Vemos, ouvimos e lemos
Paisagens
Pedras angulares A teologia visual da belezaQuem somosIgreja e CulturaPastoral da Cultura em movimentoImpressão digitalVemos, ouvimos e lemosPerspetivasConcílio Vaticano II - 50 anosPapa FranciscoBrevesAgenda VídeosLigaçõesArquivo

Fé e cultura

Uma fenda no mundo. Do espiritual na arte contemporânea (II)

2. O sagrado e a obscuridade

O esgotamento das linguagens representacionais tradicionais – e já Hegel, nas suas aulas de Estética, se lamentava porque as obras de arte do seu tempo não levavam ninguém a ajoelhar-se e adorar... - essa crise gramatical das imagens coloca a muitos artistas a questão: como desocultar o sagrado no profano? (1)

Sente-se ao longo do século XX uma desconfiança da linguagem religiosa judaico-cristã tradicional. Um cansaço por essa linguagem do hábito já não surpreender. O encanto dos artistas vanguardista do início do século pela arte primitiva reside nesses objetos guardarem uma outra linguagem. Diria mesmo, por serem expressão de uma linguagem pré-verbal, anterior à formulação institucional fechada e repetitiva do sagrado. A arte moderna afastou-se da narrativa e da ilustração e desejou o mundo anterior à fórmula do cristianismo instituído como norma, que parece não ter guardado um reservatório de mistério. Muitos artistas nos últimos cem anos abrem e percorrem uma via negativa.

As religiões, as instituições, pretendem ter respostas e clarificar o segredo. São detentoras de uma verdade que administram. Nomeiam Deus, dão-lhe atributos. Este pensamento institucional do sagrado, como que o faz desaparecer porque o revela. A arte, pelo contrário, não o desvela absolutamente, aponta-o, aproxima-se... Ou abre uma região de negritude, de desconhecimento, onde se perdem as referências: a obscuridade e a desorientação podem ser os seus atributos. Em vez de “desvelar o ser”, como propõe Heidegger, a obra de arte vela-o, introduz-nos numa escuridão essencial para que alguma coisa possa advir.

Imagem

Incredulidade de São Tomé (Caravaggio)

Neste sentido, escreveu Emmanuel Levinas comentando o pensamento de Maurice Blanchot: “A obra descobre, com um descobrimento que não é verdade, uma obscuridade. (...) obscuridade absolutamente exterior sobre a qual nenhuma possessão é possível.” (2). Esta enorme escuridão que a obra de arte nos abre, coloca o homem no exílio, em lugar inóspito, inabitável, inseguro. A obscuridade da arte é a daqueles que não têm onde inclinar a cabeça e descansar. Um fundamento abissal e originante, antes de tudo, para o qual as palavras faltam. “Luminosidade que desfaz o mundo”, luz negra que o remete à sua origem murmurante. Assim a obra desenraíza o homem do seu mundo, abana a sua morada, retira-o ao hábito e às certezas, e retorna-lhe a sua condição de nómada, peregrino. Também o reino da obra de arte não é deste mundo. Vem trazer a espada e não a paz. Destrói o mundo e recria-o. Rasga uma fenda e abre uma porta para a noite. “A arte, longe de iluminar o mundo, deixa experimentar a obscuridade da qual emerge todo o mundo” (3). E, como indica o belíssimo título de um livro de José Tolentino Mendonça, “a noite abre meus olhos”.

