É tempo de recolher as pedras do caminho para que Deus chegue a quem o espera
«Tendo entrado em Jericó, Jesus atravessava a cidade. Vivia ali um homem rico, chamado Zaqueu, que era chefe de cobradores de impostos. Procurava ver Jesus e não podia, por causa da multidão, pois era de pequena estatura. Correndo à frente, subiu a um sicómoro para o ver, porque Ele devia passar por ali. Quando chegou àquele local, Jesus levantou os olhos e disse-lhe: "Zaqueu, desce depressa, pois hoje tenho de ficar em tua casa". Ele desceu imediatamente e acolheu Jesus, cheio de alegria.» (Lucas 19, 1-6)
O tempo para criar proximidade é «o tempo para juntar pedras». Todo o nosso mundo está crivado de pedras pesadas, aguçadas e perigosas, porque nos solicitam - uma e outra vez - pedindo-nos que as utilizemos para apedrejar outros. Antigas querelas, desentendimentos que nunca foram resolvidos, frustrações, desilusões mútuas, ofensas não perdoadas, tudo isso pode tornar-nos duros como pedra. Tudo pode ser transformado em penedos de preconceitos e de animosidade, bloqueando caminhos entre pessoas, nações, culturas e religiões. Ponhamos finalmente termo ao tempo assassino de «atirar pedras», removamos essas pedras da paisagem do nosso «mundo cada vez mais pequeno»! Aquele que traz a salvação não pode chegar aos muitos Zaqueus de hoje que o esperam, enquanto esses pedregulhos continuarem a barrar-lhe o caminho. Trata-se de uma tarefa muito urgente.
Foi precisamente nessa estrada entre Jerusalém e Jericó, na região fronteiriça entre território israelita e palestiniano na Terra Santa -, num lugar de estradas barricadas cheio de armas ameaçadoras, que me ocorreu a seguinte dúvida: poderia Jesus entrar hoje nesses lugares, onde se deu a sua conversa com Zaqueu, há dois mil anos? Não é a folhagem que dificulta a visão dos Zaqueus de hoje, mas uma muralha de armas, injustiças e ódio. Hoje em dia, é difícil não tomar consciência desse ambiente em Jericó, à semelhança do que eu senti, em tempos, em Hebron, junto aos túmulos dos patriarcas, manchados há vários anos pelo sangue de muçulmanos em oração, abatidos pela arma de um fanático judeu.
Quantas vítimas terão sido, desde então, reivindicadas pela violência de extremistas do outro lado e pelo conflito entre os próprios palestinianos? Será possível vislumbrar, através dessa muralha de ódio, «os pés daquele que anuncia a Boa-Nova»?
Não nos diz o convite de Jesus, as suas palavras, que Ele quer estar perto de nós e entrar na nossa casa - não só na Terra Santa, não só em Jericó, mas em muitos lugares do nosso Planeta, que está tão densamente interligado -, abafada pela vozearia que foi apagando gradualmente a palavra «paz» do seu vocabulário? E quando chegam a falar de paz, não fazem nada, ou não fazem o suficiente, para oferecer uma alternativa verdadeiramente radical ao «espírito de vingança» e violência do nosso mundo. Onde estão os pacificadores que Jesus nomeia nas suas oito bem-aventuranças? (...)
Aquilo que é claramente mais importante, no momento presente, é remover as pedras: sopesar nas nossas mãos e no nosso coração os nossos símbolos sagrados e as palavras das nossas escrituras, que poderiam ser utilizadas para «atirar pedras», para instigar e justificar a violência contra outros e o ódio da diferença - como de facto foram utilizadas com tanta frequência no passado e, ainda hoje, continuam a ser utilizadas.
A memória histórica das nações e das comunidades religiosas - e, de modo particular, nas poderosas mitologias sobre o nosso próprio passado, hoje em dia frequente e perigosamente revividas - contém uma estranha mistura de memórias de antigas batalhas, de afrontas sofridas e de faltas dos outros, de sentimentos de inveja e de sentimentos não reconhecidos de culpa ou de inferioridade, compensados pelo orgulho na sua própria predestinação.
Jonathan Sacks, o grão-rabino da Commonwealth britânica, apresentou uma interpretação notável da história bíblica do desentendimento entre Jacob e Esaú, incluindo a famosa cena do combate noturno na margem do rio Jaboc. Como sabemos, Jacob usa de astúcia para ser abençoado e receber a promessa, à qual o primogénito, Esaú, chega tarde de mais. No fim, porém, Esaú, não fica sem uma bênção. Sacks comenta que ser escolhido não significa que outros «não sejam escolhidos». Para estarmos perto de Deus, não temos de impedir os outros de ter a sua relação pessoal (possivelmente diferente) com Ele. (Isto faz-me lembrar uma afirmação ainda mais radical de Levinas, outro pensador judeu: todos nós somos escolhidos.)
Segundo Sacks, o problema de Jacob era que ele sempre tinha querido ser Esaú, ocupar o lugar de Esaú. Lutou com ele no ventre de sua mãe, agarrou-o pelo calcanhar e comprou o seu direito de primogenitura a troco de um prato de lentilhas. Vestiu a sua roupa e, ao ser interpelado por Isaac, já cego, replicou: «Sou Esaú.» Fez mal e usurpou uma bênção. E quando se aproxima a hora da prestação de contas e Esaú marcha contra ele com um grande exército, Jacob sente um medo terrível.
Porém, cai a noite e, com ela, o acontecimento que muda tudo. Jacob, que cometeu a sua fraude na noite da cegueira do seu pai, é obrigado a descer ao meio da escuridão do seu medo e da sua culpa... e a combater aí. Luta com o Desconhecido e mantém-se firme. Percebe, perfeitamente, quem é o seu adversário: dá àquele lugar o nome de Penuel, «Porque vi Deus face a face e conservei a vida.» Por ter descido ao meio das trevas, por não se ter esquivado ao combate e por se ter mantido firme, recebe um nome novo, Israel, «porque combateu contra Deus e contra os homens e conseguiu resistir».
Agora, Jacob-Israel já não precisa de desejar ser outra pessoa, é finalmente ele próprio. Por isso, pode reconciliar-se com o seu irmão. Por ter revelado uma grande força, agora pode manifestar uma grande humildade quando se encontra com o seu irmão. Por ter tido a coragem de olhar para o rosto de Deus, no meio das trevas de um julgamento difícil, a sua falta de ter utilizado as trevas da cegueira do seu pai foi redimida - e agora pode olhar, à luz, para o rosto do seu irmão.
A meu ver, o tempo para juntar pedras é, precisamente, esse trabalho na escuridão, que requer coragem para se descer ao que está esquecido, deslocado e pesado pela culpa e pelas dívidas gravadas no «subconsciente coletivo», e aí, nas profundezas do ser, arrancar pelas raízes os nossos preconceitos e animosidades mútuos e curar as cicatrizes não saradas do passado. Muitas vezes, também é uma batalha, sobretudo uma batalha connosco próprios, e muitas vezes temos de sofrer, no processo, várias feridas. Mas também podemos descobrir a nossa verdadeira identidade.
Tomás Halík
In Paciência com Deus, ed. Paulinas
13.01.14









