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Um pedagogo da democracia: Retratos e memórias sobre o padre Manuel Antunes

Segue-se uma galeria de vozes que traduzem em diferentes registos a experiência do seu encontro com o Padre Manuel Antunes, concordes na modulação da figura, a um tempo singular e exemplar, de um homem de corpo inteiro, na sua presença física, no seu perfil de intelectual, na evidenciação do espírito que o animava, tal brisa vespertina que desanuvia os horizontes da inteligência e da convivência, na consciência crítica da época que lhe foi dado viver, sob a forma de uma teoria da cultura que nele sempre será memória e tomada de posição. Convivem deste modo a reminiscência dos familiares, a rememoração do círculo de companheiros em religião, a unanimidade simultaneamente admirativa e reconhecida de antigos alunos ou, com mais propriedade, para sempre alunos, e o testemunho de mais alguns que as encruzilhadas da vida dele aproximaram.

Tal exercício da memória cumpre uma dupla função, que o recurso à expressão helénica, como ao falar do mestre de Cultura Clássica se recomenda, devidamente esclarece: por um lado, esse exercício é “mnemosyne”,atestação de uma experiência vivida e refletida, do que ficou retido, por vezes com a nitidez e a força de uma atualidade, em função documental; mas, sobretudo é “anamnese”, fazer vir ao presente, aproximar, tornar contemporâneo aquilo que o tempo não consegue aprisionar e, nesse encontro, reconhecer a identidade multifária da presença pessoal do Padre Manuel Antunes e desdobrar esse reconhecimento numa gratidão irrevogável.

Os traços físicos, reiteradamente desenhados, remetem para a fragilidade da aparência, a leveza do passo, o esvaecimento da voz, a suavidade do gesto que prolonga a palavra e a dá por cumprida; e o olhar, clareado e vígil, onde acena uma ironia muito subtil e sempre contida, de modo a que nunca emerja a ameaça de um menosprezo do interlocutor. Essa debilidade física, porém, somente parece impressionar pelo contraste que patenteia com a firmeza, a segurança, o inexaurível fundo de saberes e de atenção ao mais pequenino, de um dizer que deixa transparecer em si a promessa de uma verdade possível e a energia de um assentimento criativo. É como se nos confrontássemos com a realização viva da sentença paulina: na sua fraqueza ressalta a força do Espírito!

De facto, Manuel Antunes oferece a imagem de alguém sempre prestes a ser submerso pelo sofrimento físico; é em si mesmo que parece pensar quando escreve acerca de Séneca: "De compleição frágil - deve ter pertencido ao número daqueles que nunca estão de boa saúde e nunca, também, francamente doentes - impressionável e vibrátil."

FotoSede da "Brotéria", Lisboa

O temperamento é igualmente suscetível de um traçado confluente: sensível, tímido, de uma delicadeza sem refegos, sereno e desassombrado, curioso, de uma universal e omnilateral curiosidade, disponível e livre, soberanamente livre; nele se conjugavam as qualidades com que, uma vez, descreveu a fisionomia moral do “vir romanus”da época clássica: a “gravitas”, a seriedade e o sentimento muito vivo da responsabilidade, a “pietas”em que envolvia todo o relacionamento, um misto de afeto e de assumido respeito, a “simplicitas”, o amor à medida em todas coisas, o rigor como norma, a sobriedade e sensatez da justa medida, não como equilíbrio comprometido, menos ainda como insonsa mediocridade, mas como um extremo de excelência e aguda equidade.

Quem o conheceu, de perto, ou tão-só acompanhando o seu magistério e a sua produção, crítica ou meditativa de acontecimentos e figuras, quem esteve atento ao seu modo de intervenção na sociedade dos homens, reconhecê-lo-á sem qualquer dificuldade em algumas passagens dos seus textos em que caracteriza alguns tipos - o teólogo, "interventor e profeta", o crítico literário, o sábio estoico que encontra a alegria e a paz possíveis na reconciliação de razão e devir, de aceitação e libertação, o humanista que atualiza no presente a palavra do passado - ou em que trata de autores, textos nos quais deixa aflorar uma profunda afinidade, um parentesco espiritual que é mais do que mera simpatia de leitor complacente; é o caso de Séneca, de Inácio de Loyola, "o homem que nada negou a não ser a própria negação", de Pascal, de Kierkegaard, de Gabriel Mareei, de Martin Heidegger, porventura de Plotino, relativamente ao qual nada publicou, e a quem fez muito breve, embora significativa no contexto, menção duas ou três vezes nos seus escritos, mas que projetava tomar como tema da sua dissertação de doutoramento e a que dera o título de "Mística e Filosofia em Plotino". O ambiente da Faculdade de Letras, com as servidões inerentes ao serviço letivo, a ausência de especialistas na área e de um efetivo intercâmbio científico e as habituais pequenas maldades dos homens teriam inviabilizado o projeto. Não obstante, em meados da década de 60, confidenciava-me: "Li tudo o que se publicou no mundo sobre Plotino"; para mim era uma evidência, sem surpresa e sem reservas, a verdade da asserção.

