, conservadora, e uma adolescência e juventude católica militante», em várias funções e movimentos - «Tudo o que havia para fazer».
Na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, onde se licenciou em Filologia Germânica, foi convidada a optar entre os movimentos católicos que frequentava e a ação política que começou a abraçar, em resposta aos muitos «estímulos, provocações e interrogações» que a iam despertando para um mundo que não tinha conhecido na adolescência.
O primeiro «aviso» tinha surgido em 1959, assinado pelo padre Felicidade Alves, então pároco de Santa Maria de Belém, em Lisboa: «Dado o seu envolvimento em atividades de natureza política, naturalmente prejudiciais à sua função de catequista nesta paróquia, fica dispensada desse serviço».
A segunda advertência foi um ultimato, enviado em 1962 pelo mentor da Juventude Universitária Católica Feminina: «Dado o seu envolvimento em atividades políticas condenadas pela Igreja, deve fazer a sua opção: ou continua na Juventude Universitária Católica Feminina e se desliga da Associação Académica desta faculdade, ou devolve-me o seu emblema e considera-se fora deste movimento católico». «Foi o que eu fiz», afirmou.
Doutorada em Psicologia, Maria Benedicta Monteiro seguiu o rumo de «muitos» da sua geração, tendo-se desligado da Igreja, então «casada com o regime político», e não só «insensível à ditadura e à miséria do povo português», como também às guerras coloniais em África: «A Igreja foi, e nem o cristianismo ficou».
A carreira académica mantém-na atenta aos jovens e às expetativas que têm quanto ao seu futuro. A segunda parte da conferência deteve-se na síntese que a juventude faz das gerações anteriores.
A ordem mundial que emergiu após a II Guerra Mundial, a independência de vários estados, antes colónias, e, em Portugal, a revolução do 25 de abril, na origem de mudanças importantes a nível político, económico, cultural e familiar, foram alguns dos marcos apontados pela professora do ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa.
Os jovens «dizem que foi uma geração muito sofrida, a maioria iletrada, em que os mais pobres tiveram de emigrar» e sobreviver em condições duras, «uma geração muito esforçada», que resistiu à ditadura, «geração em que uma minoria confrontou as normas vigentes», pondo em causa «as guerras coloniais, a obediência à autoridade, os dogmatismos civis e religiosos», nomeadamente «o casamento, o celibato dos padres católicos, a proibição da contraceção, a infabilidade do papa e a submissão das mulheres»; e também «uma geração ultrapassada pela revolução tecnológica e digital, o que contribuiu para a sua própria marginalização».
«Cada geração teve de reajustar os valores e as opções das anteriores», porque as novas gerações cresce em novos enquadramentos, o mesmo se passando quanto a valores dominantes e àqueles que entretanto desapareceram, apontou.
Os jovens europeus do século XXI viverão numa «progressiva escassez de recursos», terão «maior atenção aos ambientes naturais» e aceitarão «maior igualdade entre homens e mulheres», tendências que requerem «profundas mudanças» nos «estilos de vida e hábitos de consumo», sublinhou a oradora, citando um estudo da Comissão Europeia.
Maria Benedicta Monteiro sustentou que o envelhecimento da população e as migrações são duas das «ameaças» à coesão social.
Os idosos, que crescem numa «proporção galopante» na Europa, são considerados como «grupo improdutivo» e «pesado», e, «mais grave, eles próprios se veem assim», interiorizando «a imagem que a sociedade lhes está a devolver».
Os mais velhos são «abandonados pela família», enviados para espaços que «só ironicamente se podem chamar um lar», veem-se «despojados da autonomia económica e da sua dignidade», e são muitas vezes entregues à «caridade discricionária» de organizações não governamentais, assinalou.
«Pode a solidariedade» resolver «a condição desumana» dos mais velhos, devolvendo a este grupo «um lugar a que têm direito?», questionou.
A ameaça à coesão social europeia reside também nas migrações e na atitude face à diferença racial: apesar das declarações de igualdade, persiste a discriminação, o que causa, por exemplo, diferenças de tratamento nos cuidados médicos e nos tribunais.
Os «efeitos mais dramáticos» manifestam-se no «abandono escolar» constatado em imigrantes e nos seus descendentes, vincou Maria Benedicta Monteiro, para quem o atual «modelo educativo ameaça a coesão social», dado que «mais de metade» desses jovens estão em risco de não concluir o ensino obrigatório; fechando-se-lhes as portas do mercado de trabalho devido à escassez de qualificações escolares, optam pela «marginalidade» como modo de vida que assegure a sua sobrevivência, realçou.
«Termino como comecei: a minha grande preocupação é o silêncio das pessoas sensatas», referiu Maria Benedicta Monteiro ao concluir a intervenção, citando Martin Luther King.
O encontro "Escutar a cidade", que se propõe contribuir para os trabalhos do sínodo do patriarcado de Lisboa, que decorre até 2016, contou também com as intervenções de António Guerreiro, crítico literário, e José Machado Pais, sociólogo e investigador principal do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa.
A próxima sessão, marcada para 12 de fevereiro, no Fórum Lisboa, das 19h00 às 21h00, centra-se nas questões da política, participação e democracia.
Rui Jorge Martins
Escutar a cidade (logótipo) | D.R.