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Pré-publicação

"O coração da Igreja tem de bater": Biblista Joaquim Carreira das Neves é entrevistado e revela dicionário bíblico em 10 temas

O novo livro "O coração da Igreja tem de bater - Um biblista confessa-se" reúne uma entrevista do padre José Carreira das Neves e um «dicionário bíblico em 10 temas», com textos inéditos do professor jubilado da Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa.

No volume «conjugam-se duas fortes vertentes da personalidade do autor. Na primeira parte, a de enfoque pessoal, identitário, de que o leitor beneficiará através da arte de fazer conversa do jornalista António Marujo, também ele nome maior do jornalismo português e duplamente galardoado com o prémio Templeton, que o entrevistou. Segue-se um pequeno espólio fotográfico», lê-se na nota de apresentação.

A segunda secção «apresenta um conjunto precioso de textos inéditos do padre e biblista Carreira das Neves, naquilo que constitui uma espécie de dicionário bíblico do seu pensamento, a partir de dez diferentes temas».

Joaquim Carreira das Neves nasceu em 1934 no lugar Souto do Meio (Caranguejeira, Leiria). Quinto filho de treze irmãos, frequentou o colégio franciscano de Montariol (Braga) e fez os cursos filosófico (Leiria) e teológico (Lisboa), sendo ordenado aos 27 anos.

Em Roma e Jerusalém, especializou-se em Bíblia e Próximo e Médio Oriente. Foi professor de Ciências Bíblicas no Seminário Franciscano da Luz (Lisboa) e, depois, na Faculdade de Teologia da Universidade Católica, bem como na Universidade Nova de Lisboa e no Instituto Bíblico Franciscano de Jerusalém. Defendeu tese de doutoramento na Universidade Pontifícia de Salamanca, em 1967.

É autor de dezena e meia de livros, entre os quais "Jesus Cristo-História e Fé", "Escritos de São João", "A Bíblia – O Livro dos Livros", "São Paulo, dois mil anos depois", e "Deus Existe?- Uma Viagem Pelas Religiões". Lutero será o tema do seu próximo livro.

Do volume (288 páginas, 15,90 €, Paulinas Editora), que vai ser lançado a 11 de novembro, adiantamos alguns excertos.

 

Entrevista

O que é que mais o fascina na sua vida?

O que mais me fascina é o estar vivo e conviver  com crentes e não crentes. A par deste fascínio, sempre levado pela literatura bíblica, descobri o fascínio de tudo o que é arte: literatura, teatro, pintura, música e, dentro da música, a ópera. Fascinam-me as tragédias gregas, a retórica de Cícero, a filosofia grega, os grandes romances russos, as catedrais – todo o mundo da arte. A vida é, só por si, o maior dos fascínios.

 

É um fascínio pelo conhecimento ou há algo por detrás disso?

Acaba por ser um conhecimento e cultura, mas começa pelo fascínio que tenho em relação à própria fé. A minha fé é uma fé que se interroga sobre os conteúdos, modos e substância do Credo. Encontro-me melhor a nível de diálogo com tudo o que é religião e religiões, em relação ao próprio Deus. Afinal, o que é que me fascina? É o Deus do ser e o Deus do amor, o Deus da misericórdia.

 

Quando fala de Deus, refere-se ao Deus de Jesus? Qual é o lugar de Jesus Cristo no meio de tudo isto?

Esse é o problema. Deus é Mistério. E não devemos ter medo da palavra «mistério». Mistério não significa o desconhecido, mas o que está para além do simplesmente conhecido pela lógica das causas e dos efeitos. Deus não tem definição. […] Ele é um Ser, mas, como Ser que é, o Ser de Deus não é o conhecer de Deus – então é o Ser e não o conhecer de Deus que mais me fascina.

 

Deus é uma pessoa?

Continuo a acreditar que Deus é pessoa, e não sei pensar em Deus sem pessoa.

 

Nesse processo descobre, pelo menos na sua convicção, a originalidade de Jesus em relação a outros credos monoteístas.

Descubro a originalidade de Jesus, do seu ser pessoal, dentro do ambiente cultural. […] Ele aos vinte e sete anos abandona Nazaré e a sua família e junta-se a João Batista. Mas, pouco depois, abandona também João Batista e regressa à Galileia para propor a sua doutrina sobre o Reino de Deus. O agir e o falar de Jesus, tão diferente dos profetas e dos sacerdotes, fariseus e saduceus do seu tempo, é de tal maneira original e subversivo que, de duas uma: ou foi um megalómano, um narcisista, um taumaturgo iniciado em dons paranormais, ou, então, é o Filho de Deus, Messias e Salvador, a cumprir a vontade do Pai como o Emanuel profetizado – Deus connosco.