Foto

Valha, a título de exemplo deste "autorretrato" em fragmentos repartido, a caracterização que faz dos "heróis da cultura": "Humanistas compreensores e sentidores das profundas necessidades dos tempos [...] a quem nada daquilo que é humano parece estranho. [...] Nem diletantes nem enciclopédias deambulatórias [...]. De cultura assimilada, feita substância da própria substância, alma da própria alma. Cultura que implica [...] uma certa simpatia profunda com a permuta de sentimentos, de ideias e de emoções que a literatura exprime e veicula; [...] uma certa perceção do fenómeno e da experiência fundamental que é o facto religioso. Heróis da cultura eles são-no por vocação e por imperativo de compreensão." Os heróis de tal estirpe sabem por experiência própria que o caminho é de renúncia quer "às benesses que o conformismo epocal dispensa" quer aos aplausos na praça pública e à feira das vaidades; eles sabem, porque o experimentaram no seu íntimo e na carne, que "já no horizonte do tempo, o nível de uma certa vida, qualitativamente superior, só se alcança por uma certa morte, eles, os heróis da cultura aceitam essa morte. Na esperança."

 

"O único que estava descalço"

Este testemunho da irmã acerca da humilhação sentida por Manuel Antunes, aquando da realização do exame da quarta classe, situa-nos no começo de uma história que o despojamento e a austeridade sempre acompanharam.

Avaro de referências a si mesmo, torna-se por isso tanto mais significativa a seguinte passagem, a qual não pode deixar indiferente o historiador da cultura, o relato da dureza e da miséria do trabalho infantil, as condições das primeiras grandes vítimas da Revolução Industrial europeia: "No que pessoalmente lhe toca não esquece quanto lhe foi árduo ter labutado no campo, cumulativamente com as atividades da escola, até bem entrados os doze anos.

FotoCom alunos, em viagem de estudo

O autor destas linhas não deseja, de forma alguma, que se repita hoje com as crianças aquilo que ele experimentou na infância."

A própria opção pela vida religiosa, conforme um dia me confiou, começou como vontade de sair de tão duras condições, antes de vir a converter-se no sentido de vida plenamente realizado, na substância mesma da sua identidade mais íntima. A fidelidade às origens sofridas podia assim ser tranquilamente reivindicada: "Padre que saiu do povo esente o povo".

Não esqueceu, mas o seu protesto não cedeu ao ressentimento nem à racionalização ideológica, forma deletéria de compreensão do real. Tornou-o, pelo contrário, imensamente aberto às exigências da dignidade dos seres humanos, na resistência e na audácia da lucidez, que denuncia a violência e o negativo de todos os conformismos culturais e sociais, económicos e políticos, éticos e religiosos, e que se preocupa com o reconhecimento sem distorções do homem pelo homem em todos os planos da existência.

Será ainda por devoção aos horizontes da sua infância que o Padre Manuel Antunes, na prodigiosa proliferação de pseudónimos de que se socorre na feitura da “Brotéria”, vai usar, como nos dão conta alguns dos depoimentos aqui recolhidos, os nomes de localidades, de ribeiras e de rios do seu concelho natal, para assinalar a autoria de muitos dos seus artigos. Não esqueceu, mas também não exaltou essas raízes, deixando-as perpassar na experiência de uma forma de vida, já passada, em que "a noite e o dia vinham a seus tempos".

FotoBiblioteca da "Brotéria"

 

O bem do Homem

Confrontado num determinado momento com reservas por haver aceitado dirigir uma dissertação de doutoramento problemática, Manuel Antunes justificou-se placidamente: «Distingui entre o “bonum hominis e o bonum scholae”», sem mais recuo, e adotara a única solução a seus olhos apropriada, não que desatendesse ao aspeto institucional, imprescindível no ordenamento da coexistência dos humanos, mas porque subordinava sem reservas a instituição, toda a instituição, à pessoa. Formulava deste modo, muito para além de um critério circunstancial de recurso, o princípio supremo de coerência por que sempre se regeu, o primado da humanidade, o princípio da viabilização do possível humano.

