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Francisco, vida e revolução

"Francisco - Vida e revolução", livro da jornalista argentina Elisabetta Piqué que a editora "A Esfera dos Livros" vai lançar a 17 de abril, revela inúmeros testemunhos, muitos inéditos, sobre o atual papa quando era o cardeal Jorge Mario Bergoglio, arcebispo de Buenos Aires.

Em declarações à Rádio Vaticano, a jornalista conta que procedeu a «uma profunda pesquisa com testemunhas inéditas: companheiros de escola, pessoas que o ajudaram, jesuítas que o conheceram no período complicado em que foi provincial dos Jesuítas».

"Os primeiros passos", "mestre e amigo", "Um jesuíta muito contestado", "A caminho do exílio", "O regresso a Buenos Aires", "Um arcebispo diferente", "Adversários no clero e na política", "Bergoglio e os meios de comunicação" e "Mudanças a fundo" são alguns dos temas abordados nos 22 capítulos do volume.

A variedade de testemunhos recolhidos pela jornalista é patente no capítulo que adiantamos, centrado num bairro da capital argentina habitado por pessoas pobres.


As "villas" de Cristo
In "Francisco - Vida e revolução"
Elisabetta Piqué

A Villa 1-11-14 de Bajo Flores é uma das muitas que o arcebispo primaz de Buenos Aires costuma percorrer, um espaço habitado pela droga, pela violência, pelas reivindicações, pela miséria e também pela esperança. Filas eternas de gente à espera: de comida, de roupa, de inscrições em projetos sociais e de ajuda para todo o tipo de trâmites de documentação. Mães que dão de comer aos seus filhos, risos de crianças que brincam em baloiços em mau estado, e guinchos de outros miúdos que pedem para entrar no campo: um pequeno campo de futebol construído pelos padres e que ostenta um mural representando o padre Rodolfo Ricciardelli (pároco de Santa Maria Mãe do Povo e padre villera falecido em julho de 2008) e a seu lado outro, agora em elaboração, que já permite reconhecer Francisco, o Papa villero.

«Os mesmos miúdos que pintaram o mural do padre Ricciardelli vieram dizer-me que queriam fazer um do Papa», diz o padre Gustavo Carrara, pároco de Santa Maria Mãe do Povo, à frente do Vicariato Episcopal para a Pastoral nas Villas de Emergência, criada por Bergoglio em meados de 2009. O padre Gustavo caminha velozmente, mas transmite paz. Tem as mãos nos bolsos e aspeto de teólogo. Um teólogo enlameado, que tira os óculos para sorrir.

«Bergoglio fez aquilo que um bispo deve fazer, e com muita entrega. Reconheceu a fé da gente destes bairros. Para ele, os pobres assemelham-se ao Cristo sofredor, ao Cristo crucificado. Via um sacramental nos pobres», diz o padre Carrara, de trinta e nove anos. «Sublinho a sua revalorização da piedade popular. Nestes bairros, a obra da Igreja tem como pressuposto a piedade das pessoas. Aqui, esta gente acredita que Deus tem a ver com a vida e que a vida tem a ver com Deus. A expressão religiosa não é uma coisa desligada da vida, está na vida concreta. Bergoglio fez transparecer tudo isso no documento de Aparecida.»

Delicia Juárez, Ana Meza e Gladys Rueda, senhoras cinquentonas que participam há muitos anos nas atividades da paróquia, estão a preparar um guisado. «Bergoglio, que participava nas festas da nossa padroeira, certo dia 9 de julho veio para a festa da Virgem de Itatí [padroeira da província de Corrientes, Argentina]», contam. «Estávamos a preparar o típico locro na cozinha da capela, e ele entrou acompanhado pelo pároco, que no-lo apresentou. Começou por abençoar a panela e depois as nossas mãos, dizendo: "Abençoo as mãos que cozinharam este locro que vamos partilhar"», contam, cheias de entusiasmo. «Nessas festas, a coletividade boliviana tem o costume de apresentar as suas danças folclóricas. Viu-nos dançar a cullaguada. Estava no meio de nós, como qualquer outra pessoa. Agora sentimos a sua falta.»

