Leitura
A poesia «divide-se em quem faz os poemas com palavras vazias e quem o faz com palavras densas, pesadas de vida»
A poesia «se divide em quem faz os poemas com palavras vazias e quem o faz com palavras densas, pesadas de vida, com palavras que arrastam pele, carne, sangue das coisas para dentro do poema. Entre poesia leve e poesia pesada. Se existisse uma balança abstrata que pesasse a poesia, descobriríamos um poema verdadeiro. Quanto pesam os breves poemas de José Paulo Paes ou do Leminski? Algumas toneladas. Porque eles puseram tanta vida ali dentro que cada palavra palpita, respira, escorrega da página para a alma da gente, raspando por onde passa».
Vera Lúcia de Oliveira nasceu em Cândido Mota, no estado brasileiro de S. Paulo, em 1958. É formada em Letras, pela Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista, e em Línguas e Literaturas Estrangeiras Modernas pela Università degli Studi di Perugia, em Itália, onde reside. Concluiu o doutoramento em Literatura Brasileira na Università degli Studi di Palermo.
«A poesia é uma viagem em vertical porque o poeta trabalha com o que está em profundidade, com o que fica por muito tempo sendo burilado pelo sangue, pelas águas agitadas ou calmas da alma. Poesia não é fotografia da realidade. Poesia nasce da reflexão, do vivido e sofrido, do que se freqüenta com todos os sentidos, ou do que nos investe, nos arrasta como avalanche levando para dentro seus detritos. Tudo isso entra na poesia, mas entra decantado, digerido, assimilado.»
        
        Autora de numerosos trabalhos sobre poetas contemporâneos editados em revistas  brasileiras, portuguesas e italianas, Vera Lúcia de Oliveira foi premiada em diversos concursos de  poesia e contos e participou em antologias. Está publicada  no Brasil, Portugal, Itália, Espanha e Argentina.
«Você me pergunta porque escrevo em português. Porque é a minha língua, porque eu aprendi a pensar e a sentir em português. E nunca mais vou perder isso, graças a Deus. Gosto de ter aprendido a nomear o mundo em português, que é uma língua onde tem tanto espaço para um relacionamento afetivo com as coisas, com a realidade, com as pessoas, muito mais do que o italiano.»
Estará a poesia a caminhar para a mudez? «Não acho. Os poetas têm tanto a dizer. Caminhamos é para a surdez completa da sociedade, que não dá mais nenhum valor para a poesia, que não quer pensar, que tem medo de olhar para dentro das coisas e de si mesma. Mas eu não acho que os poetas vão parar de escrever por isso. Tantos poetas foram totalmente ignorados, outros ridicularizados.»
«Ontem estava lendo uns poemas de Cesário Verde, esse grande poeta português que morreu desconhecido e praticamente inédito. Ele publicou vários textos nos jornais da época, mais ninguém deu importância, ao contrário, ele foi contestado pelos críticos de então, que não compreenderam a novidade da sua belíssima poesia. Ele vivia tão frustrado, coitado, que dizia que não iria mais escrever, que abandonaria para sempre a literatura. Mas nunca a abandonou e escreveu até o fim. Graças a isso nós hoje podemos nos enriquecer com o que ele deixou, aquelas palavras onde a vida escorre em jorros, onde mais de cem anos depois nós ainda nos podemos reconhecer, como se ele tivesse escrito para nós, também para os homens e mulheres de hoje e de sempre.»
O que é necessário para ser poeta? «Não sei, até hoje ainda estou querendo saber. Fico perscrutando dentro de mim para colher o momento da poesia, e nunca é quando espero. Para Cabral a poesia é construção, junção de um tijolinho sobre o outro, ordenadamente, matematicamente quase. Acho que Bandeira era mais honesto, quando dizia que não sabia de onde vinha a poesia, mas que ele a aceitava, humildemente, de onde quer que fosse que essa jorrasse. Eu também penso assim. Basta que jorre de vez em quando, que nos dê essa sensação maravilhosa de ter posto, por um breve instante, as mãos nesse fio misterioso e subterrâneo que escorre, como a eletricidade, e que é a vida».
«Espero que estejamos vivendo uma nova renascença, no sentido de uma revitalização da poesia, da compreensão da sua importância, do seu valor cognoscitivo na história. Como dizia Pound, os poetas são as antenas da sociedade, porque captam transformações, tendências, denunciam perigos, alertam. Quanto mais a sociedade marginaliza a poesia, mais precisa dela. Marginaliza porque não quer pôr em discussão a sua organização injusta, as suas leis rígidas e mecânicas, onde só a economia, o mercado contam e decidem os parâmetros e as possibilidades de vida de milhões de pessoas. Você já viu algum economista que é poeta? Eu até gostaria de conhecer um.»
O escritor, tem algum papel na sociedade? «O papel é ético, é o de escrever com a maior honestidade e humildade possíveis. E é também o da resistência, hoje, contra a desumanização, a despersonalização, a fragmentação da realidade. Sei que é uma grande responsabilidade, uma utopia, mas cada um faz o seu pouco, cuida do seu pedacinho de jardim, que para algo deve servir. Parece que não serve, mas serve. A arte existe para isso e sem ela perderíamos o sentido das coisas, a beleza e a intensidade dos momentos vividos, a riqueza de cada instante de amor ou mesmo de sofrimento, a consciência da nossa fragilidade, da nossa sensibilidade.»
A primavera
tenho ouvido para toda semente
        elas invadem o mundo, elas me elevam
        a Deus e escuto o serrote 
        raspando por dentro delas 
        a casca da terra
Henri Martin
O vento na árvore é Deus
o vento na árvore é Deus
        que sopra onde rasga
        Deus escolhe a rocha
        onde pousar seu rastro de árvore
        e a unha-fome de tirar
        da pedra
        veia de pedra que se fia
        em planta provisória
Deus escolhe
        para cada raiz a roca
        para cada galho seu precipício
        para cada fome sua forma de filtrar
        o máximo
        da consunção
Claude Monet
A poesia é um estado de transe
        
        a poesia é um estado de transe
        a poesia é um estado com Deus
        quando tem hora em que Deus  nos visita
        a casa se enche de tudo quanto
        Deus carrega consigo no seu útero
Marc Chagall
Dentro
        
        só dentro me placo
        só no denso posso aquietar-me
        ando pelas ruas como alguém
        que perdeu um porto
        em qualquer lugar que esteja
        estou como tocada por uma
        vontade de penetrar no osso
      de tudo o que Deus gerou
Anish Kapoor
Crônica Milanesa
na catedral de Milão
        às três da tarde sexta-feira santa
        um Cristo estendido expira (de novo)
        enquanto uma turista austríaca explica
      [as técnicas da edificação gótica
           [das catedrais da idade média
                 a um bando sonolento de turistas
        um pombo passeia pela nave e pousa no
       [vitral incendiado pela luz horizontal
            [da tarde
        e o padre se exalta e amaldiçoa (de novo)
        Júlio César Pôncio Pilatos Herodes e todos
          [os soldados (romanos e austríacos)
                                amém.
William Wiehe Collins
Poemas de Vera Lúcia de Oliveira
        Entrevista publicada em "A garganta da serpente"
        © SNPC |
        15.05.14
      






    
  