Humanista foi-o superlativamente Manuel Antunes, pela “doctrina”e pelo “exemplum”. O seu cuidar sem medida de tudo o que é humano é o fator determinante que o levou a trabalhar nos domínios da história da cultura, cultura que sempre encarou como o reconhecimento da "humanidade" do homem, no que este sempre foi e no que sempre pretendeu ser, na unidade do género e na insuprimível individualidade da pessoa, mas sobretudo na prospeção daquilo que o homem pode e deve ser para se cumprir autenticamente como homem; por isso a sua teoria da cultura se prolonga, com a naturalidade do fluir de um rio, numa crítica literária, numa pedagogia e numa política. Com o sentido muito agudo de que a história configura o ser humano, nunca cedeu a um relativismo ou a um mero perspetivismo; as expressões "de certo modo" e " até certo ponto" com que tanto gostava de pontuar o seu discurso manifestam a inteligência humilde de que toda a conclusão definitiva fica sempre em suspenso, toda a totalização é provisória e toda a síntese precária. As certezas que o animavam nunca desenharam círculos de ferro que aprisionassem a realidade em esquemas fixados nem se traduziram em inibições de continuar a percorrer os caminhos de pé posto que são os caminhos da liberdade. Antes pelo contrário, tornavam-no mais sensível à intensa novidade dos dias e aos gestos que inauguram o futuro. Uma metafísica do acontecer humano poderia ser a designação adequada da sua produção cultural, mesmo se fragmentária, e do projeto unificador desta, e a convicção mais funda que lhe impedia a rigidez dogmática, formulou-a ele com as palavras de Santo Ireneu: "Gloria Dei vivens homo". Que Deus não é invejoso ensinaram-lhe filósofos gregos; que .os homens vivam, na abundância do dar e do receber, foi a lição cristã. De ambos os ensinamentos nunca Manuel Antunes se departiu.

FotoSede da "Brotéria"

 

Na fronteira de muitos saberes

Erudito, mas não só erudito, enciclopédico, mas não só enciclopédico, senhor de uma retórica poderosa, mas nunca manipuladora nem persuasiva à custa do artifício, o P.e Manuel Antunes é um mestre da sinopse. Em todas as matérias privilegia a visão de conjunto, procura os grandes ritmos, os elementos estruturais, ao mesmo tempo que isola os acontecimentos fundadores, prenhes do universal e do futuro, e enquadra cada pormenor significativo como refração do todo. Vendo do alto e vendo mais longe, está em condições de surpreender as articulações e as correspondências, de estabelecer as homologias, de compreender as interseções e as sobreposições. Confiou à Filosofia esse poder de reconduzir à unidade os “disjecta membro”, de uma experiência em busca de sentido; mas deixou sempre em aberto as sínteses que ia construindo, abertura que no plano da ação investia numa utopia realista e, no plano de uma visão derradeiramente pacificadora e totalizante, remetia para a mística: "A era dos místicos, dos místicos que conheceram a terra, dominaram a terra, amaram a terra, mas a quem a terra não bastou, está a chegar."

Foi também um comentador da atualidade mais próxima ou de mais remota geografia, bem informado e sumamente atento aos movimentos de longo fôlego, às fortíssimas deslocações tectónicas da transumância  da humanidade contemporânea, aos tempos longos das derivas dos continentes culturais, de ouvido permanentemente à escuta dos sinais e dos fatores de unificação do género humano, à emergência, pela primeira vez efetiva na história, da realidade da “Ecúmena”, a exigir novas relações e novas instituições, outros estilos de vida e de pensamento, sem descurar a memória e sem comprometer a esperança, porque do possível prometido ao homem nunca ninguém viu o limite.

Foto

Era antes do mais um homem de fronteiras, porque abominava a ambiguidade e a indeterminação, a “commixtio generum” indiferenciante; mas nele as fronteiras são ocasião de proximidade e não barreiras enclausurantes e ameaças de segregação; não era outro o sentido de haver tantas vezes retomado o subtítulo da obra de Jacques Maritain, “Les Degrés du Savoir”, "distinguir para unir", apropriação de um enunciado programático que, muito para além de um procedimento metodológico na investigação e na exposição das matérias, era um princípio de orientação na ordem do pensar e na vida de relação: diferenciar sem absolutizar as diferenças, unificar sem amalgamar, criar vínculos sem desfazer a irredutibilidade dos indivíduos, conciliar a solidão e a socialidade.

