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Onde está Deus?, onde está o homem?

Onde está Deus?, onde está o homem?

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Diante dos totalitarismos e outros acontecimentos trágicos vividos no século passado, mas também de acontecimentos desumanos que se renovam nos nossos dias, parecer emergir quase espontânea a pergunta: «Onde está Deus? Porque não intervém?». Talvez mesmo na nossa vida conheçamos horas de provação em que nos colocamos interrogativas análogas. Por vezes estas perguntas surgem também nas biografias de homens e mulheres que acusam atravessar uma noite escura, uma noite em que falta a luz, na qual Deus parece ausente e sobretudo taciturno, mudo, como se tivesse colocado entre si e o crente uma espessa nuvem que impede qualquer tipo de relação, inclusive a da palavra. Deus cala, não se faz ouvir, obscurece o seu rosto..., e o crente geme, sofre esta ausência de Deus, até à tentação do desespero, de ceder ao nada que faz dizer no coração: «Deus não existe, não há nada, nada vale a pena».

Hoje os crentes cristãos conhecem, pelo menos um pouco, a tradição judaica que define o próprio Deus como "'El mistatter", «Deus que se esconde» (Isaías 45, 15); conhecem o grito, trazido por Elie Wiesel, de quantos na fogueira da "Shoah" ousavam a pergunta: «Onde está Deus?». Pelo que se tornou fácil, demasiado fácil, dizer, como muitas vezes aflora também nos lábios de cristãos normais: «Deus cala-se, Deus não me fala, Deus tortura-me ao não me responder, Deus está mudo». Regista-se também uma certa tendência a culpar Deus por parte de cristãos que, lendo os escritos em que se descrevem as crises espirituais de madre Teresa de Calcutá ou de outras testemunhas da fé, se sentem autorizados a invocar a própria experiência e, portanto, a afirmar o silêncio de Deus. Segundo alguns denominados teólogos, pois, este silêncio seria querido precisamente por Deus, que faz sofrer o crente em vista da sua purificação, de um caminho de fé mais meritório, de um autêntico jogo de amor entre amante e amado, que se alimenta de ocultação e manifestação. Há quem chegue a pensar-se participante na escura noite de Jesus, na vigília da sua paixão, a noite da «agonia» (Lucas 22, 44), da sua «alma triste de morte» (Marcos 14, 34; Mateus 26, 38; cf. Salmo 42,6.12; 43,5), ou inclusivamente participante da hora da cruz e do grito: «Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?» (Marcos 15, 34; Mateus 27, 46; Salmo 22, 2).



Uma grande lição já tinha sido dada por Primo Levi, um não crente, que não se perguntava, como Elie Wiesel, crente, onde estava Deus em Auschwitz, mas sobretudo onde estava o homem: onde é que andava a humanização na "Shoah"? Como pôde o homem tornar-se carrasco e aniquilar a tal ponto o outro, o homem seu irmão?



Confesso: estes "testemunhos" ou "confidências-confissões" aborrecem-me muito e parecem-me contemplações narcisísticas que colocam em evidência protagonismos perigosos, não só para a fé, mas também para as relações humanas que possam brotar de tais pretensões espirituais. E ouso pronunciar algumas palavras sussurradas, sem pretensão, porque quanto muito são palavras pronunciadas "kivjaqol", diriam os judeus, "por assim dizer".

Antes de tudo pode dizer-se, como fez João Paulo II na audiência geral de 11 de dezembro de 2002, que «Deus está em silêncio, não se revela mais e parece estar encerrado no seu céu, quase desgostoso do agir da humanidade»? Pode compreender-se este grito de Wojtyla como literário, como um grito enfático a ler na sua intenção, mas certamente não pode ser entendido como afirmação de que Deus se teria agora retirado de cena. É verdade que se pode recorrer a textos presentes na Bíblia, embebidos no mesmo sabor, do mesmo ímpeto, do mesmo protesto. Bastaria ler Jeremias, o profeta ministro da "condenação de Deus" sobre o seu povo (não era por acaso que naquela ocasião o papa estava a comentar Jer 14, 17-21), para se encontrar diante de expressões análogas, senão até mais fortes.

«[Deus] conduziu-me e fez-me caminhar
nas trevas e não na luz.
Ele foi para mim qual urso de em­boscada,
como um leão no esconderijo.
Quebrou-me os dentes com uma pedra
e mergulhou-me na cinza» (Lamentações 3, 2.10.16).

Assim diz o Senhor: «Não intercedas por este povo, não rogues, não supliques por ele, porque no tempo da sua desgraça, quando clamarem por mim, Eu não os ouvirei» (Jeremias 11, 14; cf. 7, 16).



