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Quaresma: Espiritualidade e missão segundo o papa Francisco (cardeal Bergoglio)

Começámos o caminho para a Páscoa. O nosso peregrinar torna-se mais intenso ao contemplar, a partir de agora, o Mistério que nos restaurou a vida, o Mistério da nossa reconciliação com Deus por meio de Cristo Jesus, que padeceu, morreu e ressuscitou pelos nossos pecados.

A nossa preparação faz-se a caminhar, e todo o caminhar implica uma partida, uma saída. Como a de Abraão, como a dos profetas, como a de qualquer um daqueles que um dia, na Galileia, se puseram em marcha para seguir Jesus. A história do povo de Deus e da Igreja está marcada desde a sua origem pela rutura, a partida, as deslocações: Abraão, Moisés, Elias, Jonas, Rute, S. Paulo, António, o grande pai dos monges, Domingo e Francisco, Inácio, Teresa de Jesus e tantos outros. A intuição, resposta à graça destes grandes, tornou fecundas as suas vidas e alimentou com o seu espírito o caminho da Igreja durante muitos séculos.

Esta característica, não simplesmente geográfica, tem muito de simbólico: é um convite a descobrir na itinerância o movimento do coração que, paradoxalmente, precisa de sair para poder permanecer, mudar para ser fiel. Neste tensão, porém, o nosso coração não deixa de sentir as consequências do medo.

Sem dúvida que os tempos mudam e as situações não se voltam a repetir, mas as formas de enfrentar a vida têm traços muito comuns, e isso pode converter-se em fonte constante de inspiração e sabedoria para encarar a nossa situação.

Gostava de vos pedir para vivermos intensamente este tempo de Quaresma como Igreja orante, reflexiva, penitente e adoradora, para que a graça da Páscoa se derrame abundantemente sobre todos nós e todo o santo povo de Deus. (...)

Neste caminho para a Páscoa penso agora em Jonas; é um ícone pascal profético que o próprio Jesus utilizou para anunciar a sua morte e ressurreição. Creio que a figura deste profeta escapista, desconforme, queixoso, mas finalmente fiel, pode ajudar-nos nosso peregrinar quaresmal-pascal.

Com o profeta descobrimos dois elementos que estão presentes no dinamismo de cada deslocação: a rutura e a vinculação. O livro de Jonas abre com um mandato de "saída" dirigido por Deus ao seu profeta: «Levanta-te, vai a Nínive, a grande cidade, e anuncia-lhe que a sua maldade subiu até à minha presença».

Jonas vivia tranquilo e organizado, com ideias muito claras sobre o bem e o mal, sobre como atua Deus e o que Ele quer a cada momento; sobre aqueles que são fiéis à aliança e os que não o são. Tanta organização levou-o a enquadrar com demasiada rigidez os lugares onde haveria de profetizar. Jonas tinha a receita e as condições para ser um bom profeta e continuar a tradição profética na linha «do que sempre se tinha feito».

Desde logo Deus desordenou a sua organização, irrompendo na sua vida como uma torrente, tirando-lhe todo o tipo de seguranças e comodidades, para o enviar à grande cidade a proclamar o que Ele mesmo lhe dirá. Era um convite a ir mais além dos seus limites, ir à periferia. Nínive, «a grande cidade», era símbolo de todos os separados, afastados e perdidos. Jonas experimentou que lhe tinha sido confiada a missão de recordar a toda aquela gente, tão perdida, que os braços de Deus estavam abertos e à espera de que eles voltassem, para os curar com o seu perdão e alimentá-los com a sua ternura. Mas isto não entrava na compreensão de Jonas, e por isso fugiu. Deus mandou-a Nínive e ele pôs-se a caminho de Társis, na direção contrária.