É profundamente pertinente, mas mesmo assim aproximativa, a síntese lapidar de Jaime Gama no depoimento mais adiante transcrito; "Era um homem da Companhia de Jesus, mas não era inteiramente da Companhia de Jesus. Era um homem da Igreja, mas não era inteiramente da Igreja. Era um homem da Universidade, mas não era inteiramente da Universidade." Talvez o Padre Manuel Antunes afinal tenha sido em cada uma dessas dimensões por inteiro, na inteireza de uma pertença sem fissuras, mas à sua maneira, isto é, dialecticamente; ou seja, vivendo por dentro a tensão de todas as fronteiras, reconciliando com vida e saber a identidade e a diferença em todos os patamares da existência, e realizando, na esperança, a aliança dos contrários, a “concórdia discors”ou a “discórdia concors”em que sempre reconheceu a verdade da vida do homem em devir, como espírito e tempo.

FotoCom Francisco Pinto Balsemão, no anúncio da criação da Fundação de Ciências Políticas

 

Testemunhos (em forma de entrevista)

1. Nas Origens Pequenas: a Revelação de um Homem Grande
Maria Lídia Manso
Maria do Céu Antunes Simões
Padre Lúcio Craveiro da Silva
António Manuel Simões, Elisàbete Simões e Maria de Lurdes Simões
Cândido Pozo
José Fernando Pereira Borges

2. Um Intelectual na Cidade
Filomena Antunes
Eunice Munoz
Sophia de Mello Breyner
D. António Ribeiro
Maria Flor de Oliveira
David Pinto Correia

3. A Arte de Formar Homens Novos
Luís Lima Barreto
Teresa Patrício Gouveia
Rita Mendes Pinto
José Alves Pires
Ana Cristina da Costa Gomes

4. A Luminosidade de um Mestre
Miguel Real
Manuel José ao Carmo Ferreira
Carlos Maria Vasconcelos
Álvaro de Pina
José Barata Moura
Manuel Ferreira Patrício

FotoPadre Manuel Antunes condecorado pelo presidente da República, Ramalho Eanes

5. O Fascínio da Cultura
João Bénard da Costa
Arnaldo do Espírito Santo e Cristina Pimentel
Peter Stilwell
Maria do Céu Guerra
Isabel Mayer Cadinho de Mendonça

6. As Pessoas em Primeiro Lugar
Luís Machado de Abreu
Zeferino Lucas
Luís Miguel Cintra
Amadeu Pinto
Fernando Dacosta
António Reis

7. Humanismo Dialogal
Luís Machado de Abreu
Luís Archer
Guilherme d'0liveira Martins
Luís Filipe Barreto

8. Pensador Cristão de Fronteira
Jaime Gama
Rogério Fernandes
António Matos Ferreira
D. Manuel Clemente
António Lopes
Mário Sottomayor Cardia

9. Religião, Cultura e Mundo: Encontro e Síntese
Hermínio Rico
Francisco Sarsfield Cabral
Isidro Ribeiro da Silva
João Baptista de Magalhães
Alberto Brito
Manuel Cerejeira
Elisabete Évora Nunes

10. A Dignidade da Política
Francisco Pinto Balsemão
José Paulo Farinha
José Eduardo Franco
Francisco Pires Lopes
Manuel de Lucena

11. A Pedagogia da Liberdade
António Ramalho Eanes
Mário Soares
José Medeiros Ferreira
Fernando Cristóvão
Eduardo Lourenço
Aires Augusto Nascimento
Matilde Sousa Franco

 

Esta transcrição omite as notas de rodapé.

 

Manuel José do Carmo Ferreira
Presidente da Assembleia Geral do Instituto Europeu de Ciências da Cultura Padre Manuel Antunes
In Um pedagogo da democracia - Retratos e memórias sobre o padre Manuel Antunes, sj, ed. Gradiva
21.12.11

Capa

Um pedagogo da democracia
Retratos e memórias sobre o padre Manuel Antunes, sj

Autor
José Eduardo Franco (coord.)

Editora
Gradiva

Ano
2011

Páginas
400

Preço
18,00 €

ISBN
978-989-616-450-8


 

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