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Como é que se pode virar as costas?

Como é que eu posso virar as costas? Como é que posso virar as costas a toda a violência, a todas as injustiças? Como é que poderia fingir que não está a acontecer nada e voltar para trás? “How can I turn my back?”

A voz é grave e pausada, calmamente determinada. E há um fio de tristeza, como se por trás das palavras os olhos nunca deixassem de ver todas as injustiças e todas as violências que a voz evoca.

Louis Vitale faz a pergunta quase como se quisesse de facto saber se há alguma forma de o fazer, de virar as costas e esquecer todo o mal que aflige a humanidade, mas sabe que para si não há alternativa. “Temos de pôr fim à violência, às mortes, à guerra, à tortura, lutar pela paz, pela justiça. Sabemos isso. É isso que nos diz o Evangelho e è isso que sentimos no nosso estômago, nas nossas tripas, no nosso coração. E empenhamos nisso o nosso corpo. Atravessamos a linha que nos querem proibir de atravessar, porque é do outro lado que temos de estar, porque é assim que tentamos pôr fim ao sofrimento, que podemos mudar as coisas, eliminar o mal ou criar algo melhor. É esse o exemplo de Cristo, de S. Francisco, de Gandhi. É esse o nosso compromisso. Pomos aí o nosso corpo. “You step across the line and you put your body there.”

Louis Vitale

Louis Vitale é um frade franciscano e é mais conhecido em Oakland, na Califórnia, onde vive, como Father Louis. “Pode chamar-me Louis”, diz, quando lhe pergunto, durante a nossa conversa telefónica, se lhe devo chamar “Father Louis”. “Não gosto muito que me chamem Father [padre/pai]. Prefiro Frei ou Irmão – que é o que frade quer dizer -, mas toda a gente me chama Father”.

Louis Vitale atravessou muitas vezes a linha de que fala, pôs muitas vezes o seu corpo ao serviço das suas crenças, em inúmeras manifestações, vigílias, ocupações, iniciativas de desobediência civil, sempre seguindo os princípios da resistência pacífica e da não-violência, que Vitale considera princípios franciscanos por excelência. Fê-lo tantas vezes que, ao longo da vida, já foi preso 200 ou 300 vezes, já não sabe, já lhes perdeu a conta. Também nunca teve interesse em contar, os jornais é que lhe perguntam sempre. “Já fui detido centenas de vezes, mas a maior parte das vezes nem cheguei a estar propriamente na prisão”, conta, desvalorizando a questão. “Quando fazemos uma vigília há uma barreira, a polícia algema-nos e leva-nos para a esquadra, mas liberta-nos passadas umas horas.”

Louis Vitale

É verdade que um dia foi preso oito vezes? “Sim, há uns anos, no Nevada. Prendiam-me, soltavam-me e eu voltava para a vigília.” Mas também já foi condenado várias vezes a verdadeiras penas de prisão. “A prisão é boa para meditar2, diz.

Vitale nasceu a 1 de Junho de 1932, há 77 anos, numa “típica família católica italo-americana”. Quando era miúdo era tão irrequieto que os pais acharam que ele precisava de uma disciplina especial. “Se fosse hoje diriam que era hiperactivo, mas naquela altura a solução foi inscrever-me numa escola militar como aluno interno.” Esteve aí dos 12 aos 15 anos. Em 1954 saiu da universidade e alistou-se na Força Aérea, onde esteve três anos, como navegador, durante a guerra da Coreia. “Era um playboy, adorava festas e adorava passear no meu Jaguar Roadster branco, mas isso não era a resposta para o que eu precisava.” A vocação tinha aparecido antes.

Louis Vitale

“Tenho alguma dificuldade em dizer isto porque parece muito presunçoso”, confidencia. 2só contei isto uma vez antes de lho contar a si. Mas senti a minha chamada uma vez que concorri para presidente da minha classe e perdi as eleições. Eu tinha muitos amigos, mas eram playboys como eu e acho que não estiveram para ter a chatice de ir votar. Fiquei muito desiludido porque eu tinha a certeza de que ia ganhar – parece incrivelmente vaidoso da minha parte, mas foi assim que aconteceu. E foi aí que eu falei com Deus. Não ouvi palavras, mas Deus falou comigo. E eu soube que tinha de seguir o caminho de Cristo. Tinha 20 anos. E foi o que fiz.” Mas esse chamamento foi um apelo para mudar o mundo ou uma necessidade espiritual? “As duas coisas. é a necessidade de estar ao lado dos indefesos, dos pobres, dos famintos, das pessoas que estão sós, aliviar o sofrimento, dar a outra face, combater o mal, fazer ver aos outros o mal que há no mundo, dar testemunho, levar a boa nova, lutar pela paz.” Vitale fala como se tudo fosse evidente, não há uma dúvida no seu espírito sobre o lado da barricada onde Cristo estaria hoje, onde S. Francisco estaria. “O que é um dia de prisão quando há gente que é torturada? Quando há escolas onde se ensina a torturar pessoas? Quando se lançam bombas sobre crianças? Como é que eu posso virar as costas?” A pergunta regressa constantemente: "How can I turn my back?"

