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O sonho do papa Francisco - Os jovens no coração da Igreja

"O sonho do papa Francisco - Os jovens no coração da Igreja", do padre italiano Antonio Spadaro, diretor de uma das mais influentes revistas do espaço católico, "La Civiltà Cattolica", foi escrito a acompanhar a Jornada Mundial da Juventude no Rio de Janeiro, em 2013, a primeira do atual bispo de Roma.

O autor propõe-se recompor, «embora de maneira parcial, os pedaços da viagem ao Brasil», ligando-os à ação de Jorge Mario Bergoglio como arcebispo de Buenos Aires, realçando assim o esboço de um caminho em evolução: «É esta a perspetiva dinâmica do governo do papa Francisco: um estaleiro em construção».

Antonio Spadaro, jesuíta como Francisco e autor de uma longa conversa com o papa, publicada em 2013 nas revistas da Companhia de Jesus de vários países, incluindo a "Brotéria", em Portugal, propõe neste volume uma «análise do que aconteceu no Rio de Janeiro, entre 22 e 28 de julho, a fim de perceber o significado profundo daqueles
dias brasileiros para o rosto futuro da Igreja».

Apresentamos um excerto do livro editado em fevereiro pela Paulinas Editora, extraído do capítulo "Emaús: o rosto futuro da Igreja".

 

A Igreja na nossa mudança de época

No encontro com o episcopado brasileiro, Francisco propôs outra parábola como «chave de leitura do presente e do futuro»: o ícone de Emaús, de que ele gosta muito e que já apresentou muitas vezes. A pergunta que dá vida a esta meditação é: «O que é que Deus nos pede?»

Ao falar aos bispos brasileiros e relembrando o Documento de Aparecida (2007), o Papa declara-se muito consciente de que, em muitos aspetos, estamos a viver um período novo na história, que apresenta novos desafios e exigências: estamos a viver «não uma época de mudança, mas uma mudança de época». Trata-se de um grande desafio e de um apelo à Igreja. Francisco começa por afirmar que, em todo o caso, não podemos ceder ao desânimo, ao desencorajamento, à lamentação pela situação que a Igreja está a viver: «Trabalhámos muito e, às vezes, parece-nos que somos uns derrotados, e temos a sensação de que devemos fazer o balanço de uma estação já perdida, olhando para aqueles que nos deixam ou já não nos consideram credíveis, relevantes.»

Já verificámos que a postura existencial do papa Francisco é muito propulsora. Contudo, isto não significa que ela seja simplesmente «otimista». Bergoglio sempre foi realista, não ligado a visões aprioristas ou demasiado confiante nos êxitos progressivos da humanidade. Na realidade, o seu otimismo é fé, confiança evangélica que dá forma ao modo de ver a realidade. Aqui, podemos recordar que o método que o episcopado latino-americano usou em Aparecida, em 2007, numa continuidade com as Conferências gerais anteriores, foi o de «ver, julgar, agir» (n. 19). Contudo, o «ver» não é uma simples observação empírica, antes «a contemplação de Deus com os olhos da fé», de modo a podermos «ver a realidade que nos rodeia à luz da sua Providência». O «otimismo» de Bergoglio, que não cede à perceção de estar «derrotado», nasce desta visão de fé.

O episódio dos discípulos de Emaús (cf. Lc 24,13-35) ajuda-nos a refletir, e Francisco propô-lo à meditação por que [nos] ajuda a compreender melhor. Os dois discípulos saem de Jerusalém, escandalizados com o fracasso do Messias em quem tinham esperado. Aqui, podemos ler o mistério difícil de quem deixa a Igreja; isto é, o mistério de tantos que consideram que ela já não pode oferecer nada de significativo e importante. Porquê? O Papa faz uma análise sintética, mas profunda, das razões de quem se afasta: «Talvez a Igreja tenha parecido demasiado fraca, talvez demasiado distante das suas necessidades, talvez demasiado pobre para responder às suas inquietações, talvez demasiado fria relativamente a ele, talvez demasiado autorreferencial, talvez prisioneira das suas linguagens rígidas; talvez pareça que o mundo tornou a Igreja um resíduo do passado, insuficiente para as novas interrogações; talvez a Igreja tivesse respostas para a infância do homem, mas não para a sua idade adulta.»

