Fé e cultura
Dizer Deus entre a rua e o silêncio
A situação de S. Paulo, em Atenas (At. 17, 16-34), pode ser apresentada como um caso exemplar de desencontro e encontro cultural, entre o seu mundo religioso e aquele perante o qual teve de dar testemunho da sua fé em Jesus e na Ressurreição.
Como bom judeu, estava horrorizado com aquele espetáculo cheio de ídolos, mas não reagiu com anátemas, como lhe apetecia. Pelo contrário, foi descobrir os anseios daquele mundo, como se ele estivesse à espera de uma palavra nova que interpretasse os seus enigmas. Encontrou um altar ao “Deus desconhecido” e expressões de alguns poetas e filósofos que lhe mostravam que havia a possibilidade de ser escutado ou rejeitado.
Seja qual for a cultura, o Evangelho tanto pode ser um calmante como um excitante. É sempre uma provocação. Por causa do que Jesus fez a quem era vítima de doenças físicas ou psíquicas, de opressão religiosa ou económica, de exclusão social e moral, os Evangelhos dizem dele o que não se dizia de mais ninguém. «Vinde a mim vós todos os que andais cansados e oprimidos e eu vos aliviarei.»
Por outro lado, manifestou uma vontade indomável de violar preceitos e instituições que, em nome de Deus, tornavam a vida das mulheres, dos doentes, dos qualificados como pecadores, um fardo insuportável. Escolheu a rua e as más companhias para significar e dizer a palavra de Deus, a palavra do Amor infinito. Lamentou que os seus contemporâneos não se apercebessem dos sinais do tempo novo que estava a chegar (Lc. 12, 54-56).
No Vaticano II renasceu o tema da interpretação dos «sinais dos tempos». Esta expressão pode sugerir a ideia de que os cristãos estão fora do tempo e olham de fora para os seus sinais. Seria esquecer a presença – reconhecida ou negada – de Deus, em tudo.
Segundo o Ambrosiaster [nome dado ao autor de um comentário a todas as epístolas de S. Paulo, exceto a carta aos Hebreus] tudo o que é verdadeiro, venha de onde ver, é do Espírito Santo que vem. Os cristãos têm de testemunhar a presença de Cristo na nossa história – estarei convosco até ao fim dos tempos – mas não o podem fazer apenas a partir da revelação bíblica, do magistério eclesiástico e das encarnações da santidade nos séculos passados. É hoje o nosso tempo e é nos seus problemas, acontecimentos e interpretações que se pode escutar a voz de Deus na voz da rua e nunca de forma direta.
Será sempre tensa a relação entre estudos bíblicos e meditação, atenção às expressões da cultura contemporânea e à intervenção da sociedade, isto é, entre ação e contemplação. Por vezes interpreta-se esta tensão em termos de mútua exclusão: se damos muito a Deus, roubamos à sociedade; se damos muito à sociedade, roubamos a Deus. Tensão não é rivalidade, mas atenção aos dois pólos da vida humana e cristã, da rua e do silêncio.
O que não está correto é pensar que Deus só habita certos tempos e certos lugares.
Fr. Bento Domingues, op
In Público, 18.03.2012
19.03.12
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