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Solidariedade nas empresas: Perspetiva cristã para gestores e trabalhadores

É verdade que o grave problema posto pela crise que vivemos é o da perda do emprego. Ao mesmo tempo, contudo, isso determina não poucas nem pequenas mudanças dentro do âmbito laboral e, em termos ainda mais amplos, exige uma releitura do sentido humano e humanizante do trabalho, especialmente em relação à família.

Deste modo, a certeza do trabalho, honesto e retribuído, volta a propor-se hoje com mais força como uma das exigências primárias de cada pessoa e da sua dignidade. De facto, com o trabalho, a família obtém os meios para poder viver e projetar o próprio futuro: o trabalho favorece a coesão da família, permite-lhe autonomia e operosidade, inteligência e criatividade, capacidade de sacrifício e justa satisfação. O trabalho e o justo proveito são para uma família os primeiros sinais de partilha da vida e dos bens, e tomam as pessoas livres, responsáveis e efetivamente capazes de contribuir para a sociedade em que vivem. Deste modo, toma-se expressão de uma solidariedade não só no interior de uma família, mas também no âmbito da sociedade.

 

Um mundo com um rosto novo

Mas o mundo do trabalho - com as suas propostas, as suas garantias e as suas partilhas - apresenta-se profundamente mudado em relação a outros tempos: é um mundo com um rosto novo, com um intenso influxo nas pessoas e nos hábitos das pessoas, um mundo que cria em não poucos casos situações fortemente problemáticas, sobretudo para as famílias e para os jovens.

Contudo, sem sequer entrarmos numa análise que vá para além da nossa reflexão específica, gostaria de me limitar a algumas notas telegráficas.

Em primeiro lugar, deve-se realçar que, hoje, o trabalho realiza-se dentro de uma realidade cada vez mais complexa e fugidia. De facto, o panorama internacional dos recursos e a globalização do mercado de trabalho, tanto nas camadas mais humildes como nas mais altamente especializadas, geraram um sistema de concorrência progressivamente mais agressivo, com uma acentuada exigência de mobilidade, com novas possibilidades de exploração desumana e desumanizadora das pessoas.

Em segundo lugar - mas ao mesmo tempo -, o mundo atual do trabalho requer muitas vezes níveis muito altos de investigação científica e de novas especializações, exige disponibilidades tão grandes das pessoas que, não raro, comprometem o estilo da convivência humana e a estabilidade das relações familiares.

Se, por um lado, se assiste frequentemente a um empobrecimento da produção enquanto se elevam as exigências dos serviços, por outro lado, fala-se de competências mas não se garante uma continuidade profissional, requerem-se forças novas mas tem-se dificuldade em inserir os jovens num trabalho estável. Então, nasce uma situação difusa de precariedade que, entre os muitos problemas que hoje afligem a vida das nossas famílias, é um dos mais difíceis e graves de suportar e de gerir, porque gera ansiedade e sentimento de insegurança.

Neste contexto de mudanças, a Igreja continua a considerar muito importante o trabalho, evocando lúcida e fortemente o seu significado mais autêntico para a vida da pessoa e para a configuração da sociedade no seu conjunto. O núcleo central e decisivo do ensino da Igreja sobre o trabalho na sua valência social articula-se nos «três círculos» da pessoa, da família, da nação, e mais precisamente no primado da pessoa e da família no âmbito do trabalho. (...)

É evidente que o ensino da Igreja - aliás conexo com toda a sua obra educativa - exige que hoje, num contexto profundamente mudado, seja reconsiderado com grande sabedoria e muita coragem em ordem a uma resposta mais adequada aos novos e mais complexos problemas postos pelo mundo do trabalho. Isto pode e deve ser feito à luz e por força daquele «profetismo» de que a doutrina social da Igreja é tão rica e que é exercido, não sem importância, pela mesma experiência humana e cristã dos trabalhadores.

