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Religiosidade nos Açores: fé, ascese e festa

Tal como os vitrais: vistos de dentro são uma coisa. De fora são outra, porventura sem nexo ou de recorte abstrato e sem sentido. A análise da religiosidade dum povo deve sempre revestir-se de mil cautelas para se não deformar por excesso de distância e proximidade. Por isso desde já digo: não serei, não pretendo ser objetivo. Tenho, como muitas pessoas, duas estruturas religiosas. Uma experiencial, de pertença a um povo, a partir da pia batismal, da infância, da família na pequena ou grande comunidade. Outra, deriva dum estudo mais alargado, crítico, doutrinal, pastoral, que envolve a minha própria vida sacerdotal e até jornalística e aquilo em que apostei a minha existência como entrega à causa da evangelização, não escondendo todas as limitações anexas a qualquer vocação a que impropriamente chamamos escolha de vida.

FotoAngra do Heroísmo

Existe uma certa imagem da religiosidade Açoriana de que os sismos, os vulcões, o isolamento, a imensidão por vezes medonha do mar, facilmente faz o povo dobrar os joelhos e levantar a voz diante de um Ser, Omnipotente, acima de todas as forças ameaçadoras e palavra última sobre todos os eventos. Isto quereria dizer que apenas a pequenez e o medo seriam capazes de descobrir e alimentar devoções como a do Senhor Santo Cristo, do Espírito Santo ou mesmo dos Romeiros. Tudo com uma extensão cosmopolita pelos muitos açorianos que se espalharam pelo mundo e levaram na sua identidade pessoal essa relação com o divino tanto na expressão penitencial como na festiva.

FotoAngra do Heroísmo

Importa dizer antes de mais que os Açores foram povoados na era de Quinhentos, evangelizados pelos missionários que "faziam escala" para outras paragens e por aqueles que nas ilhas se instalaram e edificaram conventos, centro de convergência de toda a urbanização das cidades e lugar de irradiação do anúncio do Evangelho. Aí sim começou a desenhar-se uma espiritualidade que o tempo harmonizaria com os “colonos” continentais chegados, os nativos, a religião oficial católica e todo o resto, ou seja quase tudo: uma comunidade feita de pequenas comunidades frequentemente despertada pelo rugido do mar, o estremecimento da terra e a força brutal dos vulcões que, como em qualquer parte do mundo, irrompiam da profundidade do mar e renovavam a configuração geológica ou geográfica das ilhas, todas elas nascidas e amparadas pelos píncaros de montanhas oriundas dos oceanos. Independentemente das teorias atlântidas a verdade é que os Açores têm mais terra submersa que terra à vista.

FotoPonta Delgada

Há, de facto, nos açorianos o que poderíamos chamar uma propensão para o sobrenatural, uma capacidade para integrar o divino na sua vida. A meu ver dever-se-á muito à espiritualidade que alicerçou os primeiros evangelizadores do arquipélago. Tem muitos elementos comuns com o resto do país apesar de vividos com uma sensibilidade própria. Não é só em matéria religiosa que há uma “açoreanidade” que caracteriza a mundividência, a fala, a escrita, a arte e a vida dos que nasceram nos Açores. Vitorino Nemésio pode ser uma imagem, por recente, cujo discurso escrito, falado e musicado não poderia nascer noutra parte do mundo.

FotoVitorino Nemésio, Praia da Vitória

O religioso tem esta marca açórica. Brevemente (porque o espaço para estas linhas é mais estreito que uma ilha) as festas do Espírito Santo nascidas – e quase apagadas - no Continente constituíram um espaço de expressão da fé do povo. O Divino, a coroa, a bandeira, o mordomo e mais dezenas de siglas que um estranho não entende, deixa surpresa a própria Igreja. O cortejo, o pão, a festa, as orações no império ou nas casas são feitas pelo povo. O império é a sua pequena Igreja. O sacerdote entra minimamente em todo este ritual. É o povo que tudo dirige. A Igreja convive com este todo mas não é o seu primeiro terreno. A história já lhe semeou elementos que ultrapassam todos os ritos oficiais. Entretanto o sentido profundo da “caridade” para com os necessitados, expressa hoje de outras formas, mantém a genuinidade do respeito profundo pelo Divino Espírito Santo e o cumprimento rigoroso dos ritos populares anexos à distribuição da massa, do pão e do vinho. Os pastores tentam apontar mais longe sem negar esta “laicidade” religiosa em toda a linha festiva.

FotoPraia da Vitória

A devoção ao Senhor Santo Cristo nasce dum Religiosa que a divulga e se torna popular. A imagem do Ecce Homo tem uma expressão forte do divino no seu olhar, na sua misericórdia, na sua presença continuada no coro baixo do Convento da Esperança. A uma distância discreta e com uma ténue iluminação escuta milhares de pessoas que pedem e agradecem os momentos sublimes e sofredores da própria vida. E tudo isso se reveste dum respeito intenso, expresso particularmente na procissão do “Dia do Senhor”, com o seu olhar humilde lançado do alto do andor, com a coroa de espinhos e o cetro revestidos de pedras preciosas, a beleza da sua capa e da corda dourada que lhe prende as mãos. O Ecce Homo todos os anos atravessa a cidade ladeado das forças vivas da comunidade que há séculos veneram o Senhor Santo Cristo. Os tempos mudaram e diferente é a cultura das novas gerações. Mas novos e velhos sentem-se honrados neste cortejo divino e humano.

FotoSenhor Santo Cristo, Ponta Delgada

Gostaria de referir os Romeiros. Trata-se de, em tempo de Quaresma, percorrer a pé, toda a Ilha de S. Miguel. Apenas homens. Com paragem em todas as Igrejas e Capelas dedicadas a Nossa Senhora. Durante uma semana o rosário em canto chão doce e comovido, repetido e desenhado no alto de montanhas e ribeiros serenos. Pés doridos e perseverantes, misto de dor, cansaço e festa.

FotoSé de Angra

Mosteiro ambulante, onde a paisagem se move com cada passo e cada olhar deslumbrado. Trazendo no coração os amigos, os pedidos, os agradecimentos. O encontro com a vida nesse retiro que foi preparado e é vivido na celebração eucarística, nas litanias do Mestre dos Romeiros, no xaile e no lenço que protege do frio, da chuva ou do calor.

Fotoilha das Flores

Nas orações integra-se o cortejo dos santos, protetores, a experiência da vida em comunidade, a renúncia à vontade própria, a obediência ao mestre, ao procurador das almas, na travessia de nevoeiros exteriores e de alma, nublada pelos dramas e perguntas.

FotoFurnas, ilha de São Miguel

O sentido do peregrinar: caminhar, subir, saborear, chegar ao mais elevado de si mesmo, no gesto simples de humildade. Olhar voltado para o alto e para dentro. Romeiros, pés cansados, coração em paz. Desfile solitário onde está o mundo inteiro: os pais, filhos, irmãos e uma ladaínha de almas encomendadas antes de partir, ou nas janelas entreabertas que vão desfiando nomes e requisitando preces. E repetidamente: “Virgem Mãe de Deus e Mãe nossa, alcançai do vosso filho misericórdia”.

FotoIlha de São Miguel

 

FotoIlha do Corvo

 

Cón. António Rego
In Agência Ecclesia
Fotografia: Rui Jorge Martins/SNPC
06.06.12

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Entrada da sé de Angra

 

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