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Se não vos tornares como esta criança

«Este livro é o guia que nos faltava. Ele une, como uma ponte, as duas margens de um caudal: de um lado, os pais e educadores que conhecem as crianças desde que nascem e sabem como as ajudar a crescer, mas a quem falta a perceção teológica dos desígnios de Deus; do outro lado, a teologia que procura desvendar a essência de Deus, mas que não conhece quem é a criança e como se pode sustentar a sua resposta ao chamamento divino.»

Esta é a perspetiva de Maria João Avillez Athaíde, professora na Escola Superior de Educadores de Infância Maria Ulrich sobre o livro “Se não vos tornardes como esta criança”, de Hans Urs von Balthasar, um dos mais importantes teólogos católicos do séc. XX.

Lançada em março pela Paulinas Editora, a obra em que se «encontram harmonizados motivos fundamentais do pensamento de Urs von Balthasar, numa última elaboração à volta de um dos temas a que deu preferência na sua maturidade, o tema da infância», anota o padre Henrique Noronha Galvão, professor jubilado da Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa.

Revelamos o texto do primeiro capítulo do volume.

 

O Reino de Deus é para as crianças
Hans Urs von Balthasar

A posição de Jesus diante da criança é de todo inequívoca. Ninguém entrará no Reino de Deus, que nele se tornou próximo, se não der meia volta e regressar à sua disposição e atitude originária. «Em verdade vos digo: quem não receber o Reino de Deus como um pequenino, não entrará nele» (Mc 10,15). Como é que alguém há de deter-se no seu caminho rumo ao futuro da vida e tomar a direção contrária? – pergunta o mestre judeu, admirado. Mas ainda mais se admira Jesus a seu respeito: «Tu és mestre em Israel e não sabes estas coisas?» (Jo 3,10). E logo isto que é elementar, que é o pressuposto de tudo o mais! «Porventura poderá [alguém] entrar no ventre de sua mãe outra vez, e nascer?» (Jo 3,4). O pensamento puro parece revelar o absurdo de semelhante exigência. Jesus, porém, não vê nela um absurdo, porque Ele próprio, como homem adulto, é aquele que nunca abandonou o «seio do Pai» (Jo 1,18), mas também agora, feito homem, nele «descansa», e só, como quem nele descansa, pode revelar algo de válido sobre o Pai.

Desta maneira, como que num salto, da criança escolhida na rua, que os discípulos queriam desviar de Jesus, por insignificante e importuna – «Deixai as crianças e não as impeçais de vir ter comigo» (Mt 19,14) –, chegamos à criança singular, que é o próprio Jesus. E Jesus não vê aqui nenhum salto sobre um abismo, mas, pelo contrário, uma continuidade direta, pois «quem receber um menino como este, em meu nome, é a mim que recebe» (Mt 18,5). O menino não é, pois, apenas uma parábola longínqua para o Filho de Deus, mas quem se virar com solicitude amorosa para «semelhante menino» (qualquer um entre centenas de milhares) e fizer isso, consciente ou inconscientemente, em nome de Jesus, na sua disposição e modo de sentir, esse acolhe a criança arquetípica que tem o seu lugar no seio do Pai, e porque esta criança nunca se deve separar do seu lugar, chega-se assim, com esta dedicação discreta, ao último de todos, ao próprio Pai: «Quem me receber, não me recebe a mim, mas àquele que me enviou» (Mc 9,37). Não se trata, pois, no contexto do Evangelho, de um cuidado ou assistência social, mas de um mistério profundo, que se baseia na essência de Cristo e que é inseparável do seu ser Filho no seio do Pai e, por isso, também daquilo que, no início, se afirmou da remigração interior rumo ao ser-menino, àquilo que Jesus chama «nascer do Espírito» ou «renascer» ou «nascer do Alto», ou simplesmente «nascer de Deus» (cf. Jo 1,13), e que Ele, mais uma vez, eleva expressamente a condição para a entrada no Reino de Deus: «quem não nascer do Alto não pode ver o Reino de Deus», «não pode entrar no Reino de Deus» (Jo 3,3.5).

