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Evocação

Uma semana com Daniel Faria

O meu projecto de morrer é o meu ofício
Esperar é um modo de chegares
Um modo de te amar dentro do tempo

 

***

 

Amo-te nesta ideia nocturna da luz nas mãos
E quero cair em desuso
Fundir-me completamente.
Esperar o clarão da tua vinda, a estrela, o teu anjo
Os focos celestes que a candeia humana não iguala
Que os olhos da pessoa amada não fazem esquecer.
Amo tão grandemente a ideia do teu rosto que penso ver-te
Voltado para mim
Inclinado como a criança que quer voltar ao chão.

 

***

 

O regresso dos rios da Babilónia

Se a chama não contiver o fogo
E transbordar
Se a morte da semente
Enegrecer até ao luto os campos

Se a agulha entre os novelos
Brilhar ainda
Se o regresso abrir o pesponto
Da nossa boca fechada

Se o silêncio for quebrado
Por chamar-te
E se enxugar os olhos for rever-te
Ó bem-amada

 

***

 

Lamentações (Lam 1)

Que solitária está a cidade
Enviuvou a mais povoada
Das nações
Está de luto a que foi mãe
E em trabalhos forçados

Passa a noite a dobar a sua noite
À luz do pequeno brilho da lembrança

Não há a consolá-la nenhum dos seus amantes
Cresce o silêncio nos degraus da entrada
E encontra inimigos quando estende a mão

Foi levada para fora das muralhas
Foi levada para terra estéril. Foi humilhada
E posta ao serviço das escravas.
Dorme ao relento e sem repouso
Tomada de aflição
Perseguida até ao fim
Das suas forças
Mesmo no sono é cercada.

Está mais perdida do que numa encruzilhada
E venda os olhos porque qualquer luz
Ou a mínima palavra (ou a noite)
Lhe ferem os olhos rompidos de saudade

E nem os mendigos nas estradas
Têm um coração tão só

 

***

 

A mulher adúltera

Não turbam a água dos meus olhos
As edras que me atiram sobre o corpo

As tuas mãos vazias este muro
Branco me doem muito mais

 

***

 

Zaqueu

A árvore foi a forma de te ver
E desci para abrir a casa
De me teres visitao e avistado
Entre os ramos
Fizeste-me passagem
Da folha ao voo d pássaro
Do sol à doçura do fruto.
Para me encontrares me deste
A pequenez.

 

***

 

Do Livro dos Actos dos Apóstolos

A luz de Damasco é um grito
Para a ovelha que regressa

A luz de Damasco é um tombar do trigo, um cair
Do grão - cega tanto como os olhos
De um homem perseguido quando se volta
Para nós

A luz de Damasco golpeia. É circuncisão
Que abre, limpa, a luz de Damasco
É dura. Da dureza

Das pedras que um mártir junta com as mãos
Com que empedra o caminho para a morte. A luz
De Damasco é esse lume

Da oração de um mártir ao morrer

 

***

 

Do Livro das Meditações 2

Portanto farei uma escada no coração.
E pelos degraus subirei da minha casa
Até bater com o pensamento no altíssimo.
Apagarei os passos e o cérebro como um rasto no deserto
Sempre atento como a águia quando fixa o sol
Sem pestanejar.
Farei portanto a escada no deserto para fixar
A luz.
Da minha casa subirei sem palavras
Em silêncio, portanto, pisando o coração.

 

***

 

Todas as minhas fontes vêm de ti
As nascentes
E amo-te com a constância do moribundo que respira
Já sem saber de que lado o visita a morte

Procuro a ligação entre ti e a luz muito miudinha depois dos
[temporais
Entre a luz e os estilhaços das ruas bombardeadas
Desconheço o colar onde unes tudo

Procuro entender como é que moldas
Os meus pés ao equilíbrio que os desloca no chão
Sei que és tu que me levantas
Que remendas o meu corpo cada dia

Em ti encontro a pulsação
Que rebenta - uma artéria como nunca
Tinha jorrado. Cratera onde durmo
Recluso, árvore à chuva
Em dificuldade extrema
De respiração

Ponho a cabeça entre os ramos, lanço os braços para fora
Como um pássaro entre um bando
De disparos

Tu moves as agulhas, tu unes de novo
As minhas asas à curva do céu.

 

***

 

E desço à verdura as tuas mãos
Como as manadas que buscam as minas

Faltam-me apenas os pés feridos dos que peregrinam
Faltam-me no chão duro das promessas
Os joelhos

Queria tanto andar em redor, rodear-te, se soubesses como
Queria amar-te tanto

O que sei da unidade é a túnica
Tirada à sorte. O que sei da morte e da vida
É o livro escrito por dentro e por fora
Silêncio escrito por dentro
Palavra escrita a toda a volta da história

O que sei do céu
É a mão com que sossegas os ventos

Desço à escritura como os veados aos salmos

 

***

 

Diário

Seja o que for
Será bom.
É tudo.