 

Esse seu fascínio pelo estudo da Bíblia, pelo conhecimento e pela aproximação à figura de Deus e à pessoa de Jesus, despertou num momento concreto da sua vida?

Sim, num momento concreto. Quando, em Jerusalém, descobri a força das narrativas midráshicas dos Evangelhos da infância de Jesus, fiquei siderado pela força dos géneros literários da Bíblia: o mito, a saga, o midrash, a poesia, a lenda, o romance, o apocalipse, a catequese profética e evangélica.

 

Foi, então, em Jerusalém que tudo começou?

Na verdade, tudo começou com a minha família. Os meus pais eram agricultores com uma boa adega, lagar de azeite, alambique, algum gado e um pequeno comércio de aldeia. Éramos muitos. O meu avô paterno era maçónico. Depois deixou a maçonaria e passou a praticar a religião. O meu pai era muito salazarista – Deus, Pátria e Família –, pois tinha vivido a I República e nos gostava, a nível político, da maneira como esta se tinha comportado com a Igreja e com a sociedade.

 

Como surgiu a vocação franciscana?

Fui educado na religião e tinha um tio, irmão do meu pai – da parte dele eram cinco irmãos –, que foi padre franciscano, missionário em Moçambique e na Guiné. Foi isso que me entusiasmou. O meu pai queria que eu fosse médico. Gostava de um filho médico e uma filha professora. Mas, depois do exame da quarta classe, disse-lhe: «Pai, não quero ser médico, quero ser como o tio e ir para a África.»

 

Da parte do seu avô, sentiu alguma vez que a Maçonaria tinha influência nele?

Nisto há muito de saga e de lenda, que não é fácil de dilucidar. Ouvia as narrativas, um pouco em surdina, sem juízo crítico. Em Leiria, havia uma forte presença da Maçonaria. Não sei se o meu avô ia às sessões, mas falava-se disso na minha terra. E dizia-se que ele não gostava que a minha avó, que era muito religiosa, atendesse os pobres que lá iam pedir. Quando a minha avó morreu, o meu avô deu a volta à vida na questão religiosa, tanto quanto percebi. Levou para casa um frade desenclaustrado pela República, que encontrou para os lados da Nazaré, e que ficou uma espécie de precetor dos seus filhos, na religião e nas letras. Naquele tempo não havia escola pública.

 

Os seus pais eram médios ou grandes proprietários?

Eram proprietários médios para aquele tempo. O meu pai era, essencialmente, um homem da agricultura ligado à vinha, ao azeite e ao gado.

 

A sua mãe acompanhava-o nessas lides?

Sim, sobretudo porque tinha em casa uma criada para os filhos e um criado para o gado. Eu nunca soube o que era passar fome nem frio, mas via colegas que iam comigo para a escola descalços, e os Invernos eram tremendamente frios, com muita geada. E também acontece que vivi na minha infância no tempo da Guerra Civil de Espanha. O meu pai tinha uma loja, onde se vendia de tudo. Mas, à volta passava-se fome, passava-se mal. Lembro-me de roubar bacalhau e outras coisas ao meu pai para dar de comer a quem tinha fome.

 

O vinho e o azeite são dois símbolos na cultura bíblica. Quando começou a estudar esses símbolos, sentiu a relação com a sua cultura de infância?

Tem graça. Há pouco tempo escrevi um pequeno texto sobre o azeite na Bíblia, num livro que incluía outros textos sobre o azeite em Portugal e no mundo. Ao escrever o texto, enquanto investigava, diretamente a partir da Bíblia e dos dicionários, sentia realmente aquele sabor da Terra Santa, do azeite bíblico e do lagar de azeite do meu pai. Que saudades!

 

Quando celebra a missa, não tenta adivinhar o ano de produção do vinho?

Não, não, porque o fabrico é especial, sem olhar à casta ou à idade. Que eu saiba, nunca estive tocado. Agora, como não tenho estômago, qualquer copo de vinho me chega logo à cabeça. Continuo a gostar de apreciar um bom jantar ou um bom almoço acompanhado com vinho bom. Mas, em tempos de crise...

 

Sentiu que a vocação era algo já presente?

