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Cultura e espiritualidade

Luís Miguel Cintra lê "A Missa sobre o mundo", de Teilhard de Chardin

O ator e encenador Luís Miguel Cintra vai ler esta quinta-feira na Capela do Rato, em Lisboa, o texto "A Missa sobre o mundo", do padre e investigador francês Pierre Teilhard de Chardin (1881-1955).

O texto, de que apresentamos um excerto, foi redigido quando o religioso jesuíta estava na China e ficou sem pão e vinho para celebrar a eucaristia.

A sessão, com entrada livre e gratuita, começa às 21h30.

 

Ofertório

Senhor, já que uma vez ainda, não mais nas florestas da França, mas nas estepes da Ásia, não tenho pão, nem vinho, nem altar, eu me elevarei acima dos símbolos até à pura majestade do Real, e vos oferecerei, eu, vosso sacerdote, sobre o altar da terra inteira, o trabalho e o sofrimento do mundo.

O sol acaba de iluminar, ao longe, a franja extrema do primeiro oriente. Mais uma vez, sob a toalha móvel de seus fogos, a superfície viva da Terra desperta, freme, e recomeça o seu espantoso trabalho. Colocarei sobre minha patena, meu Deus, a messe esperada desse novo esforço. Derramarei no meu cálice a seiva de todos os frutos que hoje serão esmagados.

Meu cálice e minha patena, são as profundezas de uma alma largamente aberta a todas as forças que, em um instante, vão elevar-se de todos os pontos do Globo e convergir para o Espírito. - Que venham pois, a mim, a lembrança e a mística presença daqueles que a luz desperta para uma nova jornada!

Um a um, Senhor, eu os vejo e os amo, aqueles que me destes como sustento e como encanto natural de minha existência. Um a um, também, eu os conto, os membros dessa outra e tão cara família que pouco a pouco as afinidades do coração, da pesquisa científica e do pensamento juntaram à minha volta, a partir dos elementos mais diversos. Mais confusamente, mas todos sem exceção, eu os evoco, aqueles cujo exército anónimo forma a massa inumerável dos vivos: aqueles que me rodeiam e me sustentam sem que eu os conheça; aqueles que vêm e aqueles que vão; sobretudo aqueles que, na Verdade ou através do Erro, no seu escritório, laboratório ou fábrica, creem no progresso das Coisas e, hoje, perseguirão apaixonadamente a luz.

Quero que neste momento o meu ser ressoe ao murmúrio profundo dessa multidão agitada, confusa ou distinta, cuja imensidão nos espanta, - desse oceano humano cujas lentas e monótonas oscilações lançam a inquietação nos corações mais crentes. Tudo aquilo que vai aumentar no Mundo, ao longo deste dia, tudo aquilo que vai diminuir, - tudo aquilo que vai morrer, também, - eis, Senhor, o que me esforço por reunir em mim para vos oferecer; eis a matéria de meu sacrifício, o único que vós podeis desejar.

Outrora, carregava-se para vosso Templo as primícias das colheitas e a flor dos rebanhos. A oferenda que esperais agora, aquela de que tendes misteriosamente necessidade cada dia, para aplacar a vossa fome, para acalmar a vossa sede, é nada menos do que o crescimento do mundo impelido pelo devir universal.

Recebei, Senhor, esta Hóstia total que a Criação, movida por vossa atração, vos apresenta à nova aurora. Este pão, nosso esforço, não é em si, eu o sei, mais que uma degradação imensa. Este vinho, nossa dor, não é ainda, ai de mim, mais que uma dissolvente poção. Mas, no fundo dessa massa informe, colocastes - disso estou certo, porque o sinto - um irresistível e santificador desejo que nos faz a todos gritar, desde o ímpio ao fiel:
"Senhor, fazei-nos Um!

Porque, à falta do zelo espiritual e da sublime pureza de vossos santos, deste-me, meu Deus, uma simpatia irresistível por tudo quanto se move na matéria obscura, - porque irremediavelmente, reconheço em mim, bem mais que um filho do Céu, um filho da Terra, - subirei, esta manhã, em pensamento, às alturas, carregado das esperanças e das misérias de minha Terra-Mãe; e lá, por força de um sacerdócio que somente Vós, creio, me destes, - sobre tudo
aquilo que, na Carne humana, se prepara para nascer ou perecer sob o sol que se levanta, eu chamarei o Fogo. (...)