Esta lista de «talvezes» é realmente um elenco de pecados ou, pelo menos, de tentações que a Igreja vive na sua caminhada ao longo da história e que se resume numa atitude de distância, de frieza e de rigidez. É o ponto de partida para um exame de consciência eclesial.

 

Uma Igreja que acompanha e discerne na noite

Portanto, o que fazer perante esta situação? Que Igreja «serviria» para os homens de hoje, que são como os dois discípulos de Emaús? Então, o Papa desenha, em positivo, um retrato de Igreja realmente cheio de vida, acompanhando-o com uma análise da condição do homem contemporâneo: «Precisa-se de uma Igreja que não tenha medo de entrar na sua noite. Precisa-se de uma Igreja capaz de encontrá-los no seu caminho. Precisa-se de uma Igreja capaz de inserir-se na sua conversa. Precisa-se de uma Igreja que saiba dialogar com aqueles discípulos que, fugindo de Jerusalém, vagueiam sem destino, sozinhos, com o seu desencanto, com a sua desilusão de um cristianismo que já se considera terreno estéril, infecundo, incapaz de gerar sentido.» O elenco, quase litânico, contém uma visão fortemente projetiva.

Mas Francisco aprofunda ainda mais a sua análise do homem de hoje e, no fim, descreve em amplas pinceladas a Igreja com que sonha: «Precisa-se de uma Igreja capaz de fazer companhia, de ir além da simples escuta; uma Igreja que acompanhe a caminhada, pondo-se a caminho com a gente; uma Igreja capaz de decifrar a noite que há na fuga de Jerusalém, de tantos irmãos e irmãs nossos; uma Igreja que se aperceba de que as razões pelas quais há gente que se afasta já contêm em si mesmas as razões para um possível regresso; mas é preciso saber ler tudo com coragem. Jesus deu calor ao coração dos discípulos de Emaús.»

O retrato que daqui emerge é o de uma Igreja capaz de aproximar-se de cada homem e de caminhar ao lado dele. Especialmente, parecem ser duas as características peculiares que emergem deste retrato: o acompanhamento e o discernimento (o «decifrar»). O discernimento espiritual evangélico, radicado na espiritualidade inaciana de Francisco, procura reconhecer a presença do Espírito na realidade humana e cultural, a semente já lançada da sua presença nos acontecimentos, nas sensibilidades, nos desejos, nas tensões profundas dos corações e dos contextos sociais, culturais e espirituais.

A Igreja de Francisco é uma Igreja em discernimento, que vive com os olhos abertos na constante atenção a Deus, capaz de ler com realismo os acontecimentos, de estar atenta àquilo que a rodeia. Não falamos de um sentimento espontâneo, mas de uma disciplina interior evangélica que sabe ler o que acontece e sabe compreender os sinais.

O discernimento, ainda segundo a tradição inaciana, deve ser guiado pela «consolação» que, segundo Inácio de Loiola, «inflama a alma» (Exercícios Espirituais (EE), 316), aquece o coração. Portanto, o apelo de Bergoglio: «Ainda somos uma Igreja capaz de aquecer o coração? Uma Igreja capaz de reconduzir a Jerusalém? De voltar a acompanhar a casa?» Portanto, com panhia, escuta e calor contra a distância, a frieza e a rigidez: «Precisa-se de uma Igreja que volte a dar calor, a acender o coração.»