Celia Dalila Díaz tem trinta e cinco anos e vive na Villa 1-11-14. A 5 de abril de 2012, Quinta-feira Santa, Bergoglio aparece no Hogar de Cristo, criado pelos padres da paróquia, dedicado à reabilitação de toxicodependentes. Celia não consome droga há um ano e meio e agora é voluntária do Hogar Santa Maria, também criado pelos padres. «Sabia que viria um cardeal, mas não fazia ideia, não sabia quem seria. [Bergoglio] chegou com os padres, como uma pessoa qualquer, no meio de todos nós. Convidei-o para tomar um mate e começámos a conversar. Dei-me conta de que era muito humilde pela forma de se expressar, por tomar do mesmo mate que os toxicodependentes: não é qualquer um que o faria. Durante o pouco tempo em que conversámos a sós, cerca de meia hora, perguntou-me há quanto tempo estava aqui, como me chamava e como estava. Contei-lhe que os padres me tinham tirado da rua, o que lhe agradou muito. De repente, disse-me: "Não queres que eu te lave os pés?" Eu não percebia nada, não sabia o que era isso, e respondi-lhe: "Desculpe, eu consigo lavar os pés sozinha." Ele replicou: "Não, não, eu quero benzer-te os pés." "Está bem, então força", anuí... Não sabia que me ia pôr no meio de toda a gente, que ia ter de tirar os ténis ... fiquei cheia de vergonha. É muito estranho que de repente venha alguém, te lave os pés e os beije... Mas depois senti-me aliviada ... Nesse dia [o cardeal] também batizou o meu filho», recorda.

A presença de sacerdotes nas villas de emergência de Buenos Aires remonta aos anos 60, em que começam a tomar forma esses aglomerados populacionais. Imitando a experiência dos padres operários de França, alguns sacerdotes vão viver para as villas a fim de criarem laços de solidariedade com os pobres. Em 1969, período marcado pela militância e pela violência política, o cardeal Juan Carlos Aramburu (1976-2004) cria a Equipa de Sacerdotes para as Villas de Emergência. Entre eles é emblemática a figura do padre Carlos Mugica, sacerdote de uma família da classe média-alta, que morre em 1974, alvejado pela Triple A (Aliança Anticomunista Argentina, grupo parapolicial de extrema-direita).

Quando Bergoglio chega ao arcebispado de Buenos Aires, em 1998, a realidade social argentina é diferente. Os desafios para os padres villeros também. O cardeal dedica-lhes uma atenção afetiva e efetiva. Convencido de que nas villas se esconde um tesouro do qual toda a Igreja beneficia - a fé profunda e a religiosidade simples da sua gente -, o trabalho dos padres villeros passa a ocupar um lugar privilegiado na sua agenda. Ainda mais, é uma das suas prioridades.

A pastoral que se ocupa das zonas marginais cresce ao ritmo da expansão das villas de emergência. O número de sacerdotes destinados a trabalhar ali duplica: quando Bergoglio assume o arcebispado, a equipa conta com dez sacerdotes. Ao ser eleito Papa, já são vinte e dois os sacerdotes que trabalham em diversas villas.

Além de visitá-los e de lhes prestar assistência sempre que necessário, reúne-se mensalmente com a sua equipa de padres e escuta-os. Apoia-os no seu esforço por encontrar solução para dois problemas prioritários: a integração urbana das villas e o estado de exclusão da sua população, temas que são postos em evidência pelo flagelo das drogas. O seu interesse é demonstrado através de atos de gestão tendo em vista o desenvolvimento de escolas profissionais, creches, centros de reabilitação e construção de capelas, bem como pela sua frequente presença física.

À hora dos compromissos, dá prioridade a uma festa da padroeira, na Villa 21, em relação a uma missa comemorativa na catedral. Visita as villas com frequência, muitas vezes chega sem avisar e de forma completamente inesperada. Participa em festas dos padroeiros, em procissões e celebrações da Semana Santa e na administração dos sacramentos. Hoje em dia, muitos mostram, orgulhosos, a fotografia da primeira comunhão, confirmação ou batismo com o Papa. Detém-se a falar com as famílias, reconhece muitas delas e ajuda-as nas suas necessidades pontuais.

