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Cinema

Pietà, «se isto é um homem»? (1)

A visão estetizante que perpassa as sociedades contemporâneas vela o “esplendor do caos” (Eduardo Lourenço), do trágico ou do violento. É necessária muita incredulidade para olhar para as grandes narrativas da humanidade (sacro-profanas), e aí, apenas ver anestesicamente o sentido do real. A violência é intrinsecamente má, seguramente? Nenhum humano é intrinsecamente mau, certo? As sociedades não são naturalmente más, de acordo? A aceitação pura destes pontos poderá gerar os mais diversos determinismos (biológicos, sociais ou éticos). Em Deus e o bode expiatório, René Girard coloca uma questão fundamental: “Se a humanidade se perpetua é porque um qualquer procedimento é interrompeu a vingança, impedindo os homens de se matarem uns aos outros. Então, coloca-se a questão: “O que impediu os homens de se massacrarem completamente, uma vez que a vingança é infinita?”. O outrem? O humano? O sacro ou profano? Deus? A Natureza? A violência surge no seu esplendor trágico-dramático impossível de remover, porque o “desejo mimético” é um mecanismo comum e transversal a todos os indivíduos. E então fingimos que a violência diária não existe ou que ela é simplesmente produto de naturezas humanas corrompidas. Problema maior, e aí inevitavelmente trágico, seria o de considerar a perversão social o somatório da perversão individual!

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Como dar a conhecer esse esplendor de violência que por toda a parte relativiza o sentido do humano? O teólogo, João Duque, vê na arte a função de desvelamento do enigma: “ao olharmos Cristo desfigurado, não deixarmos de olhar para o homem que está à nossa volta, cuja desfiguração está tão escondida e tão invisível que urge encontrá-la. A arte tem esta "função" de trazer para fora a desfiguração, para que, olhando-a, a possamos ver, sentir e interpretar como um apelo permanente à paz e à justiça”. Esta urgência de encontrar a desfiguração é o grito profético contra toda a injustiça desumanizadora, que o recente e controverso filme Pietà procura interpretar. Basta percorrer, no contexto da tradição cristã, as páginas do Evangelho para perceber que a verdade só é possível se existe o “ágape” justificativo (amor-que-salva-justamente), não simplesmente piedoso, mas inteiramente oblativo; não em função de uma redenção desmesurada, mas fruto da absoluta gratuidade que se inicia no ato generativo de Deus. Mas o perdão obtém-se perdoando com-passivamente: “se fores apresentar a tua oferta sobre o altar e ali te recordares que o teu irmão tem alguma coisa contra ti, deixa lá a tua oferta diante do altar, vai primeiro reconciliar-te com o teu irmão e vem depois apresentar a tua oferta” (Mt 5).

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Quando dizemos que a morte de cruz é morte radical em vista de um sacrifício expiatório de um deus que se compraz matando o próprio Filho, reduz-se essa entrega a uma vitimização redentora do mundo. E assim faz sentido a pergunta inicial do romance A um deus desconhecido de John Steinbeck: “a que deus prestas sacrifícios?” Ou o amor de Deus é absoluto, que gera amorosamente para a vida, ou então é violentação da dignidade humana na medida em que exige a execução de um holocausto. Se Deus ama incondicionalmente como é possível crer que o mistério pascal de Cristo é simplesmente para um redenção do pecado do mundo, como se o holocausto humano fosse necessário para obter essa redenção? É nesta ideia que assenta o filme A Paixão de Cristo de Mel Gibson, bem como de muitas posições teológico-litúrgicas do tecido eclesial.

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O filme Pietà do sul-coreano Kim Ki-Duk (autor do belíssimo filme primavera, verão, outono e inverno), vencedor recente do Leão d’Ouro de Veneza, não é uma representação da metáfora tradicional de Maria com Cristo nos braços (segundo o autor isso seria muito evidente). Aqui o filho “vive” (é regenerado) e a “mãe” morre, cumprindo o adágio bíblico: “se o grão de trigo, lançado à terra, não morrer, fica ele só; mas, se morrer, dá muito fruto. Quem se ama a si mesmo, perde-se; quem se despreza a si mesmo, neste mundo, assegura para si a vida eterna” (Jo 12). É Kang-do (filho) que segura a Cho Min-soo (figura-materna universal) nos braços. Simbólica, segundo o realizador, de “uma mãe que abraça a humanidade inteira”. Esta Pietà situa-se no contexto da sociedade contemporânea, em que as psicoses e os dramas afetivos interiores potenciam determinados comportamentos humanos (uma infância sem mãe, incursão no mundo da violência, afetividade desequilibrada…). O filme sugere que a salvação não é um dado adquirido. A brutalidade das relações o instinto de sobrevivência vigora diante da ausência de laços afetivos. Mas como torná-la possível em contextos de indignidade humana extremas? Nem tudo é branco, nem tudo negro! São ambas as duas coisas.

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O enredo joga em torno de um jovem que utiliza a violência para com os devedores (pobres) para reaver os empréstimos financeiros de um agiota (rico)a quem serve devotamente. Há uma teia que torna aparentemente inevitável a junção entre carrascos e vítimas. Contudo, o dilema que aqui se coloca, muito na esteira dos romances de Dostoiévski, é quando o carrasco se torna ele produto-vítima do sistema dominante. Mas em Pietà não há assunção de responsabilidades! Poderíamos dizer que a violência utilizada é excessiva, talvez, se estivéssemos desvinculados dos grandes eventos históricos que testemunham em carne e osso a violência humana! Filmada a um ritmo de esforço, é uma tentativa de apresentar a condição humana degradada no seu esplendor. O problema é que nos habituamos a ver in-diferentemente essa violentação e quando a vemos afastámo-la. Quanto a isso, E. Levinas é perentório: “há no rosto uma pobreza essencial; a prova disto é que se procura mascarar tal pobreza assumindo atitudes, disfarçando. O rosto está exposto, ameaçado, como se nos convidasse a um ato de violência. Ao mesmo tempo, o rosto é o que nos proíbe de matar” (Ética e infinito).

FotoKim Ki-Duk

‘O que impediu [Kang-do] de massacrar completamente a figura-mulher (“mãe”), uma vez que a sede de violência era infinita?’, parafraseando Girard. Não será o rosto de outrem [mãe] que toca o filho e o impede de a matar? O que impede a um criminoso não fazê-lo? “Quem és?”, pergunta ele. Estará isso longo dos casos da nossa contemporaneidade nas mais diversas sociedades? Porquê dar valor à maternidade se dela o filho não tem qualquer referência? O que escandaliza não é violência em si mas aquele que é violentado que pode ser qualquer humano. O problema é real. Um perigo sempre presente é o da estetização metafórica, estetização essa tão cara ao romanticismo, onde o trágico se esconde a-topicamente no sentimentalismo. Seria a mesma coisa que realizar um filme sobre a tragicidade da ideologia nazi nos campos de concentração sem as vítimas, sem o seu corpo, sem o seu rosto, que choca absolutamente o paradigma de bem-estar da sociedade Ocidental. Ou então de uma representação cénica da Paixão sem a humanidade de Cristo? A tendência estetizante funciona sempre como ocultação do real, da dimensão trágica da existência, que implica um altíssimo grau de consciência dessa tragicidade. Esses rostos são o grande grito contra o escândalo da inação do homem em favor do humano. Deus não ficou silenciado em Auschwitz, fomos nós que inumanamente o silenciamos! (continua)

 

 

 

João Paulo Costa
© SNPC | 08.10.12

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