E, no entanto, trata-se de algo inteiramente compreensível para os homens, de uma experiência que cada um, como criança, fez (e à qual deve, de um modo determinado, regressar), de uma experiência que cada adulto pode fazer, ao menos de modo aproximativo, quando encontra ou tem crianças. Jesus não anda à procura de um menino exemplar para apresentar como modelo; apenas se diz: «E, tomando um menino, colocou-o no meio deles, abraçou-o e disse-lhes» (Mc 9,36). O que Ele patenteia na criança, que amorosamente abraça, é algo de muito simples, que os discípulos que o ouvem podem e devem compreender, como o sentido de uma parábola singela, e que, no entanto, porque Jesus mantém a criança abraçada, adquire na sua inocência um significado inesperado, jamais pressuposto. As crianças, tanto entre os Judeus como entre os Romanos, não passavam de uma etapa prévia para o pleno ser-homem; a sua consciência distintiva não era reconhecida por ninguém, no seu valor próprio. E porque a infância era classificada como um simples ainda-não, ninguém se preocupava com a forma do espírito humano prévia à livre decisão moral, mais ainda, à íntegra existência espiritual e corporal do homem.

Para Jesus, porém, o estado da primeira infância não é moralmente indiferente e insignificante; pelo contrário, os modos existenciais soterrados da criança indicam aos adultos uma zona originária em que tudo se apresenta no que é reto, no verdadeiro e no bom, numa tranquilidade e segurança oculta que não pode desvalorizar-se como «pré-ética» ou inconsciente (como se o espírito infantil ainda não tivesse despertado, ou antes, persistisse ainda no plano animal, o que ele nunca foi, nem sequer no seio materno), que, ao invés, revela uma esfera do originário ser-salvo, mais ainda – por que a criança, de início, ainda não pode fazer uma distinção entre o amor dos pais e o amor divino –,contém o momento da santidade.

Jesus conhece, decerto, a profunda ameaça desta zona originariamente santa; ela está sem proteção, porque a criança é impotente, e, em contrapartida, os que dela tratam são prepotentes na sua liberdade e, em vez de orientar, podem corromper de múltiplos modos egoístas, muitas vezes também de modo inconsciente, justamente na sua despreocupação ética. Daí a terrível ameaça de Jesus a tais sedutores: «Melhor seria para ele que lhe atassem ao pescoço uma pedra de moinho e o lançassem ao mar» (Lc 17,2).

Jesus sabe também que a fragilidade desta zona originariamente santa, em virtude do ingresso do jovem na decisão consciente a favor ou contra o mal, por causa da herança da culpa original e da suscetibilidade da tentação, pode levar a ruturas e separações definitivas: a retidão «supraética» e a bondade da zona originária deveria agora afirmar-se na plena liberdade, mas para aquele que conscientemente dela se afasta o seu bem e a sua verdade surgem-lhe como tão-só uma possibilidade do bem e do verdadeiro, que assim assume o rosto do geral, do abstrato, do legal, e justamente este estar-situado, perante o bem como uma «lei» a escolher (lei de Deus ou da sociedade), surge agora aos Judeus e aos pagãos como a situação ideal para a confirmação moral adulta.

Mais ainda, Jesus sabe decerto que este emancipar-se da proteção originária é o caminho inevitável do ser humano. Mas o que Ele tem em mente é a preservação, no tempo da maturidade, dos bens santos «supraéticos» próprios da origem. Paulo expressa corretamente a exigência de Jesus, quando diz: «Irmãos, não sejais crianças, quanto à maneira de julgar; sede, sim, crianças na malícia; mas, quanto à maneira de julgar, sede homens adultos» (1Cor 14,20). Como se há de, porém, conciliar e unir o que aparentemente é inconciliável? Só deste modo: a lei aparentemente abstrata foi inscrita e gravada por Deus no coração infantil e torna-se assim originariamente concreta (cf. Jr 31,33). Tal só pode acontecer porque Deus difunde o seu Espírito no coração («Dentro de vós porei o meu espírito» [Ez 36,27], que de nenhuma forma nos torna imaturos, mas sim reunirá e levará o nosso coração a irromper no apelo «Abbá, Pai», provido com o instinctus Spiritus Sancti (como Tomás de Aquino chama à oferta graciosa do coração para poder corresponder à exigência amorosa de Deus). A semelhante adulto, que simultaneamente recupera, em nível superior, a espontaneidade concreta da criança, chama o poeta Novalis «a criança sintética».

 

In Se não vos tornardes como esta crianças, ed. Paulinas
30.03.14

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Capa

Se não vos tornardes
como esta criança

Autor
Hans Urs von Balthasar

Editora
Paulinas

Ano
2014

Páginas
80

Preço
6,00 €

ISBN
978-989-673-358-2

 

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