«A gente da villa sente-o como seu. Apoderaram-se do Papa. Foi um bispo que percorreu todas as villas, que não fala por ouvir dizer, mas que conhece a sua dor, as suas lutas e as suas alegrias. Mal foi eleito Papa, isto foi uma festa, e os comentários eram: "O Papa comeu o meu cbipá, [pequeno pão], que eu própria preparei." "O Papa tomou do meu mate." "O Papa crismou-me, batizou-me"... Deixou a sua marca nas villas de Buenos Aires», diz o padre Nicolás Angeletti, de vinte e oito anos, que trabalha na Villa 1-11-14 com o padre Carrara e com Hernán Morelli.

«Quando vinha cá, percorria todas as ruelas, as pessoas punham pequenos altares nas entradas de suas casas e ele benzia-os. Saudava todos, alguns em cadeiras de rodas, outros sujos, drogados... Falava com todos», recorda María Álvarez, paraguaia de quarenta e cinco anos, que vive na Villa 21. Maria nunca esquecerá aquela peregrinação à catedral em que foram buscar a imagem da Virgem de Caacupé. Ainda guarda e mostra como uma relíquia a cadeirinha de plástico azul que levou para que a sua filhinha, que então contava quatro anos, se sentasse quando paravam para descansar. «"Não posso mais", dizia-me a minha filha, e eu respondia: "Vamos, continua, a Virgem protege-te, vamos fazer este sacrifício." Impressionava-me o exemplo de Bergoglio, porque ele caminhava no meio de todos sem medo nem vergonha, éramos todos iguais.»

O gesto mais claro do seu apoio ao trabalho realizado pelos padres villeros ocorre em finais de abril de 2009, após a ameaça recebida pelo padre José María, Pepe, Di Paola, então pároco de Nossa Senhora de Caacupé, da Villa 21. Em março desse ano, debate-se a despenalização do consumo de drogas, e a Equipa de Sacerdotes para as Villas de emergência assina um documento em que denuncia que «entre nós a droga está despenalizada de facto».

O mesmo documento afirma, além disso, que «o problema não é a villa, mas o narcotráfico», e esclarece: «A maioria dos que enriquecem com o tráfico de drogas não vive nas villas.» Na noite de segunda-feira, 20 de abril, o padre Pepe, que na Villa 21 combate com valentia a venda e o consumo de droga, recebe uma ameaça: «Desaparece daqui, vais ser boleta» (quer dizer, «vamos matar-te»), grita-lhe no meio da escuridão um homem que ele não consegue reconhecer e que se afasta, acrescentando: «Quando isto da droga deixar de aparecer na televisão, vais ser boleta. Podes esperar pela vingança.»

No dia seguinte, Di Paola entra em contacto com Bergoglio. «Na noite da ameaça tinha uma reunião de padres. Fui à reunião, mas não quis comentar nada. Depois continuei a receber mensagens com ameaças no telemóvel. Na terça-feira liguei-lhe e fui ter com ele. Disse-lhe que me tinham ameaçado de morte. Lembro-me de que levou as mãos à cabeça e de que ficou algum tempo em silêncio. Depois disse: "Primeiro temos de estar tranquilos, porque agimos de acordo com o Evangelho." Penso que se estaria a interrogar interiormente se teria sido prudente com o tal documento, e lembro-me como se fosse hoje que me disse: "Peço a Deus que, se tiver de haver um morto, que seja eu. Vou pedir a Deus que me leve a mim e não a ti." No dia seguinte tinha uma missa com as escolas católicas e anunciou publicamente o que se estava a passar. Foi muito inteligente, porque encontrou a melhor forma de me proteger. Pensou no que seria melhor para mim. Fiz a denúncia, dei uma conferência de imprensa e isso mudou-me a vida», recorda o padre Pepe.