Tive uma puberdade como toda a gente, com o apelo do sexo oposto. As raparigas bonitas da minha aldeia também faziam parte do meu inconsciente de jovem seminarista. Gostei de uma rapariga da aldeia, com quem conversei, mas não posso falar de namoro. Um belo dia pus o problema: será que ainda vou para padre ou não vou?... Tinha 17 anos e estava aqui na Luz. Caí doente por razões de saúde física, e o padre provincial disse-me: «Vais para a tua terra, a tua mãe trata-se muito bem.» Nessa ocasião, devido à fraqueza física, fiquei em casa durante um mês. Pensei na rapariga, mas nunca tive uma dúvida forte.

 

Mas, nessa altura, para si já era claro que queria ser franciscano?

Para mim era claro que queria ser padre. O ser franciscano vem por causa do meu tio.

 

Dicionário bíblico em 10 temas

Escritura e fé

O Deus da Bíblia é o Emmanuel, o «Deus connosco». Ele nunca se afasta de nós. Somos nós que nos afastamos dele, nos escondemos, temos vergonha, fugimos, sentimo-nos nus. Fugir de Deus é fugir da luz, do sol, entrar na escuridão. Foi o que aconteceu com o filho pródigo da parábola (Lc 15,11-32). Ou, como diz o quarto Evangelho: «Quem nele crê não é condenado, mas quem não crê já está condenado, por não crer no Filho Unigénito de Deus. E a condenação está nisto: a Luz veio ao mundo e os homens preferiram as trevas à Luz, porque as suas obras eram más. De facto, quem pratica o mal odeia a Luz e não se aproxima da Luz para que as suas ações não sejam desmascaradas. Mas quem pratica a verdade aproxima-se da Luz, de modo a tornar-se claro que os seus atos são feitos segundo Deus» (Jo 3,18-21). Com estes três textos da Escritura encontramo-nos connosco e com a fé. A Escritura afirma que não há criação sem Criador como não há vida humana sem pai e mãe. Mas o filho pode fugir ao pai, segundo a parábola do filho pródigo ou segundo a parábola de Adão e Eva. Fugir de Deus é fugir do encontro.

 

Malefícios da Bíblia

Trata-se de «Palavra de Deus» ou de «Palavra da Salvação», segundo os dizeres proclamatórios da liturgia da Igreja Católica nas Eucaristias? Para o homem moderno que defende os direitos humanos, a democracia e a liberdade política e religiosa, semelhantes textos são um «escarro» à verdade, ao amor, à democracia e direitos humanos. Como é que, então, a Igreja os proclama como «Palavra de Deus» e «Palavra da Salvação»? Em conclusão, estamos diante de um assunto que atualmente ressurge com novas dimensões. Como é que judeus e cristãos aceitaram tanta literatura bíblica como «Palavra de Deus», a defenderam como canónica e inspirada, se tal «Palavra» convoca os seus fiéis a matar os inimigos, a excluí-los da sociedade, incluindo crianças, novos e anciãos?

 

Deus no feminino

O movimento «feminista» tem como objetivo libertar a mulher de velhos tabus de submissão e inferioridade em relação à androginia e patriarcalismo. Pertence à história, sua cultura e civilização, o facto da hegemonia do homem sobre a mulher em todos os campos da vida social. A chegada da democracia e seus direitos humanos traria, necessariamente, uma nova atitude da mulher em relação ao passado, ao presente e ao futuro. Não admira, pois, que semelhante atitude seja também objeto da religião. Basta refletirmos sobre a religião dos talibãs, em relação às mulheres islâmicas e às tradições «normais» de separação entre mulheres e homens. Acontece ainda hoje nas mesquitas, mas também nas sinagogas judaicas, como acontecia até há pouco tempo nas igrejas cristãs. Mas o que se diz de islâmicos e judeus, na vertente religiosa, pode-se aplicar, em grande parte, a hindus e cristãos. À luz da filosofia, sociologia, política e religião, a questão do género é uma das mais discutidas nestes últimos tempos.

 

Do homem da terra ao Homem-Deus

Depois de estudarmos a perspetiva teológico-bíblica da temática em epígrafe, cumpre-nos dizer algumas palavras sobre a perspetiva franciscana. A prefiguração da encarnação assenta na própria criação cósmica e humana. A encarnação, no seu mistério de Palavra e carne, matéria e espírito, humano e divino, é a nova maneira de dizer Deus. Foi o que aconteceu com Francisco. Ele mostrou à saciedade, como talvez nenhum outro cristão, o que é ser recriado na encarnação, que nada tem a ver com reencarnação, gnosticismo, espiritismo ou iniciação de mistérios esotéricos. Prova-o o simples facto de nunca deixar a Igreja Católica, embora os «senhores» dessa mesma Igreja vivessem a teocracia da Cristandade em todo o seu esplendor. Francisco podia ter sido um cátaro ou um albigense, mas nunca o foi porque descobriu, no Evan gelho, que os ministérios e os sacramentos passam pelas mãos e pelos corações de homens pecadores e «senhores». E ele nada via neles a não ser os ministros dos sacramentos da Vida que é salvação e redenção. Até nisto, Francisco é um «milagre» de criação configurado em encarnação do Verbo que urge a recriação da «misericórdia sobre o sacrifício».