As fugas nunca são boas. O apuro faz com que não estejamos demasiado atentos, e tudo se pode tornar um obstáculo. No barco para Társis, ocorre uma tempestade e os marinheiros atiram-no ao mar porque confessa a sua culpa. Dentro de água, é engolido por um peixe. Jonas, que tinha sido sempre tão claro, tão cumpridor e organizado, não havia tido em conta que o Deus da aliança não se retrata do que jurou, e que é repetidamente insistente quando se trata do bem dos seus filhos. Por isso, quando a nós se acaba a paciência, Ele começa a espera, fazendo ressoar muito suavemente a sua amorosa palavra de Pai.

E pela segunda vez, com a mesma frescura da primeira, foi dirigida a palavra do Senhor a Jonas nestes termos: «Levanta-te e vai a Nínive, à grande cidade e apregoa nela o que Eu te ordenar». Jonas, agora sim, vai a Nínive e ali prega. Quando Nínive se converte, Jonas, estranhamente, em lugar de se alegrar, queixa-se a Deus: « «Ah! Senhor! (...) sabia que és um Deus misericordioso e clemente, paciente, cheio de bondade e pronto a renunciar aos castigos». Jonas resistia a deixar para trás todas as suas ideias sobre Deus, que o haveria de conduzir mais além do que conhecia e acreditava que podia. Jonas não temia Nínive, mas sim Deus e o seu amor desconcertante e desmesurado.

Jonas era um obcecado. Tinha cercado a alma com o muro dessas certezas e convicções, que em vez de dar liberdade com Deus e abrir horizontes de maior serviço aos outros, acabam por aprisionar o espírito e ensurdecer o coração. A sua obstinação fazia-o prisioneiro de si mesmo, dos seus pontos de vista, das suas avaliações e métodos. Custava-lhe descobrir a voz de Deus. Nesse microclima existencial tinha isolado a sua consciência da marcha do povo de Deus. Não sabia da intervenção de Deus no meio da sua gente, da capacidade de conduzir o seu povo com o seu coração de Pai. Para Jonas já estava tudo dito e as coisas eram como eram, e nada mais.

Como endurece o coração a consciência que se isola! Desconhece a alegria, a delícia do Espírito Santo que sustém a esperança. A pressão interior  do seu isolamento encontra habitualmente um caminho de saída: a queixa. Quem separa a sua consciência é um queixoso. Parece-se com as crianças da parábola (Lucas 7, 32), para quem nada corre bem. Santa Teresa advertia disto as suas monjas: «Ai daquela que diz: fizeram-me injustiça». Os colecionadores de injustiças, os insatisfeitos constantes, os que não sabem a felicidade de abrir o seu coração ao Senhor que está sempre a vir são pessoas de consciência isolada. (...)

O Senhor foi-nos levando, com o seu Espírito, a pousar o nosso olhar sobre as pessoas: não para ver o que queremos ver, mas aquilo que é. Assim reconhecemos experiencialmente as feridas e as fragilidades do nosso povo, que também são as nossas. Porque na medida que nos envolvermos com a vida do nosso povo fiel e a sentirmos nas suas feridas mais profundas, podemos colocar-nos, à luz do Evangelho, a pensar e a discernir o que ele precisa. Um pensar e discernir particular: não o que, de maneira funcionalista, procura soluções rápidas e pré-fabricadas, mas o que brota num coração que busca deixar-se iluminar e transformar pela oração, e que desde o face a face com os outros permite que seja Deus a falar, e não os velhos conhecimentos ou as receitas mágicas (...).

Deus falou-nos através das feridas e fragilidades, pedindo-nos o bálsamo da graça que cura, a força do Evangelho se faz Boa Notícia que anima, e a presença fraterna que apoia. O povo fiel de Deus pediu-nos a ternura do Pai, que só podemos tornar-lhe próxima na medida em que renovarmos o nosso fervor apostólico, sendo testemunhas ousadas do amor daquele «que nos amou primeiro».