A 22 de abril, durante a tradicional missa pela educação que se celebra na escadaria da catedral, Bergoglio refere-se aos traficantes de droga como «poderosos mercadores das trevas». «Estas trevas são tão poderosas que ontem um dos sacerdotes foi ameaçado e nós sabemos que estas ameaças não devem ser ignoradas, não sabemos onde podem acabar [...]. Não é uma questão que diga apenas respeito a estes sacerdotes; é uma questão que diz respeito a todos; é uma questão minha e de todos os bispos auxiliares que apoiamos essa declaração. Porque temos de defender a "cria", perdoem-me esta palavra, e às vezes este mundo das trevas faz-nos esquecer esse instinto de defesa da cria», clama.

O arcebispo jesuíta, porém, não se fica pelas palavras. No sábado seguinte, de forma completamente inesperada, chega à Villa 21, caminha pelas suas ruas poeirentas, fazendo notar a sua presença, e passa a tarde a conversar e a rezar no edifício confinante com a paróquia de Caacupé, acompanhado pelo padre Pepe e pelos outros padres villeros. Cinco meses mais tarde, a 7 de agosto, cria o Vicariato Episcopal para a Pastoral nas Villas de Emergência e nomeia vigário o padre Pepe. Com esta decisão, outorga hierarquia à equipa sacerdotal, atribuindo uma categoria especial ao trabalho que esta desenvolve e transmitindo uma mensagem clara: «Esta equipa é o braço do bispo nas villas», como declara agora o padre Pepe.

Conheço pessoalmente esse sacerdote de barba e de olhos verdes, que faz lembrar a figura de Jesus, e vários dos curas villeros que o acompanham em agosto de 2009 numa visita que o padre Jorge organiza para Gerry, que quer escrever um artigo, na qual, como é óbvio, também participo. Estamos em pleno inverno, em Buenos Aires propaga-se a psicose pela gripe A - o álcool em gel vende-se como pão quente e quando me cruzo na rua com algumas pessoas conhecidas, saúdam-me de longe -, mas na Villa 21 esse problema não existe. Durante a visita, beijamos e abraçamos cada jovem toxicodependente recuperado ou em tratamento que nos é apresentado pelo padre Charly, Carlos Olivero, nosso cicerone num inolvidável itinerário por oficinas onde se ensinam as pessoas a fazer pão, a esculpir mármore, e outros ofícios, para que possam encontrar uma saída laboral. Para lá da miséria, respira-se a alegria das pessoas por esse extraordinário trabalho dos padres villeros.

A Villa 21 de Barracas é muito barulhenta. Ouve-se música, o ruído de obras, saudações, gritos. A paróquia de Nossa Senhora de Caacupé fica numa rua por onde passam duas linhas de autocarros que têm as suas paragens mesmo em frente da igreja, o que faz com que muitos passageiros, ao descer, se benzam ou se ajoelhem na calçada. As portas estão sempre abertas, e o interior chama a atenção. As paredes estão pintadas com imagens e cores fortes. Nelas está representada a piedade dos povos dessa villa: paraguaios, bolivianos, peruanos e gente do litoral argentino. Obviamente, há fotografias do papa Francisco, algumas velas acesas e muitas já gastas.

O padre Toto, Lorenzo de Vedia, de quarenta e sete anos, ri-se às gargalhadas enquanto atende um telefone fixo e dois telemóveis ao mesmo tempo. «Um para fazer chamadas e outro para enviar mensagens», justifica-se. Toto depara coma difícil tarefa de averiguar aonde foi parar a grelha. Está preocupado porque no dia seguinte a paróquia de Nossa Senhora de Caacupé oferecerá uma «polleada» (grelhada mista de carne de frango) a favor da missão que farão em 2014 no Paraguai. «Juan, és tu que a tens? Onde é que a deixaste?» Juan Isasmendi é um padre de trinta e dois anos, natural de Salta, que tem percorrido mais quilómetros de villas do que de fazendas, que trabalha na paróquia desde 2007 e que conhece Bergoglio no ano 2000, ao entrar no seminário.

