Porto
Teatro Nacional São João recebe Missa dos Quilombos
«Em nome de um Deus supostamente branco e colonizador , que nações cristãs têm adorado como se fosse o Deus e Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo, milhões de Negros vêm sendo submetidos, durante séculos, à escravidão, ao desespero e à morte. No Brasil, na América, na África-mãe, no mundo.
Deportados como “peças” da ancestral Aruanda, encheram de mão de obra barata os canaviais e as minas e encheram as senzalas de indivíduos desaculturados, clandestinos, inviáveis. (Enchem ainda de sub-gente – para os brancos senhores e as brancas madames e a lei dos brancos – as cozinhas, os cais, os bordéis, as favelas, as baixadas, os xadrezes).
Mas um dia, uma noite, surgiram os Quilombos, e entre todos eles, o Sinai Negro de Palmares, e nasceu, de Palmares, o Moisés Negro, Zumbi. E a liberdade impossível e a identidade proibida floresceram, “em nome do Deus de todos os nomes”, “que faz toda a carne, a preta e a branca, vermelhas no sangue”.
Vindos ‘do fundo da terra’, ‘da carne do açoite’, ‘do exílio da vida’, os Negros resolveram forçar ‘os novos Albores’ e reconquistar Palmares e voltar à Aruanda.
E estão aí, de pé, quebrando muitos grilhões – em casa, na rua, no trabalho na igreja, fulgurantemente negros ao sol da Luta e da Esperança.
Para escândalo de muitos fariseus e para alívio de muitos arrependidos, a Missa dos Quilombos confessa, diante de Deus e da História, esta máxima culpa cristã.
Na música do negro Milton [Nascimento] e de seus cantores e tocadores oferece ao único Senhor “o trabalho, as lutas, o martírio do Povo Negro de todos os tempos e de todos os lugares”.
Leonardo Silva de Lima
E garante ao Povo Negro a Paz conquistada da Libertação. Pelos rios de sangue negro, derramado no mundo. Pelo sangue do Homem “sem figura humana”, sacrificado pelos poderes do Império e do Templo, mas ressuscitado da Ignomínia e da Morte pelo Espírito de Deus, seu Pai.
Como toda a verdadeira Missa, a Missa dos Quilombos é pascal: celebra a Morte e a Ressurreição do Povo Negro, na Morte e Ressurreição do Cristo.
Pedro Tierra e eu já emprestámos nossa palavra, iradamente fraterna, à Causa dos Povos Indígenas, com a ‘Missa da Terra sem males’; emprestamos agora a mesma palavra à Causa do Povo Negro, com esta Missa dos Quilombos.
Está na hora de cantar o Quilombo que vem vindo: está na hora de celebrar a Missa os Quilombos, em rebelde esperança, com todos “os Negros da África, os Afros da América, os Negros do Mundo, na Aliança com todos os Pobres da Terra”.»
Leonardo Silva de Lima
Este é o texto de apresentação que o bispo católico espanhol Pedro Casaldáliga escreveu para a “Missa dos Quilombos”, de que é autor, juntamente com Pedro Tierra (letra) e Milton Nascimento (música). O disco original termina com a “Invocação a Mariama”, escrita e lida por D. Helder Câmara (cf. último vídeo).
De 8 a 11 de novembro um elenco de 21 atores e oito músicos dá corpo no Teatro Nacional São João (TNSJ), no Porto, à Missa dos Quilombos, estreada em 1981 e revisitada na última década pela Companhia Ensaio Aberto, do Rio de Janeiro.
Leonardo Silva de Lima
«Missa dos Quilombos instala-nos numa central elétrica com várias dezenas de máquinas diferentes, de um singelo moinho a uma turbina de avião, trazendo para a linha da frente a história dos negros no Brasil», cantando «uma história de opressão, mas também uma esperança indómita e um desejo imenso de liberdade».
«Adotando a estrutura padrão de uma missa, o espetáculo cruza o ritual católico e expressões da cultura afro-brasileira, numa sinestésica fusão de sons, cores, danças e ritmos», descreve o site do TNSJ, acrescentando que a obra é apresentada no âmbito do Ano do Brasil em Portugal.
O espetáculo sobe ao palco às 21h30 (quinta-feira a sábado) e 16h00 (domingo).
© SNPC | 07.11.12
Leonardo Silva de Lima