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«Quando estás com Bergoglio, tens a impressão de que ele conhece Deus Pai pessoalmente»

Falar a sós com o papa Francisco constitui uma experiência espiritual. Estar com ele durante um longo período de tempo deu-me a impressão de ver um homem profundamente mergulhado em Deus. Um seu amigo, Luis Palau, conhecido líder mundial dos cristãos evangélicos, disse certo dia acerca dele: «Quando estás com Bergoglio, tens a impressão de que ele conhece Deus Pai pessoalmente.» É isso mesmo. Sente-se sobretudo que se está diante de um homem livre, de uma liberdade espiritual que, no entanto, está plenamente envolvida na vida, nas suas dinâmicas, nos seus afetos. É um homem decidido, que se sente bem na sua própria pele.

Jorge Mário Bergoglio tem um grande sentido de humor, mas também um sentido da seriedade da vida que o torna austero, mas nunca sombrio. É um homem muito atento a quem tem à sua frente, que sabe mergulhar na história do outro. A sua humanidade, um verdadeiro «caos calmo», requer uma relação nunca codificada, como a que pode caracterizar uma entrevista formal. (...)

O Papa pediu-me claramente para não ter medo de lhe apresentar objeções, se tivesse ouvido alguma coisa que não me parecesse clara ou acessível a todos. É óbvio que eu não estava ali para apresentar objeções ao Papa, mas o seu convite revelava a vontade de um colóquio franco e sincero. Disso me convenceu um simples detalhe: o facto de ele gostar tanto de Henri de Lubac e de Michel de Certeau. Eu sabia do seu apreço por Lubac, que já várias vezes citara. Não sabia da sua estima por Certeau. Ambos são jesuítas que tiveram uma estreita relação entre si. Em 1950, De Certeau torna-se jesuíta por ter sido inspirado pelo pensamento de De Lubac, com o qual vive em grande sintonia. Em 1971, porém, De Lubac dissocia-se completamente e de forma bastante dura do seu discípulo. O facto de agora o papa Francisco os citar juntos, a par um do outro, impressiona-me como sinal de um pensamento aberto ao conflito, às posições divergentes e não necessariamente conciliadas.

Bergoglio aprendeu, há já algum tempo, a pensar assim. A 19 de setembro de 2009, no encerramento da XII Jornada de Pastoral Social, no Colégio de São Caetano de Liniers, dissera: «O pior risco, a pior doença, é homogeneizar o pensamento, o autismo do intelecto, do sentimento, que me leva a conceber as coisas dentro da minha bolha. Por isso, é importante recuperar a alteridade e o diálogo.» Mas também toma a peito a união das diferenças, o facto de que estas possam conviver, e por isso cunhou uma imagem: o poliedro, «que é a união de todas as parcialidades, que, na unidade, mantém a originalidade das parcialidades individuais».

Sinto-me muito à vontade, portanto. Contudo, noto distintamente uma espécie de paradoxo: «sei» que estou diante do Papa, percebo a sua autoridade, mas não sinto a mínima distância no trato com ele. A sua autoridade não é acompanhada pela distância hierática, mas pela disponibilidade próxima, aquela proximidade que ele tanto aprecia.

A certa altura, porém, tive a impressão de que estava sentado sobre um vulcão. Disse-o ao Papa, que penso ter fingido não me ouvir. O Papa é um sonhador. Não no sentido de acreditar nos sonhos como habitualmente os entendemos. Acredita nos desejos, isso sim. Mas é um homem demasiado prático e concreto para se deixar levar por sonhos vagos, por nostálgicas recordações ou por aquilo que ele próprio definiu como «nebulosa proustiana». Acredita, pelo contrário, nos sonhos entendidos como lugar de encontro com Deus, como são entendidos na Bíblia. Daí brota a sua energia. Não é por acaso que o Papa tem diante da sua escrivaninha a imagem de São José adormecido. Aliás, até tem outra semelhante em cima de uma mesa diante da porta do seu quarto. Essa estatueta representa o sonho em que o anjo diz: «Não temas receber Maria, tua esposa» (Mateus 1,20). Parece-me precisamente ser essa a melhor imagem da sua ação e do seu ministério: o sonho de José e a sua consequente e «inabalável obediência» a esse sonho.