«Certo dia, durante o curso, interrogámo-lo sobre o tema da missão, da vida da Igreja. Dissemos-lhe que às vezes nos parecia que estávamos a formar-nos para um mundo que está à espera de outra coisa. Referimos o caso de um seminarista que costumava dar voltas por uns cortiços e lembro-me de que ele se riu muito e que usou uma expressão que ficou profundamente gravada na minha memória: "É sempre preferível pedir perdão em vez de autorização; animem-se, temos de sair; se é por Jesus e pela Igreja, façam-no. Vocês vão-se enganar mil vezes e, no caminho, terão de retificar o coração, a intenção, terão de emendar as coisas"», conta Juan.

Vários quarteirões adiante, fora da villa, encontra-se a paróquia da Natividade de Santa Maria de Barracas. Impecável, recém-pintada de azul-celeste e branco, cores do clube de futebol Racing e da Virgem, como explica o pároco, o padre Juan Gabriel Arias, que pertence à comissão diretiva desse clube. Sendo o único padre a quem Bergoglio deu autorização para ir todos os domingos ao campo, esteve três anos a viver em Moçambique e agora viaja uma vez por ano até lá, e aí fica por três meses. «De Moçambique, falava sempre com ele pelo telefone, mandava-me e-mails ou, se alguém ia a Moçambique, fazia-me chegar uma carta. Bergoglio sempre apoiou todos os trabalhos pastorais que fiz, como a Via-Sacra submarina que faço todos os anos em Puerto Madryn. Também me autorizou a trabalhar no Racing, pertenço à comissão diretiva do clube. Ele sempre gostou da imagem do padre próximo das pessoas», declara.

O padre Juan Gabriel, que hoje faz parte da equipa de padres villeros, admite que se se ordenou foi graças a Bergoglio. «Quando eu era diácono, três meses antes de ser ordenado padre, o Racing jogou uma partida para a taça Libertadores no Peru. Nessa época conseguiam-se umas passagens muito baratas. Bergoglio autorizou-me a ir. Passara um mês desde que se descobrira a venda de armas de Menem ao Equador, quando este estava em guerra com o Peru. Os peruanos não gostavam nada de nós, e armou-se uma grande confusão. Publicaram uma notícia muito mal-intencionada, onde escreveram qualquer coisa do tipo: "O padre hooligan do Racing desatou à pancada no Peru"; além disso fizeram uma montagem com uma fotografia da revista Crónica, onde apareço identificado por um círculo vermelho. A partir desse momento começou-se a pôr em causa a minha próxima ordenação, e eu sei que Bergoglio intercedeu diretamente em meu favor», admite.

O padre Pedro Velasco Suárez, do Opus Dei, trabalha no mesmo bairro. Tem cinquenta e três anos e uma sotaina velha a que faltam vários botões; informal e apaixonado, é capelão do Colégio Buen Consejo de Barracas, destinado à população da Villa 21, com duzentas crianças na infantil e seiscentas alunas no ensino primário e secundário. Também ele não se esquece das missas com procissão que Bergoglio fazia em cada dia 8 de dezembro, em Caacupé, a última das quais em 2012. «Eram missas muito fortes. Haveria umas três mil pessoas, uma representação de toda a população da Villa 21: paraguaios, bolivianos, peruanos e gente do interior do país. Celebravam-se em cada ano entre trezentas e quatrocentas confirmações. Cada um subia com os seus padrinhos. Também havia batismos e primeiras comunhões. Ficava esgotado, com as mãos cheias de óleo, mas víamo-lo muito recolhido. É preciso ter vida interior para conseguir isso, não se distraía, não se impacientava, estava mergulhado em Deus», sublinha.

A partir de 1999, todos os docentes de gestão privada e estatal que trabalham na Villa 21 realizam uma reunião anual na capela de Caacupé. «Bergoglio vinha sempre. Só faltou um ano. Lia-se o Evangelho e ele falava. Éramos cerca de quarenta docentes. O centro dos encontros eram os dez ou quinze minutos em que Bergoglio falava. Esperávamos as suas palavras porque cada uma delas encerrava um mundo. Dava uma importância imensa à educação e colocava-nos a nós, docentes, num lugar elevadíssimo. Em relação à população com a qual trabalhávamos, aconselhava-nos a não nos darmos por vencidos, que elevássemos o nível das pessoas. Em 2011 falou-nos da esperança, de recuperar a missão educativa. Não era um simples orador, notava-se que vivia aquilo que dizia. Saíramos de lá a chorar, tanto os homens como as mulheres», recorda Aída Vescovo, diretora do Colégio Buen Consejo.

