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O céu não está sobre Babel

«Muitos, muitos anos foram dedicados à construção da torre; ficou tão alta que para subir até ao cimo demorava-se um ano. Aos olhos dos construtores um tijolo tornou-se então mais precioso que um ser humano; se um homem caía da torre abaixo e morria ninguém se preocupava, mas se caísse um tijolo todos choravam porque para o substituir era preciso um ano inteiro. Estavam tão impacientes por terminar a obra que nem sequer permitiam às mulheres que fabricavam os tijolos que interrompessem o trabalho quando chegavam as dores de parto: davam à luz forjando tijolos, punham o menino num pano amarrado ao corpo e depois continuavam a forjar tijolos» (L. Ginzberg, Le leggende degli ebrei).

Depois da Arca os homens construíram Babel, uma cidade fortificada que no centro tinha uma alta torre. O livro do Génesis (6,15) indica as dimensões da arca de Noé (132 metros de comprimento, 22 de largura, 13 de altura); mas para Babel diz apenas que o cimo da torre deveria chegar ao céu (11, 4). Partindo desta indicação, algumas tradições antigas imaginaram alturas grandiosas para a torre (talvez com base em recordações das pirâmides do Egito ou da gigantesca ziqqurat da Babilónia), muito maiores que as da arca que tinha salvo os pais e as mães dos construtores de Babel. Normalmente, os empreendimentos dos que constroem para seguir um chamamento e salvar não são mais altos e fortes que os empreendimentos de quem constrói para criar impérios.

Muitos são os significados que, ao longo do tempo, se foram estratificando sobre Babel; devem reportar-se ao exílio na Babilónia (Babel), a recordações dos “tijolos” da escravidão do Egito (Vamos fazer tijolos, 11,3) e à recorrente crítica da idolatria (temos que ficar famosos, 11,4).

A história de Babel encerra uma crítica radical a todo o império e, por isso, ao poder. Do fundador de Babel (Nimerod), o Génesis diz: foi o primeiro grande chefe que existiu (10,8). Babel é símbolo da cidade fortificada; mas sobretudo é símbolo do império. Não é uma crítica radical a todo e qualquer poder (também o Adam e Noé têm poder), mas ao poder que não é usado para salvar. Ainda hoje o poder salvífico de Noé e o poder dos impérios de Babel continuam a conviver lado a lado, a entrelaçar-se nas cidades e instituições. Há quem use o poder que recebeu dos cidadãos ou dos acionistas dentro de um pacto-aliança (político, económico, familiar, educativo…) com vista a uma salvação e, há quem, pelo contrário, o use para dominar e para obter rendas e privilégios: o império. Há um poder que salva e um poder que mata; e muitas vezes, quase sempre, eles coabitam nas mesmas organizações, instituições, empresas; por vezes no mesmo departamento e, até, na mesma sala, onde construtores de arcas se sentam ao lado de construtores de Babel.

O confronto Noé-Babel oferece-nos ainda outras palavras e outras mensagens de vida. Em primeiro lugar, sobre o trabalho. Seja os construtores da arca, seja os da cidade-torre eram trabalhadores e entre si solidários – sem uma forma de solidariedade laboral não pode iniciar-se nenhuma obra, nem justa nem errada. Esta solidariedade surge com força na história de Babel, onde é explícita uma ação coletiva, uma obra de grupo, uma comunidade de trabalho: Disseram: “Agora vamos construir uma cidade com uma grande torre” (11,4). Há um vamos, um encorajamento e uma exortação recíprocos em vista da construção de uma obra. Nem todas as solidariedades e cooperações são boas, nem todos os trabalhos são coisa boa: o trabalho dos pedreiros e dos engenheiros de Babel não é um trabalho abençoado e acabou por perder-se. Há trabalhos que é bom que se percam. Os trabalhos criados hoje pelos poderosíssimos impérios de máfias, pornografia, jogos de azar, empresas que envenenam, guerras prostituição não são trabalhos abençoados e é preciso fazê-los desaparecer. Os trabalhos dos impérios são trabalhos de escravos; ontem e hoje: mudam as formas de escravidão e de império, mas são idênticos os seus sinais e frutos.

