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História da diocese de Lisboa contada pelo novo patriarca (II): da reconquista cristã à separação de Compostela

Quando se pede a rendição dos mouros, aparece nas muralhas, juntamente com o seu alcaide, um «bispo», que pode bem ser o chefe da comunidade cristã moçárabe de Lisboa: este bispo é dito muito idoso, o que já levou a admitir-se ter sido eleito por 1094 ou 1095, quando Afonso VI de Leão manteve a cidade por algum tempo em seu domínio; mas poderia também ser, simples e normalmente, mais um elo da desconhecida cadeia de prelados moçárabes; o certo é que foi morto por alguns dos cruzados nórdicos, que, pouco ou nada cientes da realidade do moçarabismo peninsular, o terão tomado por mais um mouro apenas. E esta teria sido a sorte de outros cristãos da Lisboa mourisca.

É o mesmo documento que nos relata a admiração dos cruzados quando ouviram alguns «mouros» clamar por Maria, a Mãe de Deus: seriam igualmente cristãos moçárabes. Ter-se-ia cortado então uma tradição eclesial que sobrevivera ao próprio domínio islâmico? A primeira vista quase assim parece, pois será novo o bispo, nova a sé e reconstituída territorial e organicamente a diocese. Mas a própria rapidez com que tudo isto aconteceu pode indiciar a sobrevivência de uma população crente e autóctone, que daria a todas essas medidas solidez e viabilidade.

É Vieira da Silva quem, estudando a evolução das freguesias da cidade de Lisboa e constatando que no primeiro século depois da sua reconquista cristã se constituíram 23 unidades paroquiais, numa cadência absolutamente inusitada e que nunca mais se verificou a partir de então, chega a admitir que a maioria delas não foi realmente criada nessa altura, mas já vinha do período mouro: seria mais um sinal da realidade e persistência do moçarabismo lisbonense.

A Carta a Osberno dá-nos ainda algumas indicações sobre a reconstituição diocesana: a 25 de outubro desse ano de 1147 foi a entrada solene e processional dos conquistadores na cidade, com o arcebispo de Braga, D. João Peculiar, à frente, acompanhado de outros bispos; depois, iam D. Afonso Henriques, os chefes cruzados e mais alguns escolhidos, todos a caminho do castelo, onde se levantou o estandarte da cruz; a mesquita grande, com sete ordens de colunas, estava cheia de mortos e doentes; a 1 de novembro foi purificada pelo arcebispo e quatro bispos e instalou-se nela a sede do bispado reconstituído, abrangendo este, para além do Tejo, o castelo de Alcácer, o de Palmela e a região de Almada; aquém do Tejo, o castelo de Sintra, o de Santarém e o de Leiria; os seus termos iam do castelo de Alcácer ao de Leiria, e do mar ocidental até à cidade de Évora. Para bispo de Lisboa foi escolhido um sacerdote inglês, Gilberto de Hastings, dando o seu consentimento D. Afonso Henriques, o arcebispo e os bispos, os clérigos e todos os leigos.

Estas informações da Carta a Osberno gozam de geral credibilidade, embora possam ser datadas mais posteriormente aos acontecimentos. É assim que Miguel de Oliveira repara que a inclusão de territórios alentejanos na diocese restaurada dificilmente seria imediata, uma vez que ainda não tinham sido reconquistados (Alcácer só o foi, e precariamente, em 1158); quanto à eleição de D. Gilberto, não terá acontecido antes de abril de 1148, porque no princípio deste ano o arcebispo de Braga reuniu-se com os seus sufragâneos portugueses e entre estes ainda não figurou nenhum de Lisboa, mencionando-se, isso sim, Eldebredo, arcediago desta cidade, o que leva a concluir que nela não estava instalado nenhum bispo; por outro lado, em abril de 1148, um presbítero de nome Raol doou a Santa Cruz de Coimbra um eremitério com capela que edificara em Lisboa e servira de cemitério aos cruzados ingleses: a doação foi autorizada pelo arcebispo de Braga e ainda não por qualquer bispo de Lisboa; por tudo isto, a instalação de D. Gilberto à frente da Sé de Lisboa não será anterior a esta última data, aparecendo certamente nessa qualidade em documento de 8 de dezembro de 1149. A intervenção do arcebipo de Braga na reconstituição da diocese de Lisboa também carece de ser explicada, uma vez que esta última se integrara na antiga metrópole romano-visigótica de Mérida, cujas sufragâneas tinham sido concedidas em 1120 pelo papa Calisto II à nova metrópole de Compostela.

É certo que nem D. Afonso Henriques nem o arcebispo bracarense se conformaram com esta decisão, que sujeitava eclesiasticamente a um prelado «estrangeiro» várias dioceses portuguesas, criadas ou a recriar; por isso desconheceram os direitos compostelanos na restauração da diocese de Lisboa e na instalação do seu novo bispo, efetivamente ordenado por D. João Peculiar. Mas Compostela insistiu nos seus direitos, e, em setembro de 1158, D. Gilberto esteve na metrópole galega a prestar homenagem ao respetivo arcebispo. Até à sua morte, talvez em 1164, D. Gilberto presidiu aos vários aspetos da vida diocesana pós-reconquista, da reconstrução da sé à instalação do respetivo cabido, da organização paroquial à melhor definição de limites territoriais e competências.