Há alguns anos, num desses encontros, referiu-se ao tema da violência escolar. Falava da ternura, das carícias, da necessidade que aquelas crianças tinham de que se lhes manifestasse carinho físico. Recomendava-nos que lhes tocássemos. Lembro-me de que transmitiu esta ideia: "Cheguem ao coração, de tal modo que o coração chegue à cabeça e que a cabeça mova a mão", assim combateríamos a violência escolar», sublinha Susana Fernández Pedemonte, também docente.

«Uma vez, quando veio ao colégio, celebrou uma missa e falou às meninas com um carinho imenso. Desceu com o microfone e aproximou-se delas. Ao ver o impacto que provocara, a partir de então comecei a fazer o mesmo. Disse-me: "Quando falas aos mais pequenos, entendem-te os pequenos e os grandes; por isso, é preferível falar aos pequenos"», sublinha o padre Pedro Velasco Suárez, que conhece bem Bergoglio porque este era muito amigo do seu pai. E conta um facto significativo: «Durante um jantar com a minha família, Bergoglio contou-nos que tinha estado com o padre Mugica num retiro, poucos dias antes de o matarem. Nessa ocasião perguntou-lhe se não tinha medo, e Mugica replicou: "O meu único medo é morrer fora da Igreja."»

Consciente dos dramas associados à exclusão, em 2008, o cardeal primaz começa a colaborar ativamente com La Alameda, uma ONG que luta contra o trabalho escravo, o trabalho infantil e o tráfico de pessoas. Nesse mesmo ano, o presidente da fundação, Gustavo Vera, aproxima-se de Bergoglio através de uma carta, para lhe pedir ajuda e proteção.

«Dissemos-lhe que não éramos uma organização católica, que o nosso principal objetivo era lutar contra o trabalho escravo e o tráfico de pessoas e que precisávamos do apoio da Igreja, porque os atentados que sofríamos eram cada vez mais perigosos. Estava familiarizado com o tema da droga e com o sequestro de mulheres, e começava então a familiarizar-se com o tema do trabalho escravo. Nada lhe parecia surpreendente. Entendeu de imediato e teve a ideia de organizar uma missa, que seria a primeira, contra o tráfico e a favor das vítimas. Foi celebrada na paróquia dos imigrantes a 1 de julho no bairro da Boca. Participaram muitíssimas costureiras e cartoneiros», recorda Vera.

A partir de então, as homilias de Bergoglio - acompanhadas por marchas contra o tráfico de pessoas - farão história. «No colégio ensinaram-nos que a escravatura tinha sido abolida, mas sabem o que é isso? Uma história da carochinha! Porque nesta cidade de Buenos Aires a escravatura ainda não foi abolida; nesta cidade, a escravatura está na ordem do dia sob várias formas; nesta cidade, exploram-se trabalhadores em oficinas clandestinas e, se são imigrantes, privam-nos da possibilidade de partir; nesta cidade, há miúdos a viver na rua há vários anos! [...] Nesta cidade raptam-se mulheres e raparigas que são submetidas ao uso e abuso do seu corpo, destruindo a sua dignidade. Nesta cidade, há homens que lucram e se aproveitam da carne do seu irmão, da carne de todos esses escravos e escravas; a carne que Jesus assumiu e pela qual morreu vale menos do que a carne de um animal de estimação, e isso acontece nesta cidade! Trata-se melhor um cão do que esses nossos escravos... que são espezinhados... que são desfeitos!», clama, em setembro de 2011, num sermão na praça Constitución, pronunciado no Dia contra a Exploração Sexual e o Tráfico de Pessoas.

