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Diocese de Beja

Festival Terras Sem Sombra terminou com «um dos concertos mais significativos da vida musical portuguesa»

Começo com um cliché: o 8.º Festival Terras Sem Sombra terminou com chave de ouro na Basílica Real de Castro Verde, a 23 de junho. O chavão justifica-se, até porque a esplendorosa basílica (azulejos, frescos, pinturas, talha) tem um tesouro fabuloso, no qual se destaca o crânio de São Fabião encastoado em prata – uma peça do século XIII, quiçá a mais preciosa da Diocese de Beja.

A opção do diretor artístico, Paolo Pinamonti, era arriscada: a estreia moderna da ação sacra “La Betulia liberata” (1773) de Gaetano Pugnani (1731-1798). Trata-se duma partitura encontrada no Palácio da Ajuda, dedicada a D. Maria I. Nada acontece por acaso: em Castro Verde, em frente da Câmara Municipal, o obelisco comemorativo da Batalha de Ourique ostenta um medalhão de Machado de Castro com a efígie da rainha. Por aqui nasceu Portugal.

“La Betulia liberata” é um daqueles textos de Pietro Metastasio (1698-1782) musicados por dezenas de compositores, do original Georg Reutter (1734) a Antonio Salieri (1821), incluindo Niccolò Jommelli (1743), o Mozart adolescente e Josef Myslivecek (ambos em 1771).

FotoRaquel Alão

Inspirado num episódio bíblico – a história da judia Judite que liberta a cidade de Betúlia degolando Holofernes, o chefe dos assírios que a cerca a mando de Nabucodonosor –, o libreto de Metastasio é também uma discussão teológica sobre a existência dum Deus, único, perfeito e infinito. O festival aproveitou para publicar uma excelente tradução do texto por Margarida Periquito. O Terras Sem Sombra habitou-nos a tudo bem feito.

A surpresa está na qualidade, variedade e fervor dramático desta música (edição crítica de Pietro Dossena), agora valorizada pela realização superlativa d Orquestra Sinfónica Portuguesa, sob a direção sóbria de Donato Renzetti. Há poucos meses vira o maestro no Met, de Nova Iorque, a dirigir “L’Elisir d’Amore” (com Flórez e Damrau) – um dos highlights da temporada.

FotoLuís Rodrigues

Agora, em Castro Verde, moldou um dos concertos mais significativos da vida musical portuguesa. Uma distribuição de alto nível, com destaque para a valenciana Carmen Romeu (no papel de Ozia, prínccipe de Betúlia, originalmente atribuído a um castrato). Sensacional a maneira como vocalizou, cheia de autoridade e intenção teatral, o tema de entra “D’ogni colpa” e o pirotécnico “Se Dio veder” – este em contraponto com o brilhante solo de violino (um concerto virtuosístico, a cargo do líder Alexander Stewart).

Na protagonista (Giuditta), Raquel Alão não foi menos eficaz, com o seu timbre caloroso e vibrato atraente. Na ária “Parto inerme”, que fecha o I ato, mede-se com as trompas e oboés e salta intervalos de estarrecer (que lembram os de Konstanze em “Martern aller Arten”, no “Sergalio”, de Mozart).

FotoMarifé Nogales

O terceiro grande intérprete foi o tenor basco Mikeldi Atxalandabaso (Archior, o crucial príncipe dos amonitas), de timbre heroico e agudos portentosos. Completaram o elenco, em papéis episódicos mas não menos conseguidos, Marifé Nogales (Amital), Mário João Alves (Cabri) e Luís Rodrigues (Carmi).

O acontecimento fulcral – assassínio de Holofernes – ocorre fora de cena (tal como nas tragédias gregas). Alão foi magistral no recitativo narrativo (bem acompanhada pelo cravista Nuno Lopes). Outros momentos altos da noite incluem o dueto/debate teológico entre Ozia e Achior, que abre a II parte, bem como o exultante coro (dividido) final, “Lodi al gran Dio”.

FotoDonato Renzetti

Uma ovação estrondosa (mais de 700 pessoas enchiam a basílica) coroou a récita. Como foi, em boa hora, gravada pela Antena 2, impõe-se a sua edição em CD.

No Terras Sem Sombra a festa não acaba sem se acarinhar a Natureza promovendo a biodiversidade. Nas hortas comunitárias de Castro Verde, artistas e público atuaram como guardiões de semente; juro que vi os feijoeiros a trepar quando o trio de solistas começou a cantar.

FotoBasílica de Castro Verde

Em pleno Campo Branco observei abetardas a levantar voo e assistir ao anilhamento, pesagem e medição de jovens (três semanas) peneireiros das torres, batizados como nomes como “Betúlia” ou “Ozias”; um terceiro, de sexo ainda indeterminado, levou o nome de “Fidelio”.

 

Texto: Jorge Calado (Expresso, 30.6.2012)
Fotografia: Festival Terras Sem Sombra
01.07.12

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Foto
Carmen Romeu

 

 

 

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