Aqui, limitamo-nos a apresentar alguns apontamentos rápidos sobre as possibilidades de solidariedade concreta - mesmo nas suas formas mais simples e imediatas - que se abrem hoje no mundo do trabalho.

 

Quem fica e quem vai para casa

Penso imediatamente no dever da solidariedade a que é obrigado quem tem um trabalho, quem não o perdeu. Quem tem esta «sorte» não pode fechar-se em si mesmo, indiferente diante de situações problemáticas ou negativas que outros encontram e sofrem.

De facto, como se sabe, em muitas fábricas, a crise e, portanto, a contração das encomendas, estão a obrigar os dirigentes a selecionar o pessoal, a decidir quem pode continuar a trabalhar e quem, pelo contrario, deve ser temporariamente suspenso (com futura reintegração) ou até despedido definitivamente.

A experiência diz-nos que quem paga as despesas são os mais «fracos», como os trabalhadores mais velhos, os menos qualificados e os que pertencem a categorias «protegidas».

Por isso, quem permanece na empresa não pode deixar de sentir-se interpelado, não pode deixar de preocupar-se com o que poderá fazer para ir ao encontro de quem é despedido. Antes de tudo, seria necessário assegurar uma proximidade sincera e cordial, para que a exclusão do trabalho não fosse uma premissa para uma exclusão social ainda mais dolorosa e mais grave. Depois, penso em formas concretas de solidariedade e de atenção para apoiar economicamente quem foi expulso da atividade laboral.

No entanto, não podemos esquecer-nos de que em alguns setores subsistem e perduram formas de corporativismo que protegem e tutelam amplamente quem faz parte da corporação, fornecendo tutelas e privilégios a estes trabalhadores. Mas tais proteções não estarão em contradição, e muito claramente, com o clima global de recessão que atinge e penaliza a maior parte dos trabalhadores? Já para não referir que muitas destas proteções e tutelas chegam a impedir que outros trabalhadores - sobretudo os jovens - entrem nesse sistema.

 

O mobbing e a competitividade

Mas a crise pode agravar fenómenos que já conhecemos há algum tempo. Assim, por exemplo, a manipulação das relações pessoais que acontece nalgumas empresas, que chega a levar à marginalização de pessoas que se sentem pouco apreciadas e, até, desvalorizadas e ridicularizadas. Ou mesmo rejeitadas. É o conhecido fenómeno do mobbing que, frequentemente, suscita tamanhos traumas e stress que chega a fazer com que os visados sonhem com o despedimento, para se livrarem de uma situação dramática e sem qualquer escapatória em que as pessoas se sentem enjauladas.

Pergunto a mim mesmo: Como posso ser solidário com quem está nestas condições? Em primeiro lugar, não assumindo tais comportamentos. Mas não se poderá fazer muito mais a favor das pessoas que sofrem o mobbing?

Contaram-me um episódio muito simples, quase irrelevante. Numa determinada empresa, onde infelizmente existia este fenómeno, dois trabalhadores, animados com verdadeiro espírito de solidariedade, encheram-se de coragem e decidiram comer todos os dias na mesma mesa com as pessoas discriminadas. A sua intenção era ajudá-las a restabelecer uma sã relação de responsabilidade e de confiança para descarregar as tensões e reencontrar a força para continuar a viver o seu trabalho, embora com sacrifício.

Contudo esta solidariedade deveria ser vivida entre todos os colegas, especialmente nestes tempos de crise. Justamente a crise deveria responsabilizar ainda mais todos os atores do processo produtivo: os empresários e também os trabalhadores. Precisamente numa situação que hoje está muito mudada; de facto, no passado, a concorrência desenvolvia-se entre empresas, enquanto agora são as novas técnicas de trabalho e a exigência de maximizar os lucros reduzindo as despesas (mesmo com o pessoal) que opõem colegas a colegas, aumentando deste modo desmedidamente a competitividade já, até há pouco, tão pronunciada e elevando-a, por vezes, a níveis impiedosos, como se o resultado obtido fosse o único parâmetro de valor de uma pessoa. Assim, também o clima de trabalho se toma pesado, insustentável.