Sobretudo, deve-se notar a confiança bergogliana em reconhecer, com delicado discernimento, de maneira aguda e talvez imprevisível, que as razões pelas quais as pessoas se afastam da Igreja «já contêm em si mesmas as razões para um possível regresso». Aqui, Francisco parece querer dizer que é preciso dar crédito às pessoas, por vezes também às suas tentações centrífugas, que podem ser motivadas e conter um desejo de autenticidade que deve ser preservado, guardado e que permanece importante para uma vida cristã consciente e plena.

Trata-se de um ponto a aprofundar, sobretudo numa perspetiva missionária. O esforço que Francisco pede é, realmente, de alto perfil. Aqui está um dos maiores desafios do seu pontificado: a transmissão da fé num mundo complexo, em que é difícil separar nitidamente as luzes das sombras. Bergoglio é guiado pelo chamado presupponendum inaciano, uma questão prévia aberta e positiva acerca das atitudes, das palavras e da busca sincera dos factos. De facto, escreve Inácio: «Todo o bom cristão deve estar mais propenso a salvar a afirmação do próximo do que a condená-la; e, se não puder salvá-la, procure esclarecer em que sentido o outro a entende para, se a entender mal, o corrigir com amor; e, se não bastar, procure todos os meios convenientes para que, entendendo-a bem, se salve» (EE, 22).

Finalmente, o Papa completa este retrato missionário da Igreja de que o nosso tempo «necessita»: «Precisa-se de uma Igreja capaz de ainda voltar a dar cidadania a muitos dos seus filhos que caminham como num êxodo.» Portanto, não basta ouvir as pessoas, mesmo que se trate de uma conditio sine qua non. Também é necessário entrar na zona de sombra, na noite do espírito. Só a proximidade física ao longo do caminho, mesmo na escuridão, e não apenas a escuta, está em condições de compreender a partir de dentro. Por isso, o Papa fala não só de uma Igreja que saiba aquecer o coração, mas que também seja capaz de «dar cidadania» aos seus filhos em êxodo. Não há paternalismo nas suas palavras. Se a Igreja escuta, acompanha e aquece a alma é para dar cidadania adulta aos seus filhos, não para deixá-los num estado de incubação permanente.

Consequentemente, a eclesiologia do papa Bergoglio radica no episódio paradigmático de Emaús, pois é nele que encontra o seu modelo positivo, capaz de falar aos homens do nosso tempo.

 

Uma Igreja «samaritana» em exercícios espirituais

É esta a perspetiva que faz compreender o alcance das palavras do Papa na conferência de imprensa durante a viagem de regresso a Roma. Ao responder a Ilze Scamparini, correspondente da TV Globo, acerca de um suposto «lobby gay» existente no Vaticano, depois de ter afirmado que, se  por acaso houvesse, o verdadeiro problema seria o da existência de um lobby, pronunciou esta frase: «Se uma pessoa for gay e procurar o Senhor e tiver boa vontade..., quem serei eu para julgá-la?» Esta resposta do Pontífice fez compreender que o que é realmente importante para ele é o anúncio do Evangelho «sem fronteiras», mesmo quando se tocam contextos existenciais que poderiam despertar incertezas ou dúvidas. Embora − afirmou o Papa − sobre o tema dos casamentos entre pessoas do mesmo sexo, «a Igreja já tenha uma posição clara», também é verdade que não há limites para a proclamação do Evangelho.

A expressão «quem sou eu para julgar?» propôs um modo um pouco diferente de enfrentar a questão, mais ligado ao acompanhamento ao longo do caminho. Eis o foco da questão: a relação com Deus, de uma pessoa que anda à sua procura. Portanto, não há tabus – e a homossexualidade não deve nem pode ser um tabu −, mas fronteiras que a Igreja é chamada a habitar, anunciando com misericórdia e exigência o Evangelho.