Louis Vitale

A 6 de Julho de 1959 juntou-se aos franciscanos, como noviço. Faz hoje 50 anos. Fez um ano de noviciado, quatro anos de teologia e tomou as ordens no Natal de 1963.

Se o apelo de S. Francisco o conquistou, o ambiente social que encontra ao sair do seminário faz o resto. Os Estados Unidos vivem os movimentos de defesa dos direitos cívicos, com Martin Luther King nas ruas, os estudantes manifestando-se contra a guerra do Vietname. Vitale participou em tudo isso, desfilou em manifestações, fez jejuns de protesto, sit-ins, apoiou greves de trabalhadores agrícolas.

“Senti que era isso que Deus queria que eu fizesse”, conta, "que era esse o caminho que o Evangelho apontava; lutar contra o mal, a injustiça, o preconceito, a segregação racial, pela igualdade, ao lado dos mais fracos”.

Louis Vitale

Pelo caminho fez um doutoramento em Sociologia na Universidade da Califórnia em Los Angeles (com uma tese “sobre movimentos sociais que tentam resistir a coisas que acham erradas”), mas o activismo nunca sofreu uma inflexão. Da contestação da guerra do Vietname e do apoio aos objectores de consciência, do apoio aos sindicalistas do United Farm Workers e das campanhas pelo alargamento da cobertura social e em favor dos imigrantes clandestinos, Vitale passou à contestação das armas nucleares e fundou uma organização – o Nevada Desert Experience – que fez a vida negra aos militares das unidades nucleares, dos laboratórios que desenvolviam armas nucleares, manifestando-se e invadindo edifícios, tentando impedir testes nucleares no deserto do Nevada, ás vezes à frente de um punhado de manifestantes, ás vezes de milhares, acabando sempre na prisão. “Não é importante se vamos ganhar ou não”, diz-nos. “Não é importante se uma vigília vai impedir alguma coisa. Fazemo-lo porque deve ser feito. Fazemo-lo porque temos de o fazer. E se somos presos isso não tem a mínima importância. Voltamos no dia seguinte.”

Louis Vitale

O activismo estendeu-se ao estrangeiro, com missões nos anos 80 a El Salvador, Nicarágua, Honduras, Guatemala. Uma das suas causas mais importantes foi a luta pelo encerramento da antiga School of the Americas, um centro de formação de militares da América do Sul em Fort Benning, na Geórgia, por onde passaram muitos dos mais conhecidos torcionários das ditaduras sul-americanas.

Nos últimos anos do mandato de George W. Bush, a militância de Vitale pareceu regressar aos anos 80: voltaram as manifestações contra a tortura, desta vez em Fort Huachuca, no Arizona, onde os militares americanos foram, até há pouco, formados em “técnicas de interrogatório avançadas”.

Apesar da sua actividade pública e das constantes prisões, Vitale diz que os seus superiores na Ordem dos Franciscanos nunca deixaram de o apoiar. Vitale chegou mesmo a ser provincial superior dos franciscanos na Califórnia durante nove anos – um elevado lugar na hierarquia da Ordem.

Louis Vitale

Até aos 75 anos, Vitale teve uma paróquia a seu cargo – St. Boniface, num bairro pobre de S. Francisco -, que é a única igreja dos EUA que recebe nos seus bancos uma centena de sem-abrigo durante o dia, para que possam dormir. Ao princípio, os paroquianos queixaram-se do cheiro, do ressonar, da sujidade, mas Vitale explicou que, como cristão, não podia deixar de o fazer.

Esta semana, para comemorar os seus 50 anos de franciscano, Vitale e outros vão fazer uma vigília frente á base aérea de Creech, no Nevada. Não será a primeira vez que aí vai e se for preso não será a primeira vez que é preso aí. É nesta base que são treinados os “pilotos” dos aviões robotizados não tripulados, os Predator, que lançam mísseis sobre alvos no Paquistão e no Afeganistão.

“Eles dizem que o seu alvo é a Al-Qaeda, mas só seis por cento dos mísseis atingem alvos militares”, diz na sua voz calme e triste, tão preocupado com o sofrimento do lado de lá como do lado de cá. “O resto acerta em civis, em famílias. Imagina o sofrimento? E imagina o que é ter 19 anos, ser treinado para lançar mísseis de um Predator e saber que matou uma família?”

Vitale vai para lá para lhes mostrar que estão errados e que devem parar. Como é que ele poderia virar as costas?

 

José Vítor Malheiros
In Público, 03.07.2009
© SNPC | 05.07.09

Fr. Louis Vitale
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