«Não temas...»: deve ter sido esta certeza interior que o acompanhou no seu aceito, transbordante de consolação, mas também de sentimento de escuridão sobre aquilo que aconteceria no futuro, como me confessou. A partir daquele momento, tudo passou a ser para ele uma surpresa, como o foi para São José. «É o Senhor que enche as praças», declarou-me num momento da entrevista, «tanto no Rio como em Roma. E tudo isso é para mim uma surpresa. Eu próprio me surpreendo comigo mesmo», confessa-me. Entre ele e a multidão brotou uma «simpatia» que, na realidade, é algo de muito mais profundo. Trata-se daquela simpatia de que fala Abraham Joshua Heschel e que diz respeito ao profeta, que harmoniza a sua vida com a Palavra de Deus, envolvendo os sentimentos de quem o escuta.

E São José também é o traço de união de uma experiência de vida marcada pela «custódia». A 19 de março, festa do santo, durante a Missa de inauguração do seu ministério petrino, Francisco dissera que sentia como sua missão específica ser «guardião», precisamente como José, ou seja, de viver «em atenção constante a Deus, aberto aos sinais», capaz de «ler com realismo os acontecimentos », de estar «atento àquilo que o rodeia», de «tomar as decisões mais sensatas». E, para Bergoglio, essa atenção significa saber que «Deus nos surpreende» sempre. A sua pergunta é: «Deixo-me surpreender por Deus, como fez Maria, ou fecho-me nas minhas seguranças: seguranças materiais, seguranças intelectuais, seguranças ideológicas, seguranças dos meus projetos?». (...)

As características fundamentais da sua oração são simples: ele diria «normais». São as de qualquer sacerdote. Reza com o seu breviário, um livro em latim, já gasto pelo uso, e reza «mentalmente», ou seja, num diálogo interior silencioso com Deus. Gosta da oração que acompanha a vida e os seus momentos, e também gosta da adoração silenciosa, durante a qual por vezes dormita. No passado, já se tinha detido sobre essa adoração silenciosa que faz parte da sua vida, desde há muito tempo: «Sinto-me como se estivesse nas mãos de outro, como se Deus me estivesse a dar a mão». Impressionou-me o facto de ter dito que rezava «enquanto espero pelo dentista». Não disse «esperava», mas usou o presente: «espero». Sorrio para comigo: como é evidente, o Papa ainda não se habituou à ideia de uma vida sem filas, sem esperas... Mas impressiona, de facto, essa janelinha aberta sobre a sua vida quotidiana.

A oração do papa Francisco tem o seu ambiente próprio na vida comum, e a sua característica típica é o facto de ser «memoriosa », como ele próprio diz, usando um neologismo. Bergoglio contempla a experiência, a história, a vida vivida por ele e a vida vivida pelos outros e pela Igreja. E disso faz memória e dá graças. Gosta muito de evocar os benefícios recebidos, de fazer memória da Graça. Numa reflexão sobre a educação, Bergoglio escrevera: «Fazer memória, em sentido bíblico, ultrapassa a mera ação de graças por aquilo que se recebeu; pretende ensinar-nos a sentir mais amor; quer confirmar-nos no caminho empreendido. A memória como graça da presença do Senhor ao longo da vida. A memória do passado que nos guia, não como um fardo inútil, mas como um facto interpretado à luz da consciência presente».

 

Excerto do livro "Temos de ser normais - Papa Francisco em conversa aberta com Antonio Spadaro" (ed. Paulinas, 136 pág., 6,90 €) (cf. Papa Francisco e a proximidade: Não se visitam os amigos dentro de uma caixa de vidro)

 

In Temos de ser normais, ed. Paulinas
12.03.14

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