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Investigação

Novo número da "Lusitania Sacra" é dedicado à «santidade»

«Estudar a essência da experiência da santidade, os distintos territórios sociais em que se inscreveu e os métodos, que  também são históricos, da sua construção» são os objetivos da mais recente edição da "Lusitania Sacra", revista semestral publicada pelo Centro de Estudos de História Religiosa da Universidade Católica Portuguesa.

 

Introdução (excertos)
José Pedro Paiva

«Na sua aparente diversidade, o programa deste volume foi pensado para responder a três questões nucleares. Em primeiro lugar, averiguar a importância da santidade no plano da experiência religiosa e, mais concretamente, da piedade católica. Não por acaso se abre o percurso a inquirir por que é que há santos e como se constrói um santo.

Outro vetor será o de tentar compreender as diferentes formas de experiência da santidade em função dos contextos sociais e espaciais em que nasceram e se inscreveram. Por isso se propõem incursões por territórios tão diversos como os conventos femininos, a corte régia, as relações entre diretores espirituais e candidatos à santidade, ou o mundo mais informal, menos regulamentado e mais fluido da cultura popular, onde emergiram facetas de santidade que acabaram por ser consideradas heterodoxas.

O terceiro eixo está voltado para uma reflexão sobre as práticas historiográficas, isto é, para os problemas com que o historiador da santidade se confronta, assumindo-se que a sua reflexão funciona como uma imposição hermenêutica indispensável a todos quantos queiram abordar, numa perspetiva histórica, este difícil objeto. A evolução das tendências da historiografia e os problemas metodológicos, os dificílimos escolhos suscitados pela definição, fixação e limites do texto hagiográfico, as questões colocadas no universo da santidade pela representação da imagem dos santos inscrita na pintura são pontos a considerar.

A análise e debate destas questões quase não requeria justificativas, tamanha foi a importância da santidade. É que os santos, até por necessidade de afirmação do seu culto no mundo católico, face à forte ofensiva de que foram alvo pelas correntes ditas protestantes, tornaram -se um dos pilares da experiência religiosa do catolicismo, sobremaneira nos séculos XVII e XVIII. Assim foi na corte régia e nos mosteiros, com a piedade dos leigos e clérigos, dos mais ricos aos mais pobres, dos das cidades aos dos campos, como fica claro pela profusão de imagens de santos, relíquias e narrativas hagiográficas que circulavam. (...)

Os santos também assumiam funções importantes nos cenóbios e na vida individual das freiras e monjas que os habitavam, como bem evidenciado no caso do mosteiro cisterciense de Cós, estudado por Saul Gomes e Cristina Sousa. Eram propulsores e alimento de devoções individuais e interiores, instrumento de distração e desenfado, intercessores em momentos de aflição, educadores estéticos e assinaladores de riqueza material, e até modo de promoção externa do próprio prestígio da comunidade, porquanto algumas imagens miraculosas e o ciclo de festas eram aproveitados para exteriorizar o prestígio da congregação monacal na comunidade envolvente, suscitando, inclusivamente, romarias e peregrinações dos devotos.

Este cenário estimula um abrangente questionário a que a historiografia não deu ainda cabal resposta. Que papel tinham os santos como formas de vencer o tempo longo dos silêncios frequentes que as regras comunitárias impunham? Havia panteões de santos privilegiados em função das regras dos conventos? Que formas concretas de devoção se praticavam em louvor dos santos? Oração vocal, oração mental, mortificações, jejuns? Serviam os modelos de santidade como espelhos de conduta da vida em clausura? Foram ou não os santos estimulantes para a proliferação de experiências místicas e projetos de santidade por parte de religiosas? Até que ponto a vulgarização de uma mentalidade aberta à ideia do milagre não decorria da intensidade do culto dos santos no interior dos mosteiros? Estimulavam os santos e as suas representações imagéticas formas de emulação e de vaidade no interior das claustras? Que custos materiais tinham todas estas devoções, pois muitas foram fonte da edificação de construções arquitetónicas, de escultura, gravuras, pinturas, azulejaria, as quais, na maior parte das vezes, têm sido estudados pelos historiadores da arte numa dimensão estritamente formal e pouco ou mal aproveitadas por quem se interessa pela história religiosa. Quem patrocinava este aparato artístico? (...)

A relação da modernidade com a experiência da santidade foi controversa e nada linear. Poder -se -ia enunciar do modo seguinte: passou -se de um relativo ceticismo de matriz humanista – pois a crítica a uma certa vivência da santidade não foi exclusivamente oriunda de quem se posicionou fora da autoridade da Igreja romana – para o vibrante culto barroco da santidade. Abundam traços deste processo. Em 1517, Gaspar Contarini, mais tarde cardeal, escreveu o De oficio episcopi, publicado em 1571, devido à censura romana que sobre ele recaiu. Na versão original, antes de censurado, e na esteira de tendências comuns às correntes humanistas de Quatrocentos e dos inícios de Quinhentos – de que Erasmo de Roterdão, no Elogio da Loucura, foi um dos máximos expoentes – criticou o culto dos santos, sublinhando como, por norma, era “supersticioso” e tinha semelhança com as práticas pagãs, abusava da veneração de relíquias, notando ainda as exageradas referências a curas milagrosas e o estilo “imaginativo” da maioria das hagiografias que então se produziam.