Continuando a responder à pergunta de Ilze Scamparini, o Papa deu outra grande «lição» de misericórdia que, no entanto, também contém em si implicitamente uma imagem de Igreja. Muitas vezes, na Igreja – disse o Papa −, «procuram-se os “pecados de juventude”, por exemplo, e publica-se isso». E prosseguiu neste ponto: «Mas, se uma pessoa, leiga ou padre ou freira, fez um pecado e, depois, se converteu, o Senhor perdoa; e quando o Senhor perdoa, o Senhor esquece, e isto para a nossa vida é importante. Quando vamos confessar-nos e dizemos: “Pequei nisto”, o Senhor esquece, e nós não temos o direito de não esquecer, porque corremos o risco de que o Senhor não se esqueça dos nossos pecados.»

Lembremo-nos de que este apelo à misericórdia está contido precisamente no lema episcopal do Papa: Miserando atque eligendo. Foi tirado das Homilias de São Beda, o Venerável que, ao comentar o episódio evangélico da vocação de Mateus, escreve: «Jesus viu um publicano e como olhou para ele com sentimento de amor e o escolheu, disse-lhe: Segue-me (Vidit ergo Iesus publicanum et quia miserando atque eligendo vidit, ait illi: Sequere me).»

As raízes desta visão da Igreja feita de pecadores perdoados e escolhidos, samaritana e extremamente misericordiosa, devem, uma vez mais, ser procuradas na formação remota de Francisco, ligada à tradição inaciana do discernimento e da procura da vontade de Deus, sobre a pessoa singular a quem Deus se comunica pessoalmente. É a perspetiva dos Exercícios Espirituais de Santo Inácio de Loiola, que leva sempre muito a sério a subjetividade de quem, apesar da perceção da sua indignidade, procura abrir-se à vontade de Deus sobre a sua vida. De facto, mais do que reivindicar uma atividade indiscutível da vida cristã a que o cristão deve conformar-se, a perspetiva inaciana prefere continuar aberta ao Espírito que fala ao crente através da vida, na originalidade das situações que ele vive, tanto na sua atualidade histórica como na comunidade dos crentes que é a Igreja. Neste contexto, a mensagem da Igreja, mesmo a mensagem moral, já não pode ser exposta a uma interpretação ideológica porque a pregação desta mensagem não pode prescindir da preocupação pastoral, do bem das pessoas a quem se dirige.

Para Bergoglio, a Igreja vive deste clima de «exercício espiritual» permanente e a sua missão está marcada pela abertura radical à ação de Deus em cada ser humano. Por conseguinte, a pertença à Igreja é mais do que uma adesão a algo de já dado, é um processo de crescimento numa relação profunda que acontece a partir da condição, de luz ou de sombra, que cada um vive.

A tensão da Igreja que Bergoglio tem em mente é a do coração, que o Senhor «aquece». Portanto, é uma experiência que tende para a consolação, para a alegria. É a experiência de que o Documento de Aparecida apresentou uma síntese como fruto do encontro direto com o Senhor: «A vida em Cristo contém a alegria de comer com Ele, o entusiasmo de melhorar, o prazer de trabalhar e de aprender, a satisfação de servir quem está em necessidade, o contacto com a natureza, o entusiasmo pelos projetos comunitários, o prazer da sexualidade vivida no sinal do Evangelho, e todas as outras coisas que o Pai nos dá como sinal do seu amor sincero. Podemos encontrar o Senhor precisamente no meio das alegrias da nossa existência limitada, o que faz nascer no nosso coração uma gratidão sincera.»

Portanto, a misericórdia da «Igreja samaritana» tende a tratar das feridas de quem está ou se sente afastado ou excluído, para que o homem possa viver esta vida feliz, integral, plena, uma «vida em abundância» (n. 356). Como se lê na encíclica Lumen fidei (n. 53), a fé é «a dilatação da vida».

 

In O sonho do papa Francisco - Os jovens no coração da Igreja, ed. Paulinas
24.02.14

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Capa

O sonho do papa Francisco
Os jovens
no coração da Igreja

Autor
Antonio Spadaro

Editora
Paulinas

Ano
2014

Páginas
110

Preço
5,20 €

ISBN
978-989-673-359-9

 

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