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Leitura: "Peregrinação - Testemunhos que nos unem"

Leitura: "Peregrinação - Testemunhos que nos unem"

Imagem Capa | D.R.

Alexandra Lucas Coelho, Ana Zanatti, Helena Roseta, Inês Pedrosa, Jaime Nogueira Pinto, João Botelho, João Canijo, João Tordo, Lia Gama, Lídia Jorge, Margarida Rebelo Pinto, Maria Antónia Palla, Maria do Céu Guerra, Maria Teresa Horta, Mário Zambujal, Patrícia Reis, Rui Tavares, Rui Zink, Tozé Brito e Vitorino Salomé são algumas das sete dezenas de personalidades do meio artístico, cultural e académico português que aceitaram contar à jornalista e escritora Leonor Xavier, «uma mulher de fé», as ressonâncias afetivas, literárias e espirituais da peregrinação.

Não foi evidente a intuição da autora, que durante mais de um ano pensou «em como poderia celebrar a vinda do papa Francisco a Portugal», nos próximos dias 12 e 13 de maio, por ocasião do centenário das aparições em Fátima. Depois de «dúvidas, muitas hesitações e algumas vigílias», está publicado o livro "Peregrinação - Testemunhos que nos unem", da Oficina do Livro, que o padre José Tolentino Mendonça vai apresentar a 26 de março, em Lisboa.

«Pensei em pedir um testemunho sobre peregrinação a crentes e não crentes. Pessoas públicas de várias gerações, de posições e alinhamentos políticos possivelmente opostos. Eu previa atividades e profissões muito diferentes, mas quase todos são da cultura, da comunicação, da criatividade. Ao longo do trabalho, tive sempre o cuidado de manter um número igual de homens e mulheres, pedindo-lhes que me confiassem o seu testemunho. Acreditei que, nas tantas diferenças de ânimos e crenças, modos e falas, poderiam ser meus cúmplices. Desde que me conheço e creio na escrita como forma de intervenção, tenho procurado descobrir a expressão da unidade, da diversidade de todos nós, portugueses», escreve Leonor Xavier na introdução.

Na «fé dos crentes e nas convicções dos não crentes», a autora, entre testemunhos orais e escritos, foi «surpreendida pela sinceridade, às vezes quase segredada», que revela «os traços fundos» da identidade portuguesa. Desses depoimentos apresentamos os Gastão Cruz, Leonor Silveira, Lídia Jorge e Pedro Abrunhosa.



«A ideia de peregrinação em si é fascinante. É a demanda, é na literatura a interrogação. Há esse lado de aventura que está na base da literatura. A poesia é a aventurada linguagem, toda a literatura é isso»



«Poucos, entre os não crentes, omitiram ou recusaram ter passado por tempos de infância ou juventude em que uma formação cristã existisse no espaço da casa e da família», sublinha a jornalista, que cita a escritora Agustina Bessa-Luís: «O português é oficialmente católico por educação, por cultura, mas deixa uma certa margem de heresia que é essencialmente para um estado criador, no fim de contas».

 

Gastão Cruz
Poeta

«Eu não sou religioso, deixei de ser muito cedo. Mas a minha avó gostava muito de ir a Fátima e, quando fiz o 7.° ano, lá fui com ela, com a minha mãe e outros familiares. A minha experiência de peregrinação religiosa resume-se assim. Fora isso, o tema Peregrinação tem um recorte literário desde o Fernão Mendes Pinto ao "Finisterra", do Carlos Oliveira. Que tem a ver com a imagem de peregrinos, não se sabe que peregrinos são aqueles, que população é essa que se move. Esses peregrinos têm a ver com ele, com a experiência dele, na medida em que ele era daquela região de Gândara, da Figueira da Foz. Talvez tivesse essa imagem no sentido das migrações. As populações deslocam-se por razões económicas, como acontece com aqueles gaibéus de Alves Redol. O neorrealismo deu muita atenção a estas deslocações, que têm que ver com as personagens.

A ideia de peregrinação em si é fascinante. É a demanda, é na literatura a interrogação. Há esse lado de aventura que está na base da literatura. A poesia é a aventurada linguagem, toda a literatura é isso.

No sentido mais concreto, não tenho esse tipo de vivência religiosa. Mas a poesia é de algum modo uma forma de peregrinação. É a pesquisa, é a busca de fazer diferença, é a procura da inovação. Sim, a poesia é peregrinação.»