As críticas de origem protestante e do pensamento humanista mereceram resposta durante o Concílio de Trento. Ali, ainda que com brevidade, foi reafirmado o culto dos santos e das relíquias, tendo -se promulgado, em 1563, o decreto Da invocação, veneração e relíquias dos santos e das sagradas imagens. Basicamente, afirmava-se que os bispos tinham a obrigação de ensinar os fiéis, conforme a praxe e a tradição católica, na intercessão dos santos, sua invocação, veneração das relíquias e legítimo uso das imagens, e a que ordenassem a sua vida à imagem da dos mesmos santos. Consideravam -se ímpios aqueles que diziam que os santos não gozavam de eterna felicidade no céu e não deviam ser invocados. Por fim, num exercício de auto -crítica, condenava -se “a superstição na invocação dos santos, veneração das relíquias e sagrado uso das imagens” reclamando -se a erradicação de “todo o lucro sórdido, toda a lascívia evitada de modo que as imagens não sejam pintadas com formusora dissoluta e os homens não abusem da celebração dos santos e visita das relíquias para gloronerias e embriaguezes, como se os dias festivos empregados em luxo e lascívia fossem em honra dos santos”. (...)

O dia 13 de maio de 1625 constitui outro marco importante na história da santidade. Naquele dia a Congregação do Santo Ofício promulgou um decreto proibindo os crentes de prestarem culto, tanto privado como público, em honra de um morto que tivesse falecido com fama de santidade, ou até a publicação de biografias, antes de isso ser aprovado pelo papado. O decreto excluía da proibição os cultos antigos fundados em consenso eclesiástico ou na tradição das Escrituras. Uma das suas consequências foi que passaram a ser ilícitos uma série de atos até então admitidos no seio da Igreja. Outra foi que os bispos deixavam de poder reconhecer cultos particulares locais. Finalmente, e este aspeto merece ser sublinhado, tal como o fez Miguel Gotor, este decreto marcou o início oficial da vigilância inquisitorial na elaboração de modelos de santidade canonizada, o que provocou tensões entre inquisidores e bispos, pois limitava os poderes destes em matéria de reconhecimento da santidade a nível local. É que, anteriormente, quando alguém morria com fama de santidade era usual que aqueles que desejavam o seu culto fossem diante do antístite local e lhe pedissem autorização para praticarem algumas formas de culto, o que foi reafirmado no Concílio de Trento. (...)

Em 15 de maio de 1628, Urbano VIII promulgou um outro decreto que vedava a possibilidade de proceder à canonização ou beatificação de alguém antes de passarem 50 anos sobre a sua morte. A ascensão à santidade ia-se tornando cada vez mais difícil e controlada. (...)

Para além das perspetivas e dos problemas inventariados, uns já bem estudados, outros a requererem mais investigação, há ainda tantos a mereceram atenção e a reclamarem novas pesquisas.

Há vestígios em Portugal do impacto dos decretos romanos que reduziram o poder/autoridade episcopal em matéria de aprovação de cultos locais?

O que se regulamentou nas constituições diocesanas a propósito do culto dos santos, para além dos calendários das festas do ano em que se devia observar o jejum ou a abstinência, ou a respeito da forma de representação das pinturas e imagens dos santos?

Qual o papel do episcopado na fixação de textos, cultos e sua difusão?

Quais as formas e modos de comunicação da santidade? O discurso parenético proferido e ouvido nas igrejas, as hagiografias e vidas devotas lidas no recolhimento da cela, no aconchego do lar ou comentadas entre diretor espiritual e dirigidas, as belas e eruditas ou mais rudes peças escultóricas ou telas que abundavam em altares de igrejas disseminadas por todo o território, as figurinhas e pequenas imagens de devoção que muitos crentes possuíam, e até o teatro Quinhentista, como já foi estudado por Maria Idalina Resina Rodrigues a propósito de um Auto do bem aventurado senhorSanto António, com várias edições desde os !nais do século XVI ao XVIII, ou as breves canções e poemas com que muitas vozes populares os cantavam e, simultaneamente, os cultuavam. Ou mesmo, como tem demonstrado Isabel Morujão, a própria poesia, muitas vezes inserta nas biografias devotas?

E qual era a geografia da santidade em Portugal? Pedro Penteado explicou que na modernidade houve um florescimento e domínio dos centros marianos, mas que também havia locais de romagem destinados à devoção dos santos, como S. Bento da Porta Aberta, S. Pedro de Rates em Braga ou Santa Quitéria, advogada dos animais, em Meca (perto de Alenquer), estes e outros a reclamarem uma cartografia rigorosa.

Seguramente que este volume não tem a pretensão de ser exaustivo, nem esgota as múltiplas vias de abordagem que o assunto reclama, algumas delas acima enunciadas, mas ajudará, sem dúvida, a melhor configurar esta paisagem, a da santidade.

 

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© SNPC | 02.12.13

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Santo António
Stephan Kessler

 

 

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