Deus, mesmo quando vê o sofrimento, a provação do seu povo ou do crente singular, não faz nada e cala-se, não porque seja indiferente ou esteja irado, mas porque respeita o mundo, a história, respeita a grandeza e a fragilidade dos humanos



Mas estas expressões passionais de Jeremias pertencem ao género literário do "riv", da contestação, são expressões hiperbólicas próprias da linguagem amorosa na hora da traição e da rotura das bodas: linguagem antropomórfica emprestada a Deus para dizer o seu amor possessivo, a sua paixão, mas não asserções sobre Deus, sobre a sua presença e sobre a sua relação connosco! Se Deus cala, ou melhor, parece calar e fazer silêncio, é só porque não há ninguém que o escuta e o interroga, como já havia observado com finura Massimo Cacciari. Por outro lado, uma grande lição já tinha sido dada por Primo Levi, um não crente, que não se perguntava, como Elie Wiesel, crente, onde estava Deus em Auschwitz, mas sobretudo onde estava o homem: onde é que andava a humanização na "Shoah"? Como pôde o homem tornar-se carrasco e aniquilar a tal ponto o outro, o homem seu irmão?

Não quero defender Deus, quero só que Ele não seja acusado como defesa de quem o incrimina. À pessoa normal, simples, que às vezes afirma sofrer o silêncio de Deus, de não sentir Deus presente, que acusa Deus de permanecer distante e mudo, com muito respeito pela sua dor e sem nenhum juízo ocorre-me perguntar: «Não será talvez ela a ser surda, a não escutar?». Não consigo pensar que Deus seja capaz de interromper o seu amor, de querer estar mudo ou oculto para fazer sofrer o crente que o invoca e que está na provação. É verdade que a expressão «quem é como ti entre os deuses, Senhor?» (Êxodo 15, 11) foi também lida por alguns rabinos: «Quem é como Tu entre os mudos, Senhor?»; mas isto quer só significar que Deus, mesmo quando vê o sofrimento, a provação do seu povo ou do crente singular, não faz nada e cala-se, não porque seja indiferente ou esteja irado, mas porque respeita o mundo, a história, respeita a grandeza e a fragilidade dos humanos. Se há uma voz de Deus - não o esqueçamos - é «voz de silêncio subtil, detida» (1 Reis 19, 12), porque Deus fala também no silêncio, basta saber escutar o silêncio. Se Deus ficasse realmente calado, então o crente cairia rapidamente na cova, como diz o salmista: «Se tu permaneceres mudo, descerei à cova!» (Salmo 28, 1).



Decisivo na vida do cristão é continuar a bater, a perguntar, a rezar ao Senhor, não temer colocar toda a nossa fragilidade diante dele, procurarando permanecer firmes na adesão a Ele



O verdadeiro problema não é, portanto, o silêncio de Deus, mas a não escuta do homem, do crente. O Senhor não se esconde para nos meter à prova, para testar se o amamos ou não: quem conhece o sofrimento, a fadiga da dúvida, não pode pensar que seja Deus a querer isso! A noite, a obscuridade da fé, o silêncio de Deus são apenas aspetos do enigma do mal: somos criaturas frágeis e capazes de pecar, e o nosso pecado começa precisamente com a não escuta de Deus... Eis porquê a provação, o sofrimento pode ser sem Deus: este é só um agravamento do mal, da provação, mas como é verdade que Deus não quer o nosso sofrimento, assim não quererá nunca agravá-lo com o seu silêncio e a sua ausência. O nosso caminho de homens e mulheres é um caminho por vezes na noite funda, por vezes na névoa, porque não sabemos ver bem, não sabemos ouvir bem. O silêncio de Deus acolhido como nossa não escuta, como nossa surdez, faz parte do nosso caminho fatigante, do mester de viver como humanos e como cristãos.

A tal propósito, na espiritualidade católica do segundo milénio foram feitas inteligentes considerações sobre algumas situações em que se pode encontrar o crente, situações de obscuridade, de não perceção da presença de Deus, de tristeza que parece perder toda a esperança de socorro. Estas situações foram arrumadas sob a categoria de "desolação espiritual", condição que quem tem uma vida espiritual antes ou depois conhece, como provação forte ou fraca, breve ou prolongada. Na desolação, quando Deus parece distante, parece calar e o sofrimento parece arrasar-nos, é preciso somente ter viva a relação com Ele, através do gemido, do grito, do pranto, por vezes mesmo com palavras que invocam a morte. Decisivo na vida do cristão é continuar a bater, a perguntar, a rezar ao Senhor, não temer colocar toda a nossa fragilidade diante dele, procurarando permanecer firmes na adesão a Ele. Jesus, mesmo quando não ouviu a voz do Pai - que aliás lhe tinha falado no Batismo e na transfiguração -, dizendo-lhe «porque me abandonaste?», não diminui a fidelidade ao Pai, mesmo quando parecia que Ele o tinha abandonado. Desta desolação espiritual falou várias vezes o papa Francisco, discípulo de Inácio de Loyola. As suas recente palavras a esse respeito, nas quais fornece um diagnóstico e uma terapia da desolação, indicando também o comportamento que os irmãos e as irmãs em Cristo devem ter para quem conhece tal prova:



«"Sou contado entre aqueles que descem à cova, sou como um homem já sem forças". (...) Diante de uma pessoa que está nesta situação, as palavras podem fazer mal. É preciso apenas tocá-la, estar próximo, de modo que sinta a proximidade, e dizer aquilo que ele pergunta, mas não fazer discursos»



«A desolação espiritual faz-nos sentir como se tivéssemos a alma esmagada, que não quer viver. "Melhor é a morte!", é a revolta de Job; é melhor morrer do que viver assim (...). A liturgia de hoje faz-nos ver como é preciso comportar-se com esta desolação espiritual, quando estamos mornos, abatidos, sem esperança. Uma ajuda vem do salmo responsorial: "Chegue a ti a minha oração, Senhor". Portanto a primeira coisa a fazer é rezar. Oração forte, forte, forte (...). O Salmo 87 (88) que recitámos juntos ensina-nos como rezar no momento da desolação espiritual, da escuridão interior, quando as coisas não vão bem e a tristeza entra muito forte no coração. "Senhor, Deus da minha salvação, diante de ti grito dia e noite": as palavras são fortes! (...) Em suma, é uma oração que consiste em bater à porta, mas com força: "Senhor, estou cheio de desgraças. A minha vida está à beira dos infernos. Sou contado entre aqueles que descem à cova, sou como um homem já sem forças". (...) Diante de uma pessoa que está nesta situação, as palavras podem fazer mal. É preciso apenas tocá-la, estar próximo, de modo que sinta a proximidade, e dizer aquilo que ela pergunta, mas não fazer discursos. (...) Qundo uma pessoa sofre, quando está na desolação espiritual, deve falar-se o menos possível e deve-se ajudar com o silêncio, a proximidade, as carícias, a sua oração diante do Pai. (...) O Senhor nos ajude: primeiro, a reconhecer em nós os momentos da desolação espiritual, quando estamos na escuridão, sem esperança, e perguntarmo-nos por quê; segundo, a rezar como ensina a liturgia de hoje; terceiro, quando me aproximo de uma pessoa que sofre, seja por uma doença ou por qualquer outra circunstância, mas que está na desolação: fazer silêncio. Um silêncio com muito amor, proximidade, carícias. E não fazer discursos que não ajudam, mas fazem mal» (meditação matutina na capela da Casa de Santa Marta, 27.9.2016).



O amor de Deus não é merecido, e nenhum de nós pode pensar ter em si próprio um amor que Deus nega, detesta ou não vê, porque o seu amor é maior que o nosso coração e que o nosso amor



Avançando nos anos e navegando no mar da vida, a todos é dado conhecer tempestades e naufrágios. Então é espontaneamente que dizemos, como fizeram os discípulos: "Senhor, porque dormes? Não te importa que eu pereça? Onde estás? Porque te calas?" (cf. Salmo 44, 24; Marcos 4, 38 e paralelos). Mas também se na linguagem de uma relação amorosa usamos estas expressões, que talvez se aproximem da blasfémia, não podemos pensar que Deus tenha a possibilidade de interromper o seu amor, de fechar para sempre uma relação, de ver o ser humano sofrer e compadecer-se disto. O amor de Deus não é merecido, e nenhum de nós pode pensar ter em si próprio um amor que Deus nega, detesta ou não vê, porque o seu amor é maior que o nosso coração e que o nosso amor (cf. 1 João 3, 20).

Agrada-me concluir estas minhas reflexões citando um famoso texto anónimo: «Sonhei que caminhava à beira-mar com o meu Senhor e revia no ecrã do céu todos os dias da minha vida passada. E por cada dia passado apareciam na areia quatro pegadas, a minha e a do Senhor. Mas em alguns trechos do caminho vi só duas pegadas, precisamente nos dias mais difíceis da minha vida. Então disse: "Senhor, eu escolhi viver contigo e tu prometeste-me que estarias sempre comigo. Porque é que me deixaste só precisamente nos momentos mais difíceis?". E Ele respondeu-me: "Filho, tu sabes que te amo e nunca te abandonei: os dias em que vês apenas duas pegadas na areia são precisamente aqueles em que te levei ao colo"».

Sim, o Senhor abre sempre para nós o caminho e precisamente nas horas mais obscuras é Ele que nos leva ao colo!



 

Enzo Bianchi
Prior do Mosteiro de Bose, Itália
In "Monastero di Bose"
Trad.: Rui Jorge Martins
Publicado em 17.11.2016 | Atualizado em 20.04.2023

 

 
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