«É muito complicado encontrarmo-nos sozinhos através das nossas angústias, das nossas perdas, não ter o que há de repetitivo no dia a dia e pensar sobre nós próprios. Muitas vezes não queremos fazê-lo, não é evidente. A peregrinação, além da crença, tem isso de principal»



Leonor Silveira
Atriz

«Sobre a palavra peregrinação. Há dois ou três dias, eu estava num grupo de amigos católicos e não católicos, todos falavam de peregrinação e de redenção, alguns tinham-se encontrado a elas e a eles próprios ao longo do caminho. Eu nunca me pronunciei, como se não entendesse a conversa, por não ter sentido fisicamente a palavra dos que fizeram o Caminho de Santiago. Tu não tiveste o sofrimento físico, e portanto não participas nem falas. Eu acredito que querer fazer uma peregrinação te coloque, à partida, num espaço interior. Será que se mantém, que é necessário? Pode ser ou não.

Não sei se na marcha pode haver um caminho de contemplação, de observação, de silêncio. Quem faz a peregrinação diz que isso é o que acontece, sobretudo quando se vai a Santiago. Tenho curiosidade, mas não tenho apelo por experimentar. Ao mesmo tempo, parece-me que é um momento muito enriquecedor na vida das pessoas. Não há ninguém que regresse igual, acreditando ou não. É um momento de liberdade em que dás por ti em conversa sem fronteiras e sem medo. Há um completo abandono do dia a dia. Isso parece-me que tem uma força, uma energia fora. do comum.

É muito complicado encontrarmo-nos sozinhos através das nossas angústias, das nossas perdas, não ter o que há de repetitivo no dia a dia e pensar sobre nós próprios. Muitas vezes não queremos fazê-lo, não é evidente. A peregrinação, além da crença, tem isso de principal. Não acho que seja uma coisa portuguesa. Quando falas com polacos ou checos nos países dos Balcãs, ou com espanhóis, a peregrinação para eles é um hábito. A multiculturalidade tem raízes muito fortes na Europa. Estive nesses países e fiquei surpreendida ao perceber que não é uma coisa só nossa. A deslocação a andar é um conceito de alma, por isso é muito humano.



«Depois há o outro sentido, aquele que toda a gente lhe dá. O sentido da interioridade. António Alçada Baptista acrescentou-lhe o adjetivo "interior", o qual ficou para sempre. E aí, claro que numa segunda instância mais íntima, peregrinação é sinal de vida vivida, pensada, refletida»



Na condição de ator, tudo aquilo de que se falou são lugares onde se tem de ir. O silêncio, o pensamento, os seus instrumentos, os ensinamentos da vida são o que aplica aos seus personagens. Tem-se dor física e emocional pelos sucessos ou pelos fracassos.»

 

Lídia Jorge
Escritora

«Peregrinação. A palavra diz-me tanto, que não se pode imaginar. Porque a associo à obra do Fernão Mendes Pinto, de uma forma muito intensa. Tem um significado muito objetivo, a "Peregrinação" é aquele livro enorme, aquele calhamaço em dois volumes, que estudei durante dois anos. A minha tese de licenciatura foi feita sobre a "Peregrinação", de Fernão Mendes Pinto. Aquela viagem na índia, na China, no Japão, marcou-me para toda a vida.

Marcaram-me aqueles lugares descritos em crónica literária, porque aquilo é uma grande crónica. Marcaram-me porque é uma crónica que, numa primeira abordagem, parece ser da viagem meramente geográfica, mas que é uma viagem antropológica e social importantíssima, é uma crónica da época. Não se pode compreender o homem de então se não se tiver lido este livro. Depois, porque é o reverso humano d'"Os Lusíadas". É o Outro lado, é o reverso literário, também. Se "Os Lusíadas" são o suprassumo da construção literária, a "Peregrinação" é o oposto, pretende ser o grau zero do literário. Essa verdade humana que está ali tocou-me muito. Como é que uma viagem de matança na passagem do séc. XVI para o XVII pode ser tão forte?

A "Peregrinação", de Fernão Mendes Pinto, marca a historiografia portuguesa de um tempo com uma espécie de profundidade que não existe na época. No princípio do séc. XVII, foi um "best-seller" de sucesso no mundo conhecido da altura, quando se começou a perceber a primeira globalização. Os primeiros efeitos dessa primeira globalização são conhecidos no Ocidente a partir da "Peregrinação". Mas o Fernão Mendes Pinto é muito pouco distinguido, está adormecido. Tem passagens notáveis sobre o conquistador.



«Em Fátima há o sentido da globalidade da multidão, sente-se o que é a humanidade. É um conjunto infinito de seres humanos que procuram um sentido para si e para a própria humanidade como espécie»



É muito português, mostra a parte cínica dos portugueses, que querem fazer-se passar por bonzinhos. Em nome de Deus, pedem paciência aos orientais e aos outros, para se deixarem roubar. Havia piratas portugueses, como um chamado António Faria, que eram terríveis. Dizia-se que Afonso de Albuquerque era conhecido na língua local como o Leão dos Roubos do Mar. O reis mandavam piratas bárbaros roubar em nome da Coroa.