 

***

 

Homens que trabalham sob a lâmpada
Da morte
Que escavam nessa luz para ver quem ilumina
A fonte dos seus dias

Homens muito dobrados pelo pensamento
Que vêm devagar como quem corre
As persianas
Para ver no escuro a primeira nascente

Homens que escavam dia após dia o pensamento
Que trabalham na sombra da copa cerebral
Que podam a pedra da loucura quando esmagam as pupilas
Homens todos brancos que abrem a cabeça
À procura dessa pedra definida

Homens de cabeça aberta exposta ao pensamento
Livre. Que vêm devagar abrir
Um lugar onde amanheça.
Homens que se sentam para ver uma manhã
Que escavam um lugar
Para a saída.

 

***

 

Coeleth (Ecl 12, 1-7)

Lembra-te do teu Criador nos dias da mocidade
A tua única herança para os dias da desgraça.
Cava fundo o coração para a lembrança
Antes que digas não tenho mais prazer
Antes que a noite seja noite e não vejas mais o sol
[nem as estrelas nem os filhos
Antes que voltem as nuvens depois da chuva como a viuvez
Antes do dia em que as mulheres, uma a uma, pararem de [moer,
Quando a escuridão cair sobre os que olham pela janela
Quando se fecha a porta da rua e o ruído não diminui
Quando se acorda com o canto do pássaro e as palavras [desaparecem
Quando a altura se assemelha aos sustos que se apanham [no caminho
Quando a amendoeira está em flor e o gafanhoto se torna [pesado
Quando o tempero perde o sabor

Antes que a tua única herança seja a lembrança
Antes que o fio de prata se rompa e a roldana rebente no [poço
Antes de tudo isto
Põe uma escada e sobe ao cimo do que vês

 

***

 

Examinemos também a escrita
O solo negro deixado pelo fogo
O mecanismo semelhante às queimadas
Deixando a terra arável na sua devastação.
Tudo isto interessa para retomarmos a pedra onde está
[escrita
A palavra nova
A pedra onde corre o sangue.
Enquanto perguntas pelas dez palavras.
Põe a boca na palavra líquida
Examina o coração de carne em vez da escrita antiga
O verbo onde jorra a palavra incessante

Há dentro dela uma pedra nupcial

 

***

 

Não fui margem sem outra margem onde ligar os braços
Mas fui o tempo solto para entrançar os meus cabelos
E o movimento dos teus pés descalços

Não fui a solidão inteira nem reclusa
Para o único repouso entre o silêncio
Nem fui a flor exausta defendendo-se
De toda a mão que a quis despetalar

Não fui a casa que a si mesma se abrigou
Nem a morada que nunca se acolheu
Mas o tempo a pedir que me deixasse

Naquilo que não fui vim encontrar-me
E sempre que te vi recomecei

 

***

 

Daniel Faria escreveu no seu auto-retrato: “É um rosto com os olhos, os lábios, o pensamento, todo o retrato à procura do silêncio ressuscitado, como Sábado Santo esperando em seu coração, em sua garganta, em suas mãos, em cada sopro do barro, o canto novo (…). Eu já sabia que o lugar era a pedra, mas só depois fiz da pedra o meu lugar. Encontrei como entrar nela pelo seu lado aberto, descansar em sua pulsação, até não ser mais ninguém. A completa presença na única presença, para ser, à sua semelhança, tudo em todos.” (Cfr. Alexandra Lucas Coelho, 2001)

De facto, Daniel nasceu num Sábado Santo, 10 de Abril de 1971, em Baltar, Paredes. Desde cedo começou a escrever. Também desde criança sentiu um chamamento, a partir do qual frequentou o Seminário, tendo-se depois apercebido de que a sua verdadeira vocação era de monge beneditino, ingressando como noviço no ano 1998/99 em Singeverga.

Antes, porém, licenciou-se em Teologia na Universidade Católica do Porto e em Estudos Portugueses na Faculdade de Letras da mesma cidade. Faleceu a 9 de Junho de 1999, na sequência de uma queda doméstica. Ganhou vários prémios escolares e literários e colaborou em diferentes revistas.

 

Daniel Faria
Nota biográfica: Maria Teresa Dias Furtado
Com: ppdv
Actualizado em 12.06.09

Daniel Faria





























Capa da obra "O livro do Joaquim"




































Capa do livro "Dos líquidos"








































Capa do livro "Poesia"

 

 

 

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