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Fé e cultura

Crer na fronteira como dor e graça

Do centro uno e estável para a instabilidade das múltiplas periferias, a gosto ou a contragosto, tem sido este o sentido da deslocação do cristianismo na cultura ocidental. Na praça das nossas tendências culturais e sociais e nos laboratórios das nossas possibilidades técnicas e científicas, a sua relevância para determinar o curso das coisas tem vindo a esbater-se. Considerado aquém ou além dos gostos, das ideias e das práticas que podem configurar o mundo contemporâneo, quando ainda é evocado, parece ser mais como reservatório de símbolos culturais ou citação de um passado religioso e moral ido do que como força e forma de uma existência que valha a pena. A imagem do cristianismo como fundo ideológico ultrapassado ou como devoção irrelevante, remete a fé cristã para longe da complexidade da existência dos homens e mulheres do nosso tempo. É como se a verdade que professa e o caminho de vida que promete tivessem deixado de ser, afetiva e efetivamente, pertinentes e relevantes, vitais e operativos.

Em tempos de fluidez e de trânsito permanente, o ato de fé e as práticas crentes deixaram de contar com a proteção de um centro reconhecido e incontestado, bem delimitado e seguro. Perante a indiferença de muitos e a hostilidade de alguns, tornámo-nos pobres, não tanto de coisas, mas de relevância, de lugares e de identidade (S. Morra). Perdido o centro que definia e geria tudo a partir de cima e de dentro, o cristianismo parece atravessar, hoje, a dor da perda e da insegurança. Como tantos outros no passado, vê-se, a si próprio, na margem, excluído, inseguro. Os papéis inverteram-se.

Será este um mal contra o qual resistir heroica e estoicamente, perante a suposta inevitabilidade do abismo? Será, pelo contrário, motivo suficiente para a resignação lamuriosa de quem, no fundo, deixou de crer que o Evangelho possa ser reconhecido e acolhido como boa notícia que faz viver e da qual se pode viver? Não poderemos olhar este momento histórico como dom fecundo de uma noite escura (J. da Cruz), dolorosa, mas necessária para algo mais autêntico? O que estamos a perder não parece essencial à fé em Jesus. Será, antes, uma falsa segurança (cultural, política, ética, etc.) que, em muitos casos e momentos, parece ter obscurecido e enfraquecido o Evangelho. Por isso, se nos deixarmos atravessar pela prova, a noite abrirá os nossos olhos (J. Tolentino); o vazio restituir-nos-á O sempre presente (D. Faria); a fratura instaurará coisas novas, um corpo eclesial renovado (M. de Certeau).

Tal como no princípio – ou já nos teremos esquecido? –, a morte é o caminho para a vida e a perda o lugar do encontro. Poderemos redescobrir que morrer para o poder e para o conforto do centro para viver o trânsito inseguro das periferias, afinal, não é perda, mas reapropriação do lugar que Jesus escolheu para si e da vitalidade própria ao seu seguimento; não é solidão, mas comunhão com os últimos, aqueles de quem é o Reino dos Céus; não é ausência de Deus, mas reencontro com o Mistério encarnado nos cumes e abismos da nossa humanidade e que sempre resiste a toda a posse ideológica e idolátrica.

Crer na fronteira significará, assim, depositar confiança no lugar que nos oferece o êxodo como domicílio, a perda como ganho, os últimos como pessoas de casa. Não tendo, tal como o Mestre, lugar onde repousar a cabeça, aprenderemos, realmente, a ter todo o mundo como casa. E acolheremos a imprevisibilidade de cada circunstância e encontro como momento de graça e a escassez de reconhecimento como alimento bastante. A suspeição que poderia suscitar este lugar de passagem e de instabilidade, de miscigenação e de impureza, face aos centros estáveis, guardiães de identidade pura e inabalável, dá lugar à confiança de que a fé em Jesus de Nazaré não quer ser sem a diversidade de pessoas, tempos e modos, os seus dramas e êxitos. Assumidas pelo próprio Verbo exposto na nossa carne, as fronteiras dos nossos percursos concretos de vida, são-nos dadas, de novo, como lugar fecundo de fé e de vida.

Este renovado e generoso contacto, tanto com os ritmos e lugares da nossa humanidade, como com o Evangelho e os mistérios cristãos, não deixará de incidir na qualidade da nossa sensibilidade e inteligência, no modo como celebramos e acolhemos. Tocará a qualidade da oração e da criação artística, dos percursos de iniciação mistagógica e de formação teológica e dos modos de denunciar e contestar profeticamente as corrupções do mundo. O desejo de o qualificar evangelicamente terá que passar pela disponibilidade a sermos presença, humana e espiritualmente, qualificada pelo Evangelho. O caminho é longo e pede paixão, a mesma de Jesus.

 

José Frazão Correia, sj
In Agência Ecclesia
29.03.11

Foto
Philippe Henry/First Light/Corbis
















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