O que acontecia é parecido com o que se passa hoje no mundo da finança. Na altura, era o poder régio que mandava o pirata trabalhar para a Coroa, tudo era então permitido. Hoje acontece ao contrário, é o mundo da finança que manda no mundo da política, para a política permitir e patrocinar o assalto que reverte a favor das finanças. O poder político é um instrumento da finança, antigamente era ao contrário, o poder político mandava os salteadores roubarem para o rei. O Afonso de Albuquerque era um pirata dos mares.

A palavra Peregrinação está iluminada na minha vida por esses dois volumes de capa castanha, com o texto original e com uma versão integral que reproduz, na página par, a versão primitiva, e na ímpar, a versão modernizada do texto. É a "Peregrinação", de Fernão Mendes Pinto, numa edição da Sociedade de Intercâmbio Cultural Luso-Brasileiro, publicada em meados do século XX, mais precisamente em 1952 e 1953, conhecida como a edição de Adolfo Casais Monteiro, por ter sido ele a conceber e a prefaciar a edição.

Isto é a primeira instância, depois há o outro sentido, aquele que toda a gente lhe dá. O sentido da interioridade. António Alçada Baptista acrescentou-lhe o adjetivo "interior", o qual ficou para sempre. E aí, claro que numa segunda instância mais íntima, peregrinação é sinal de vida vivida, pensada, refletida. É um sinal de busca de um sentido. Em Fátima há o sentido da globalidade da multidão, sente-se o que é a humanidade. É um conjunto infinito de seres humanos que procuram um sentido para si e para a própria humanidade como espécie.»



«Tenho uma casa mesmo no caminho romano e recolho peregrinos de Santiago. Eles entram e são recebidos, em vez de irem aos albergues, tenho tido mexicanos, italianos, holandeses»



Pedro Abrunhosa
Músico

«Eu tenho um poema no meu último disco que começa assim: "Podes rezar ao teu Deus que eu rezo ao meu/ Talvez o meu Deus seja o teu/ Porque só há um Deus no nosso céu/ Chama-se A. Mor". A SIC fez um "clip" pelos refugiados, comovente. Com imagens duras. Quando penso em peregrinação, a primeira coisa que salta à cabeça é a busca de um espaço interior com um propósito de pacificação, de redenção, um espaço de iluminação interior. E tudo isto pode acontecer na pessoa que vai em peregrinação. Não é a busca de Deus, é a busca de um conhecimento.

Várias vezes, no caminho de Santiago, aparece escrito um verso do poeta Antonio Rocha, que não era galego mas andaluz, que diz: "o caminho faz-se andando". Compostela tem mais a ver com o caminho do que com o destino. É o maior túmulo de um santo encontrado no séc. IX na Meseta Galega num penedo. Numa época de grande convulsão na Galiza, de divisão na definição da identidade galega e portucalense, foi politicamente conveniente que esse túmulo fosse encontrado. E também historicamente, porque havia a intenção de evitar que os peregrinos fossem para a Terra Santa e desviassem para Roma os percursos de peregrinação. Não sabemos se a lenda é verdadeira, mas o Caminho faz-se, sempre.

Aleluia quer dizer paz em todas as religiões, é uma palavra que os judeus dizem em iídiche. Aquilo que nos une é a paz. É por isso que na canção "A.Mor" eu digo que o amor é o deus por que todo o mundo peregrina, à procura de amor e de paz. Tenho uma casa mesmo no caminho romano e recolho peregrinos de Santiago. Eles entram e são recebidos, em vez de irem aos albergues, tenho tido mexicanos, italianos, holandeses.

Nos meus concertos, fico impressionado quando faço canções de perda, de morte, e se faz um silêncio total e se consegue até ouvir cair um alfinete. Isto acontece em concertos com quarenta mil pessoas na Foz, no Porto ou com trinta mil em Macedo de Cavaleiros, ou com cento e vinte mil na Avenida dos Aliados, no fim do ano. As pessoas precisam de se emocionar, a música serve para aplacar a dor coletiva.

Há uma diferença entre ser monge na Cartuxa e ir em peregrinação a Fátima.

Estar presente em Fátima no meio de trezentas mil pessoas é avassalador. Mas, sem desprimor, essa comunhão coletiva pode acontecer de uma maneira socialmente diferente num espetáculo.»



 

SNPC
Publicado em 22.03.2017

 

Título: Peregrinação - Testemunhos que nos unem
Autor: Leonor Xavier
Editora: Oficina do Livro
Páginas: 192
Preço: 13,05 €
ISBN: 9789897416873

 

 
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