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Temos necessidades ou resplandecemos de possibilidades?

Alimentamos necessidades contínuas, que vivemos como prementes e constantes, insaciáveis. Construímos uma gigantesca sociedade de consumo. Uma sociedade de “precisões” permanentes e urgentes, pois quanto menos se pensar, melhor, desde que se consuma e alimente uma economia que se quer expandir a todo o custo, tendo apenas como horizonte (ou como horizonte determinante) o maior lucro de quem empreende e investe e empresta. Elena Lasida (e o seu “O gosto do outro”) e Luigino Bruni (e o seu “A ferida do outro”) são dois economistas (entre outros) que atualmente nos ajudam a pensar como este horizonte é escasso tanto para a economia como para o ser humano e para a sua plena realização e de como este mesmo horizonte pode ser rompido, em nome do desenvolvimento social e da própria produção de riqueza, riqueza esta que não se reduz ao PIB, mas que implica a riqueza da comunidade, a riqueza do território, a riqueza dos talentos e virtudes dos trabalhadores, a riqueza moral dos fornecedores, bancos, clientes e administração, a riqueza educacional e espiritual das pessoas, como referem repetidamente estes economistas. Os bens relacionais são o mais importante dos recursos desta economia, o laço social é o cimento das sociedades.

A luta pelo consumo mata o desejo das pessoas (pelo excesso da sua contínua satisfação-insa-tisfação), desvia as pessoas de objetivos concretos e concretizáveis, que as dignificariam, e amarra-as a modelos de vida de gozo de oportunidades e de alcance de riquezas sem o devido trabalho e a devida realização humana.

Todos os dias tendemos para precisar de novas coisas e de mais coisas e não nos perguntamos sobre o porquê e o para que é que precisamos do que dizemos que precisamos. Cada dia mais escravos, cada dia à procura de consumir um pouco mais e um pouco mais longe, mais exótico, mais supostamente feliz, mais gadgetizados. «Escravos felizes», como alguém afirmou, é o que parece estarmos condenados a querer ser, neste quadro de relações servis e sem reciprocidade nem cultura do laço social.

Acontece que, focados nas necessidades, a preocupação com o esgotamento dos recursos fica fora do nosso horizonte, bem como a descoberta e o cultivo de uma sociedade de possibilidades e de escolhas conscientes. A sociedade para as necessidades mata a sociedade para as possibilidades. A criatividade e a inovação humanas esgotam-se sob a pressão das necessidades prementes. Antes que haja uma pequena aberta para a nossa autenticidade se vincar e para a nossa criatividade se exprimir, já estamos exauridos.

Como diz Riemen, entre muitos outros, o poder do consumo sobre as pessoas é tal que elas tendem a forjar a sua identidade em torno do ter, do aparecer, do ser visto; o parecer domina sobre o ser e abafa o querer-ser. E esse lugar para onde o consumismo arrasta as pessoas é um lugar cheio de vazio, que quer fazer das pessoas seres também vazios, uns iguais aos outros, seres sempre aptos a consumir. Seres sem perguntas. Lipovetsky tem estudado muito bem esta problemática e fala de «sociedade da deceção», um tempo em que vivemos em «estado de carência perpétua», gerado pela corrida incansável ao consumo, em que mais do que a plenitude, de que nos afastamos implacavelmente à medida que desejamos consumir mais e mais, se alcança uma insatisfação e uma amargura sucessivas e constantes.

A vertigem consumista pode ser pensada como o reflexo de que nos falta algo de essencial e que esse essere não o conseguimos facilmente alcançar e, como estratégia de substituição, desatamos a correr pela estrada fora, sem norte, ou seja, consumimos; quem nos convoca agressivamente para o consumo conhece bem este “segredo” e esta nossa sede e explora-os até à exaustão. Não sabemos para onde vamos, mas vamos cheios de sede e de pressa, isso vamos, por conta da satisfação de uma nova necessidade!

Lembro o maestro Benjamin Zander e as TED, que expressam formas de ver o mundo com base na possibilidade, na criatividade e na inovação (social e não apenas tecnológica!).

Sem artes, sem humanidades, sem ciência e sem cultura, sem serem chamados a abrir-se, a questionar-se, a conviver com o diferente, a atender o mais necessitado, os seres humanos fecham-se e embrutecem. Quando e como se cultiva o que G. Steiner chama «o fascinante esplendor do inútil»? Alguém quer mesmo ouvir falar da poesia, da filosofia, da espiritualidade, da literatura? O que é que (e quem) puxa a humanidade para cima, para acolher o esplendor da graça que cada pessoa transporta em si?

Como o mesmo Steiner também lembra, corremos o risco de ver crescer à nossa volta, nos nossos relvados, a «censura do mercado», sem que os media e as instituições sociais tenham sequer capacidade de distanciamento e capacidade crítica para denunciar essa censura. Censura ao que é mais difícil, ao que é mais inovador, ao que leva mais tempo, ao que não corre ou quer apenas caminhar devagar, ao que é diferente e multidimensional, ao tratado que requer outras leituras, à obra de 400 páginas, ao que cresce devagar, como a arte de constituir uma família, ao que amadurece lentamente, como nós mesmos, ao que requer silêncio, como o culto da amizade, ao que dá frutos interiores, como o dom de si...

Basta pensarmos a nossa vida e as nossas cidades em torno das possibilidades, pois elas resplandecem dentro de nós, tantas vezes abafadas, apagadas ou apenas dormentes. Porque não aprendemos a perguntar: e se fizéssemos…? Porque é que não …? Ou seja, erigir as possibilidades e as “compossibilidades” a uma peça central do viver em comum.

Felizmente, o mundo nem é só Ocidente nem é só Oriente, nem é apenas Norte nem é apenas Sul; ainda bem que não crescemos todos ao mesmo tempo, nem com o mesmo ritmo, nem no mesmo caldo cultural; ainda bem que não vemos o mundo e a vida com os mesmos olhos, mesmo na nossa própria rua. Mas cada vez mais o mundo está a precisar, tal como a nossa rua, da celebração do inútil, do que para nada serve: a arte, a poesia, a filosofia, a literatura, a dança, a música, a criatividade, assim como a amizade, o dom de si, a fraternidade, a celebração da liberdade. E teremos muito a aprender uns dos outros, se quisermos realmente aprender (o que requererá sempre desaprender algumas coisas!).

 

Joaquim Azevedo
Diretor do Secretariado da Pastoral da Cultura da Diocese do Porto
© SNPC | 12.05.14

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