D. Afonso Henriques, a 8 de dezembro de 1149, concedeu a D. Gilberto, para a obra da sé, 32 antigas mesquitas, com os respetivos rendimentos e herdades: foi-se erguendo uma obra de raiz, no local da antiga mesquita grande, entretanto demolida. Instalou-se o cabido, para garantir o culto e alguma instrução (escola catedralícia), bem como participar na administração diocesana: em documento de 1 de janeiro de 1150, publicado por D. Rodrigo da Cunha, D. Gilberto, uma vez constituído o cabido, doa-lhe 31 casas com os respetivos bens, metade de Marvila e de todos os dízimos das igrejas da diocese; as dignidades capitulares eram o deão, o chantre, o mestre-escola, o tesoureiro e dois arcediagos; os nomes que subscrevem o documento - possivelmente os dos primeiros cónegos de Lisboa - são em grande parte de estrangeiros, certamente de sacerdotes que tinham vindo como D. Gilberto na armada dos cruzados e aqui tinham permanecido: teriam ficado em Lisboa mais de 150, núcleo fundamental do novo clero diocesano.

É ainda D. Rodrigo quem nos adianta que D. Gilberto introduziu na sua sé o breviário e o missal de Salisbury, que aí se teria usado até ao século XVI, quando o cardeal-arcebispo D. Afonso optou pelo breviário romano. Segundo o arcebispo seiscentista, D. Gilberto fundou também as paróquias de São Vicente, Santa Justa e Nossa Senhora dos Mártires: a primeira e a última estavam ligadas à reconquista da cidade, pois no local onde se ergueram os templos tinham sido sepultados respetivamente os cruzados alemães e ingleses; em São Vicente viveram os Cónegos Regrantes de Santo Agostinho sob o padroado real.

Em relação à fixação dos limites diocesanos, D. Gilberto acabou por ceder os seus direitos em Leiria a Santa Cruz de Coimbra, em julho de 1156, e por resolver com os Templários a situação eclesiástica de Santarém, ficando com todos os direitos episcopais na cidade e conservando a ordem apenas a Igreja de São Tiago. No que respeita ao todo diocesano, o fundamental da altura foi o alargamento progressivo da rede paroquial, pois era à volta da respetiva freguesia que se estabeleciam os vínculos de religião e sociabilidade. Na cidade, o processo foi relativamente rápido, como acima se disse, revitalizando porventura realidades precedentes.

No final do século XII, já existiam 10 freguesias em Lisboa: São Vicente, Santa Maria dos Mártires, Santa Justa, Santa Maria da Sé, Santa Maria Madalena, Santa Cruz do Castelo, São Bartolomeu, São Martinho, São Jorge e São Pedro de Alfama; mas um documento de data incerta, da primeira metade do século XIlI (1209 ou 1229), já lhes acrescenta mais 13, elevando para 23 o número de freguesias da cidade, dentro ou fora das muralhas. Este número manteve-se praticamente até 1551, quando lhes foi acrescentada a do Loreto.

No restante bispado a organização paroquial foi acompanhando a da vida social pós-reconquista: antes e depois da tomada de Lisboa, a vida foi pouco segura, primeiro por causa das incursões cristãs, depois por causa da ameaça moura, para não falar mesmo na persistência da ocupação islâmica a sul do Tejo, já que Alcácer do Sal só integrou definitivamente o reino português em 1217, quando foi reconquistada com a participação ativa do bispo de Lisboa D. Soeiro Viegas (1210-1232). Mas, a pouco e pouco, tudo se compôs: os castelos à volta de Lisboa tinham sido entregues a D. Afonso depois da conquista da cidade; o mesmo rei e o seu sucessor confiaram às ordens militares a defesa das fronteiras mais instáveis, a nascente; alguns cruzados ficaram em Portugal e colonizaram terras estremenhas.

Nas povoações então criadas ou reanimadas, levantaram-se igrejas, organizou-se o culto e estabeleceram-se paróquias, onde frequentemente oficiou um grupo de clérigos, em colegiada. Com o aumento da segurança, as populações deixaram de se abrigar nos centros amuralhados e foram-se disseminando pelos campos, progressivamente desbravados. Continuaram ligados às paróquias urbanas, até se criarem as respetivas filiais, numa rede cada vez mais densa. Somando com Maria de Fátima Coelho as informações do Catálogo de todas as igrejas, comendas e mosteiros que havia nos reinos de Portugal e Algarves, pelos anos 1320 e 1321, com a lotação de cada uma delas, manuscrito do século XVIII que reproduz dados medievais, podemos avaliar o desenvolvimento da estrutura básica da diocese de Lisboa no princípio de Trezentos: já se somariam 114 igrejas (incluindo colegiadas) e 29 vigararias pelos territórios eclesiásticos de Lisboa e arredores, mais os de Sintra, Mafra, Almada, Palmela" Setúbal, Alenquer, Porto de Mós, Torres Vedras, Obidos, Torres Novas, Ourém e Santarém, com um rendimento de 80 639,5 libras, que colocava a diocese, neste ponto, logo a seguir à de Braga.