Toma-se muito difícil saber superar o mal-estar da competitividade entre colegas para apoiar os que estão em maiores dificuldades. Mas é precisamente neste contexto que é urgente um renovado espírito de solidariedade e uma grande liberdade interior.

 

Os colegas estrangeiros,  o compromisso sindical, os empresários

Frequentemente, há na empresa trabalhadores estrangeiros, a quem habitualmente se entregam as tarefas mais humildes. Antes de tudo, é fundamental que estas pessoas aprendam bem a nossa língua para se inserirem no nosso contexto cultural, eclesial e civil, antes do laboral, pois só assim se criam as condições para desenvolver as suas competências e viver as suas responsabilidades. Portanto, compreender a língua é indispensável para viver adequadamente as relações imediatas e mediatas com as instituições e - não menos importante - para evitar os infortúnios no trabalho. Portanto, considerado o tempo que um trabalhador tem de estar na empresa, esta experiência é também uma das vias privilegiadas para a socialização.

Na verdade, é necessário não pouca vontade de acolhimento, solidariedade, generosidade e paciência para com os estrangeiros, para fazer com que a experiência laboral seja um lugar de humanização, de inserção na sociedade, e não somente um instrumento de sobrevivência.

Trata-se de uma solidariedade que também passa pelo cuidado com as relações entre colegas, especialmente migrantes, mantendo sobretudo com eles uma aproximação de confiança, desenvolvendo a sua capacidade para encontrar os aspetos positivos de cada um. Numa empresa, dificilmente se reconhece os dotes de cada um, e muito mais falar bem dele, sobretudo quando há concorrência e ânsia de subir na carreira. Mas não há outro modo de reconstruir uma relação mais serena e mais capaz de propor correções e integrações úteis para a comunidade em que se vive.

Uma forma exigente de solidariedade - ousaria dizer de caridade - é a que conduz ao compromisso sindical na empresa, com todas as dificuldades que podem acompanhá-lo. Muitas vezes, custa realmente bastante participar nos organismos sindicais de base, mas também é um esforço de solidariedade particularmente valioso. (...)

Uma vez mais, interrogo-me sobre como poderão os empresários responder a este apelo à solidariedade. Solidariedade e empresa parecem termos antitéticos. Contudo, à luz da definição de solidariedade que assumimos logo no início, sabemos que não é assim.

Para um empresário, solidariedade significa, por exemplo, respeito pelos contratos de trabalho, aplicação das normas de segurança, tutela e promoção dos direitos dos trabalhadores.

Mas também significa abrir as portas do mundo do trabalho a quem, com demasiada frequência, as encontra trancadas. Penso em quem tem alguma forma de incapacidade mental ou física, penso nos detidos em regime de liberdade condicional, penso naqueles que ficam sem emprego numa idade já avançada. Será possível imaginar um percurso de integração social também para estas pessoas? Será possível considerá-las não só elementos de custo (assistencial), mas também de recurso produtivo?

Ainda relativamente aos imigrantes, os empresários são chamados a desenvolver uma ação de solidariedade, por exemplo, respeitando a sua dignidade pessoal, garantindo um tratamento justo e equitativo, tratando das dolorosas chagas do trabalho escravo ou clandestino e da escassa segurança nos locais de trabalho até eliminá-las completamente. Trata-se de deveres que, com toda a certeza, não se repercutem só nos imigrados que, por isso mesmo, correm o risco de ser esquecidos, porque são objeto de discriminação descarada ou sub-reptícia. Aliás, há muitas empresas fundadas e geridas pessoalmente - e com boas perspetivas - por estes migrantes.

 

Card. Dionigi Tettamanzi
Arcebispo emérito de Milão
In Não há futuro sem solidariedade - A crise económica e a ajuda da Igreja, ed. Paulinas
14.01.14

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