 

O fogo no mundo

Aconteceu.
O fogo, mais uma vez, penetrou na Terra.
Não caiu ruidosamente sobre os cimos como o raio em seu fragor. Força o Mestre as portas para entrar em sua casa?

Sem abalo, sem trovão, a chama iluminou tudo por dentro. Desde o coração do menor átomo à energia das leis mais universais, ela tão naturalmente invadiu, individual e conjuntamente, cada elemento, cada mola, cada liame do nosso Cosmos que ele, poder-se-ia crer, inflamou-se espontaneamente.

Na Humanidade nova que hoje se engendra, O Verbo prolongou o ato sem fim do seu nascimento; e, por virtude de sua imersão no seio do Mundo, as grandes águas da Matéria, sem um arrepio, carregaram-se de vida. Nada estremeceu, aparentemente, sob a inefável transformação. E, entretanto, misteriosa e realmente, ao contacto da substancial Palavra, o Universo, imensa Hóstia, fez-se Carne. Meu Deus, toda a matéria é doravante encarnada, pela vossa Encarnação.

Há tempo que nossos pensamentos e nossas experiências humanas reconheceram as estranhas propriedades do Universo que o fazem tão semelhante a uma Carne...

Como a Carne, ele nos atrai pelo encanto que flutua no mistério de suas dobras e na profundidade de seus olhos.

Como a carne, ele decompõe-se e escapa-nos sob o trabalho das nossas análises, das nossas quedas e da sua própria duração.

Como a Carne, ele não se abraça verdadeiramente senão no esforço sem fim para atingi-lo sempre mais além daquilo que nos é dado.

Senhor, todos nós sentimos, ao nascer, essa mistura inquietante de proximidade e distância. E, não há, na herança de dor e de esperança que transmitem as idades, não há nostalgia mais desolada que aquela que faz o homem chorar de irritação e de desejo no seio da Presença que paira, implacável e anónima, em todas as coisas, à sua volta: "Que definitivamente os homens A alcancem..."

Agora, Senhor, pela Consagração do Mundo, o clarão e o perfume flutuando no Universo, tomam, em Vós, corpo e feição para mim. Aquilo que o meu pensamento hesitante entrevia, aquilo que o meu coração reclamava por um desejo inverossímil, Vós mo concedeis magnificamente: que as criaturas não sejam somente solidárias entre si, a ponto de nenhuma poder existir sem que todas as outras a rodeiem, - mas que sejam de tal maneira sustentadas pelo mesmo centro real, que uma verdadeira Vida, experimentada em comum, lhes dê definitivamente a sua consistência e a sua união.

Fazei explodir, meu Deus, pela audácia de vossa Revelação, a timidez de um pensamento pueril que nada ousa conceber de mais vasto, nem de mais vivo no mundo, que a miserável perfeição de nosso organismo humano! Na via de uma compreensão mais perfeita do Universo, os filhos do século ultrapassam, a cada dia, os mestres de Israel. Vós, Senhor, Jesus, "em quem todas as coisas encontram a sua consistência", revelai-Vos enfim àqueles que vos amam, como a Alma superior e o Foco físico da Criação. Trata-se de nossa vida, não vedes? Se eu não pudesse acreditar que a vossa Presença real anima, enleva, aquece a menor das energias que me penetram ou que me roçam, não morrria de frio, enregelado no âmago do meu ser?

Obrigado, meu Deus, por terdes, de mil maneiras, conduzido o meu olhar até fazê-lo descobrir a imensa simplicidade das Coisas! Pouco a pouco, sob o desenvolvimento irresistível das aspirações que depositastes em mim quando eu era ainda uma criança, sob a influência de amigos excecionais que surgiram na altura exata ao longo de meu caminho para esclarecer e fortalecer o meu espírito, sob o despertar de iniciações terríveis e doces cujos círculos me fizestes sucessivamente transpor, chego a nada mais poder ver nem respirar fora do Meio onde tudo não é mais que Um.

Neste momento em que a Vossa vida acaba de passar com um acréscimo de vigor no Sacramento do Mundo, experimentarei, com uma consciência maior, a forte e calma embriaguez de uma visão cuja coerência e harmonia não chego a esgotar. (...)

 

05.12.12

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