O erro radical de Babel foi procurar a salvação fechando-se entre semelhantes: todos falavam uma única língua e usavam as mesmas palavras (11,1). A cidade-torre foi edificada para não se dispersarem pela superfície de toda a terra (11,4). O dispersar-se era precisamente o que tinha sido comandado aos que se salvaram do dilúvio: propaguem-se pela terra e dominem-na (9,7). Mas a comunidade humana, no seu movimento para oriente chegou a um vale e alí se fixou (11,2): procuraram a salvação não num caminhar, mas num deter-se ao abrigo do risco da multiplicidade e de uma vida fervilhante. Aquela comunidade humana construiu uma torre-império (11,4) porque já (11,1) falava uma só língua e todos tinham as mesmas palavras: é a língua única que produz a fortificação de Babel. A construção de um império é o último ato dos grupos humanos que perdem biodiversidade, que se uniformizam numa única linguagem, quando língua e pensamento se empobrecem, se tornam “um” não após, mas antes do múltiplo, uma unidade que nega a diversidade.

O erro grave de Babel foi então pensar que a salvação estava na criação de altos muros, em dar vida a uma comunidade cum-moenia (muros comuns) que faz desaparecer o cum-munus (dons-obrigações recíprocos). A história foi sempre uma alternância e uma mistura de cidades-muro e de cidades-dom; mas sempre que os muros mataram os dons não aconteceram dias felizes para as civilizações.

Deus intervém então para salvar os habitantes de Babel de uma pseudo-salvação. Também Babel é uma história de salvação: obstinadamente, JHWJ insiste em salvar uma humanidade que, obstinadamente, insiste em querer salvar-se de modos e em lugares errados.

No caso da arca a salvação chegou com uma construção; no caso de Babel a salvação nasceu de uma destruição, de uma dispersão. A primeira dispersão salvífica acontece na família que salva os filhos quando os habilita a “dispersarem-se” no mundo, quando os fazem voar e não os “consomem” em relacionamentos “incestuosos”. Muitas empresas salvam-se porque são capazes de parar perante a tentação do império; não se fecham em si mesmas no tempo da crise mas sabem relançar o caminho e enfrentam o risco da exploração de territórios desconhecidos. Muitas comunidades (e empresas, outra vez) salvam-se quando os seus dirigentes não caem na tentação de se rodearem de semelhantes na língua e nas palavras, repelindo os que falam outras linguagens; ou quando compreendem a tempo que não devem continuar a crescer em “altura” e poder e têm sabedoria e coragem para “dispersar” partes do império. Para depois recomeçar, livres e abençoados, a caminhar em direção a uma terra. A grande mensagem do mito de Babel é portanto o convite a não cair nas ratoeiras do comunitarismo (a patologia da comunidade), fechados nos muros protetores da não-diversidade.

A bênção-fecunda está em povoar novos mundos, na variedade e biodiversidade das línguas, e portanto das culturas, talentos, vocações. A corola da flor é fecunda quando dispersa os seus esporos. A tentação de Babel chega pontual quando se escapou de dilúvios ou quando se receia a sua chegada. Em vez de dispersar, sair para a frente e olhar à volta com esperança; em vez de procurar aliados entre os que são diferentes, para trocas e encontros mutuamente vantajosos, deixa-se a tenda e constrói-se a torre. Mas nessa torre não nascem filhos. A boa casa do humano é a tenda. Na Europa de hoje, em tempos de post (ou pré?) dilúvio, regressa a tentação de Babel. É preciso esperar de novo numa dispersão salvífica. No vale de Babel os homens não entenderam que o “céu” a que queriam chegar não estava no alto, estava diante deles, na via para o múltiplo. Não compreenderam que uma pobre tenda de nómada é mais forte que uma torre tão alta como o céu.

Fora do Éden, no jardim da história, não basta uma língua só para dizer palavras de vida. À necessidade de unidade e à saudade de “casa” não se pode responder negando a dispersão no múltiplo, mas indo ao encontro dela e acolhendo-a. Não descobriremos a nova língua do Adam voltando para trás ou imobilizando a história no interior de torres de semelhantes; só poderemos descobri-la se caminharmos atrás de uma voz, de um arco-íris, de uma estrela, de um arameu errante.

 

Luigino Bruni
In Avvenire
Trad.: António Bacelar
© SNPC | 29.04.14

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