Apesar de só a pouco e pouco ir assumindo o cariz de capital portuguesa, com a progressiva fixação da corte na foz do Tejo, Lisboa foi crescendo de peso na vida nacional, com reflexos naturais na sua posição eclesiástica. Já vimos como D. Afonso Henriques e D. Gilberto se tinham querido afastar da dependência compostelana, ligando-se numa primeira fase à metrópole bracarense., O segundo prelado de Lisboa reconquistada, D. Álvaro (1164-1184), também não foi ordenado pelo arcebispo de Compostela, mas por D. Gilberto, de quem D. Rodrigo da Cunha o diz coadjutor, ou pelo arcebispo de Braga. O terceiro, D. Soeiro I (1185-1209), foi impedido por D. Sancho I de pedir a confirmação ao arcebispo de Compostela e foi ordenado pelo de Braga.

A questão das metrópoles recrudesceria aliás na altura, até a bula ln causa duorum de Inocên­cio III (2 de julho de 1199) determinar que Lisboa e Évora ficassem sufragâneas de Compostela. Assim se resolvia temporariamente um problema que a crescente consciência nacional portuguesa iria repor. Por outro lado, quando esta situação eclesiástica se tornou impossível de manter por causa das suas implicações político-estatais, o lugar central que Lisboa ganhara na vida portuguesa do final da Idade Média proporcionou a solução óbvia de a elevar a metrópole de uma nova circunscrição supradiocesana. Efetivamente, o que sucedeu em Lisboa entre 1379 e 1393 é bem emblemático desta mudança mental-institucional: na primeira destas datas foi nomeado bispo de Lisboa D. Martinho, pelo papa de Avinhão; na segunda, o papa de Roma elevou a primeiro arcebispo da capital D. João Anes, que já a pastoreava há uns dez anos. Estávamos, desde 1378, em pleno Cisma do Ocidente, com a Cristandade dividida entre dois pontífices e sem se obter unanimidade entre reis, hierarcas, teólogos e povo crente sobre a legitimidade de um ou outro.

Em Portugal, o rei D. Fernando (1367-1383) oscilou entre as duas obediências, levado pelos sucessos político-militares do seu agitado governo. É neste contexto que aparece D. Martinho à frente da diocese de Lisboa e nomeado pelo papa de Avinhão. D. Martinho era castelhano, mas tal ainda não constituía óbice, tendo Lisboa admitido no medievo vários prelados estrangeiros: só em meados desse mesmo século XIV, sucederam-se como seus bispos D. Estêvão de la Garde (1344-1348), D. Teobaldo de Castillon (1348-1356), D. Reginaldo de Maubemard (1356-1358); o imediato antecessor de D. Martinho fora D. Agapito Colona (1371-1378); e pela mesma altura em que Avinhão nomeou D. Martinho, Roma nomeou também para Lisboa D. João de Agoult (1379) e depois D. João Guterres (1381-1382). Serão os seus últimos prelados estrangeiros, porque a crise política de 1383-1385, representa exatamente a afirmação da consciência nacional em termos mais fortes e exclusivos: logo no eclodir da revolução em Lisboa, D. Martinho - aliás prelado zeloso - será morto pelos insurretos, por ser castelhano e seguidor de Avinhão, dois qualificativos que até então não tinham impedido o seu ministério relativamente pacífico. Também aqui se manifestava a novidade dos tempos que Fernão Lopes caracterizou nos seus escritos:.

Lisboa teria de ser diocese portuguesa, com bispos portugueses, para Portugal. A criação da metrópole por Bonifácio IX, pontífice romano, em 10 de novembro de 1393 (bula ln eminentissimae dignitatis), com a elevação ao arcebispado de D. João Anes, que já governava a diocese há uma década, foi a conclusão necessária de todo este processo, que, também por aqui, nos vai trazendo da Idade Média para os alvores da modernidade, em que a nacionalidade e o Estado serão muito importantes na vida da Igreja, como enquadramento externo e determinação interna. O que já se indiciava no comportamento de D. Afonso Henriques e D. Sancho I, ao quererem desligar de Compostela os bispos de Lisboa, ganha a partir de agora uma consistência ideológica muito mais forte, que nos conduzirá ao regalismo moderno com os seus esplendores e ambiguidades. Será este um condicionamento básico da vida das nossas dioceses em geral; mas sê-lo-á muito especialmente da Igreja de Lisboa, pela sua particular ligação à capital e à corte.

 

D. Manuel Clemente
In Dicionário de História Religiosa de Portugal, ed. Círculo de Leitores
18.07.13

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