Bergoglio apoia publicamente vítimas e pessoas que se animaram a falar, como Nancy Mino Velásquez, mulher polícia que, em 2010, se atreve a denunciar que os membros da Divisão de Tráfico de Pessoas da Polícia Federal, onde trabalhou, cobram subornos aos prostíbulos. Também apoia abertamente Lorena Martins que, em 2011, denuncia o seu pai, ex-agente da SIDE (Serviços Secretos Estatais da Argentina), como dono de prostíbulos na Argentina e no México, e que financia a campanha de Mauricio Macri, governador da cidade de Buenos Aires.

No entanto, o seu empenhamento na luta contra a escravatura moderna começa antes de 2008. Em março de 2006, um incêndio numa oficina têxtil clandestina do bairro porteño de Caballito põe termo à vida de seis pessoas, incluindo quatro menores, que aí viviam em condições de escravidão. Bergoglio não hesita em celebrar uma missa à porta do estabelecimento.

«Quando demos início à formalização do trabalho dos cartoneiros, certo dia apanhou o metro e apareceu espontaneamente na parada dos cartoneiros da praça Houssay. Foi lá para tomar mate com eles e apoiá-los. De cada vez que fui preso ou que me difamavam, ligava-lhe e ele punha-se à minha disposição. Recebia-nos sempre. Fazia frente a todos e apresentava os problemas como questões sistémicas, não como se houvesse um senhor mau, mas um sistema, onde há pessoas que cabem e outras que estão a mais», refere Juan Grabois, advogado e militante do Movimento dos Trabalhadores Excluídos (MTE), que inclui principalmente cartoneiros que tentam formalizar o seu trabalho como recicladores do lixo de Buenos Aires, e trabalha com La Alameda na luta contra o trabalho escravo.

«Em Bergoglio vemos um tipo que apresenta cruamente as mesmas coisas que nós dizemos. Até de maneira mais clara do que nós. Sempre considerou que esta situação é consequência de políticas económicas injustas, que não atendem à dignidade do homem. Comecei a investigar quem era Bergoglio e notei uma coerência no que vinha dizendo desde os tempos de êxito do neoliberalismo. Alguns consideravam-no de direita. Outros, pelo contrário, sobretudo na zona norte, em San Isidro, por exemplo, viam-no como comunista, desprezavam-no pela sua preocupação com a pobreza e a exploração. Para essa imagem contribuiu a sua austeridade», diz Grabois. Ao lado de Vera, Grabois participa numa primeira reunião com Jorge Bergoglio no arcebispado, em 2008, e aí tem início uma estreita colaboração em várias frentes.

Pedro Nicola tem sessenta e três anos. É taxista e diácono permanente, ou seja, faz parte do clero secular e pode fazer quase tudo o que faz um sacerdote, menos celebrar missa, confessar e administrar a Unção dos Doentes. Enviuvou há um ano, trabalha na Villa 20, em Villa Lugano, e sonha com que Francisco o ordene padre.

Sempre trabalhou em villas, com a sua esposa, ajudando em refeitórios e dando catequese. Há dez anos decidiu preparar-se para o diaconado. Foi ver monsenhor Mario Aurelio Poli, então bispo auxiliar de Bergoglio, que lhe disse: «O cardeal não gosta muito dos diáconos.» Mesmo assim entrou no seminário, onde teve nove anos de preparação.

«Finalmente, certo dia aconteceu qualquer coisa», conta ele. «Disseram-nos que eu e mais alguns seríamos recebidos por Bergoglio. Dirigimo-nos à cúria. O cardeal estava ali, à minha frente, e começou a falar: "Para dizer a verdade, eu não gosto de diáconos. Não são necessários em Buenos Aires. Já temos duzentos e sessenta e nove sacerdotes... e estes têm de trabalhar." Depois pediu que cada um de nós se apresentasse. E repetiu: "Eu não gosto de diáconos, mas a Virgem visitou-me esta noite e pediu-me três diáconos para Buenos Aires. Um, disse-me a Virgem, será o dos pobres, esse és tu, Pedro, tu és o diácono dos pobres." No dia da ordenação na catedral, 15 de abril de 2011, Bergoglio disse, falando ao microfone: "Pedro, não percas esse sorriso de taxista."»

 

In Francisco - Vida e revolução, ed. A Esfera dos Livros
© SNPC | 14.04.14

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