Tal como Jonas, a realidade a que somos enviados apresenta-se-nos difícil e avassaladora. Surgem novas exigências que nos pedem respostas inéditas. Enquanto antes podíamos bem estar sozinhos, fazendo as coisas à nossa maneira, agora a fragmentação em que vive a nossa sociedade coloca-nos diante da exigência evangelizadora de uma identidade eclesial que brote de uma maior comunhão.

Este espírito de comunhão fortalecerá a nossa unidade com a harmonia do Espírito Santo, e também nos defenderá da vertigem com que somos tentados ao ver que se nos abalam as seguranças, e que inclusivamente o sistema de trabalho pastoral, com provas dadas durante muito tempo, e que sentimos como inamovível, pode ter de adquirir uma nova fisionomia.

No nosso caminhar eclesial fizemos e continuamos a fazer enormes esforços através de diferentes estradas, apoiámos e apoiamos várias formas de pastoral, enfrentámos e continuamos a enfrentar crises e abanões, vimos e vemos como muitos dos projetos a que dedicamos tempo e esforço se revelam incapazes de suster os nossos desejos e boas expetativas evangelizadoras, à medida que muita gente nos fica pelo caminho.

Ainda assim, uma e outra vez voltamos a começar depois de cada tormenta. Mas quando cremos estar tranquilos no ventre da baleia, surpreende-nos a evidência de que tudo o que realizámos não foi mais do que uma etapa, e que agora a baleia nos vomitou na Nínive de um mundo em que Deus parece estar mais ausente que antes, e que nós, com as palavras que dizemos, não lhe interessamos, e os valores que anunciamos não têm importância para ele e passaram de moda. Esta realidade chamou-nos (...) a procurar o modo de acolher novamente a todos, fazendo das nossas paróquias e geografias pastorais santuários onde se experimente a presença de Deus que nos ama, nos une e nos salva.

A nossa identidade está ameaçada; não exercemos como antes a liderança moral nem temos um lugar social de relevância; apresentam-se-nos problemas para os quais, aparentemente, não temos resposta. Somos uma minoria e resistimos a ser um entre muitos. Permanece sempre latente a tentação de fugir para uma "Társis" que pode ter muitos nomes: individualismo, espiritualismo, encerramento em pequenos mundos, dependência, instalação, repetição de esquemas, dogmatismo, nostalgia, pessimismo, refúgio nas normas... (...)

Tal como Jonas, podemos ouvir um chamamento persistente que volte a convidar-nos a percorrer a aventura de Nínive, a aceitar o risco de protagonizar uma nova evangelização, fruto do encontro com Deus que é sempre novidade e nos impele a romper, partir e deslocarmo-nos para ir mais além do conhecido, para as periferias e as fronteiras onde está a humanidade mais ferida e onde os homens, sob a aparência da superficialidade e conformismo, continuam à procura da resposta à pergunta pelo sentido da vida. Ao ajudarmos os nossos irmãos a encontrarem uma resposta, também nós encontraremos renovadamente o sentido de toda a nossa ação, o lugar de toda a nossa oração e o valor de toda a nossa entrega.

Tratemos de caminhar este ano com o olhar erguido para ver bem longe, e depois encontrar, bem dentro de nós, o que temos de ir deixando para que Jesus, como mestre, evangelize; para chegar onde chega o nosso olhar a partir do Espírito. Desloquemo-nos sem medo para toda a periferia, a todos os cantos, unidos em Igreja, assembleia unida e apoiada pelo Deus da Vida. Que este caminhar discirna o que é preciso; e cada passo novo, provocador do que teremos de dar, sem previsibilidades nem receitas mágicas, mas com abertura generosa ao Espírito que vai conduzindo a história pelos caminhos de Deus.

Peço-vos, por favor, que rezeis por mim. Que Jesus vos abençoe e a Virgem Santa cuide de vós. Afetuosamente, Jorge Mario Bergoglio, s.j.

 

Card. Jorge Mario Bergoglio (Papa Francisco)
Buenos Aires, 21.2.2007, Quarta-feira de Cinzas
Trad./edição: SNPC/rjm
09.03.14

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