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Conta-me a tua vida fantástica

«Conta-me a história da tua vida fantástica, Ackley - disse eu.
- E se apagasses a luz? Tenho de me levantar cedo.»

Este é um diálogo do emblemático romance de Salinger, “Uma agulha no palheiro”. Calha-me pensar muitas vezes naquela pergunta acerca da nossa vida fantástica, até por que estamos normalmente muito pouco disponíveis para falar disso. Preferimos viver de luz apagada. Tornou-se uma espécie de desporto nacional a lamúria, a propósito de tudo e de nada. Na hora de relatar a vida, o que vem à tona são mais as dificuldades, os medos avulsos, para não dizer os ressentimentos. Mais do que a gratidão pela vida vamos mantendo um irremediável conflito de interesses que nos faz achar que nunca é suficiente o que temos ou o que nos acontece. E neste desencontro interior perdemos a capacidade de contemplar e acolher o milagre que constantemente nos rodeia. Talvez precisemos de uma cura de simplicidade, que nos reoriente para o essencial: a hospitalidade e a comunicação do dom. «Conta-me a história da tua vida fantástica.» No fundo, estamos todos preparados para isso.

Estes dias andei às voltas com a biografia de um dos filósofos que melhor representam o século XX: Ludwig Wittgenstein. É verdade que mesmo tendo escrito algumas obras marcantes do pensamento contemporâneo, a sua vida dir-se-ia tudo menos venturosa. Teve de lutar como soldado, durante anos, na frente russa e depois na italiana, onde foi feito prisioneiro. Três dos seus irmãos colocaram termo à vida. Abdicou intempestivamente da imensa fortuna familiar e fez-se professor primário numa escola rural e, mais tarde, ajudante de jardineiro num mosteiro próximo de Viena. A última frase que pronunciou terá sido: «Contem-lhes que a minha vida foi maravilhosa». Há quem garanta que o sentido dessas suas palavras é para interpretar ironicamente, mas acreditar nisso é, de facto, não perceber o legado humano de Wittgenstein.

Não são as privações, as contrariedades e os combates que nos podem roubar o sabor apaixonado da vida. Sucedem-se os testemunhos precisamente do contrário. Recordo as linhas escritas por Etty Hillesum num campo de concentração: «Meu Deus, esta época é demasiado dura para gente frágil como eu. Mas sei igualmente que, a seguir a este, outro tempo virá. Gostava tanto de continuar a viver para transmitir nessa nova época da história toda a humanidade que guardo dentro de mim, apesar de tudo aquilo com que convivo diariamente. Essa é também a única coisa que podemos fazer para preparar a nova estação: prepará-la já dentro de nós. E num certo sentido, experimento já leveza por dentro, absolutamente sem nenhuma amargura, e sinto enormes forças de amor em mim. Gostava tanto de continuar a viver para ajudar a preparar o novo tempo que há de vir de certeza - não o sinto eu já crescer em mim todos os dias?»

Precisamos mudar de perspetiva. Em vez de perguntar o que é que o mundo nos deve, temos de perguntar generosamente (e mais vezes) o que é que nós devemos ao mundo.

 

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José Tolentino Mendonça
In Diário de Notícias (Madeira)
05.06.11 | Atualizado em 03.08.13

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