 

Quem foi Jesus - Quem é Jesus?

Nunca se escreveu tanto sobre Jesus como nestes últimos cinquenta anos. O Jesus das igrejas, da liturgia e das Faculdades de Teologia tornou-se no Jesus de romancistas, arqueólogos, cinéfilos, historiadores e jornalistas crentes e não-crentes. Jesus saiu à rua e a rua tomou conta dele. E tudo quanto se escreva sobre Jesus, na linha ortodoxa ou, sobretudo, esotérica, tem venda e é bom negócio. As livrarias estão cheias de livros sobre o Jesus, como guru, espírita, milagreiro por obra e graça de forças paranormais, revolucionário «marxista», profeta escatológico falhado, homem casado ora com Maria Madalena ora com Marta, irmã de Lázaro, pai de uma filha chamada Sara e, ultimamente, de um filho chamado Judas. Que dizer a tudo isto? Quem tem razão, o Jesus de católicos, ortodoxos e protestante, ou o Jesus dos romances (José Saramago, Dan Brown), New Age, etc.? Quem foi e quem é Jesus? Podemos saber alguma coisa, à luz da história, do Jesus real?

 

Pessoa na Bíblia

A Bíblia não nos oferece elementos constitutivos sobre a natureza da pessoa, a nível filosófico. O termo pessoa nunca aparece na Bíblia. Aliás, na sua origem, o termo pessoa começa por ser mais uma personagem do que uma pessoa, uma vez que designa o prósopon, isto é, a máscara das personagens no teatro grego. Por detrás da máscara da respetiva personagem escondia-se a pessoa. E a personagem era o indivíduo no seu género e ação que representava, no grande teatro da vida ou, especificando melhor, na grande tragédia da vida, o seu pedaço de vida. A pessoa, na Bíblia, é racional, livre e autónoma, mas também é mais do que racional. Há uma razão humana, finita, imanente e uma Razão maior, divina, transcendente. Trata-se de uma só razão (Razão). A partir de Descartes, muitos filósofos sustentam que não se pode filosofar para além do puramente racional imanente. Deste modo, não podemos ir a Deus pela razão. Mas, se o crente acredita, não é sem razão ou contra a razão. A pessoa é razão, inteligência, afeto, amor, liberdade. Mas se acredita, não apenas por afeto ou amor, é porque também é pela razão. Tudo o que é experiência humana tem a ver com a razão; e a experiência de Deus ou da fé é universal, a nível transversal e horizontal.

 

Igreja e Estado no Novo Testamento

Quando falamos de «Igreja e Estado no Novo Testamento» não podemos fazer uma transposição pura e simples dos textos do Novo Testamento (NT) para a cultura universal, mormente a ocidental, dos nossos dias. A laicidade ocidental, como cultura política, vigente numa grande quantidade de nações, onde impera a democracia, não existia na cultura do Império Romano e no espaço geográfico, político e religioso de Israel, no tempo de Jesus, e no espaço universal da simbólica «estatal» dos textos do NT.

 

Inferno

Para as religiões que defendem o eterno retorno (reincarnação), Hinduísmo e Budismo, não há nem Céu nem Inferno. Só existe nas religiões monoteístas (Ju daísmo, Cristianismo, Islão), que defendem um Deus criador cujas criaturas humanas, em liberdade, obe decem ou desobedecem ao seu Deus. Este Deus oferece um Céu ou um Inferno de acordo com a vida da criatura em relação ao seu Deus. Mas diga-se, desde já, que esta afirmação clássica de Céu e Inferno depende duma teologia de justiça divina à imagem e semelhança da justiça ocidental retributiva. Penso que o papa Francisco, conhecendo-o como parece ser o que é, não pressupunha a «apostilha» explicativa do seu porta-voz. Muitos teólogos católicos afirmaram a mesma coisa. No fim de tudo, haverá uma «apocatástase», que foi discutida no Concílio de Constantinopla e foi desaprovada. Mas a última palavra é sempre a de Deus. Nem os ateus se interessam pelo assunto, nem os crentes os podem julgar.

 

In O coração da Igreja tem de bater, ed. Paulinas
03.11.13

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