Como temos vindo a reler, há cem anos escreveu Kandinsky em Do espiritual na arte: “A nossa alma possui uma fenda que, quando se consegue tocar, lembra um valioso vaso descoberto nas profundidades da terra.” (4). Uma fenda, mas esta abertura é necessário tocá-la, encontrá-la antes de mais e tocá-la. A obra deve dirigir a mão até esta fenda e fazer-nos experimentar o que se abre nela. Penso numa célebre tela de Caravaggio quando digo isto, em que Cristo guia na escuridão a mão de Tomé até ao seu lado aberto. Mas também numa obra de Anish Kapoor: em The healing of St. Thomas, o artista retoma essa passagem bíblica. Com ela deseja promover a experiência pessoal do espetador, que estique a mão e toque. Apresenta um corte feito na parede da galeria, encarnado vivo, vaginal, onde a referência do título nos induz numa leitura do lado aberto de Cristo. Uma ferida que salva, que cura. Sobre esta obra disse Kapoor: “Tomé estica o braço, aproxima-se para tocar o que é aparentemente uma ilusão, para então encontrar a realidade. O olho e a mão necessitam um do outro. Uma vez tocada a ferida, uma espécie de curativo tem lugar em Tomé. Ele é curado da sua dúvida. Este trabalho é um simples corte na parede, uma ferida na parede. A ferida tem uma forma que é vaginal, mais a ver com a totalidade/a completude (wholeness) do que com a morte. Refere-se ao espaço por detrás da parede, e é claro, vê a arquitetura como uma metáfora do si. Eu poderia ter feito este trabalho num bloco de pedra mas parecia-me muito concreto, demasiado figurativo, não suficientemente real. Demasiado haver com narrativa e não o suficiente com potencialidade psicológica.” (5).

Imagem

The healing of St. Thomas (Anish Kapoor)

A obra do artista indiano Anish Kapoor (1953), que estudou e trabalha em Inglaterra, pode ser sumariamente caracterizada por esta noção de fenda: aberturas e pontos atractores, vórtices, buracos negros/luminosos que tudo chamam para si. Nos desenhos, esculturas e instalações dos anos 80, encontramos referências explícitas a feridas, orifícios, órgãos sexuais, passagens. Eram figurativos, ainda que a interpretação não fosse clara e estivesse nos olhos do observador. Aos poucos vai-se afastando da figuração, deixando apenas vestígios e aproximando-nos de nada, do Nada, nas suas diferentes declinações: void, hollowness, emptiness.

O artista quer que as suas obras permitam o que chama de Proto-experiências (6). Experiências originais-originantes. Um regresso à origem da vida. O conhecimento da psicologia de Jung e dos seus arquétipos inconscientes, marca o trabalho de Kapoor na procura de uma linguagem pré-verbal, nem mesmo simbólica, ainda mais primitiva: a experiência da “Grande Mãe”. O ventre, recetáculo e produtor da vida. A relação intima da obra com o espetador, envolvendo-o, atraindo-o. Obras a um tempo marcadas pelo terror e a atração – e facilmente encontramos aqui um reflexo do pensamento de Rudolf Otto sobre o Numinoso. Em alguns casos a relação com estes buracos vazios e negros é a do medo da “perda de si próprio”, o perigo de ser consumido pelo objeto. Como se a escultura nos desmaterializasse. Mais do que medo é “a vertigem, a experiência da queda, de ser puxado para dentro” (7). Para um espaço vazio, um proto-universo, entre reconhecimento e caos. As suas esculturas não são apenas para olhar, mas para se sentir, entrar nelas, experimentar: todo o corpo é posto em jogo, não se relacionam apenas com a visão-conhecimento teórico. Somos tomados por elas. Kapoor faz trabalhos para a experiência física porque há uma inteligência no corpo, nos sentidos, um sentido interior que se revela diante destas obras que nos retiram da normalizada experiência de ter corpo. Somos um corpo e essa é uma experiência espiritual tremenda. Como se diante destas imagens uma memória corporal inconsciente pudesse presentificar-se. As suas instalações e esculturas interrogam a forma como habitamos o espaço. E para tal acontecer, Kapoor, tal como Rui Chafes, apaga o seu gesto, não quer marcas de fabrico pessoal, como se a obra existisse por si, como se fosse possível um objeto artístico “auto-gerado, feito-por-si-mesmo, de alguma maneira revelado.” (8).

Assim, a arte pode refletir o mistério. Apresenta-nos a alteridade enquanto tal. Uma alteridade essencial. Um Outro absoluto. A sedução do infigurável por oposição ao corpo tangível do Deus cristão (mas, como afirmámos, também este tem na atualidade artística as suas consequências e frutos, que estudaremos em ensaio próximo). Outros, ainda, pensam as disciplinas artísticas como “um pensamento irreligioso do sagrado” (9). Um regresso às origens mais puras da relação com os mitos e a nostalgia das origens, a comunhão com a matéria, a simplicidade das formas originais, o cosmos e as suas forças sagradas, o fascínio pelo informe e o caos.

 

(1) Mais um tema que merece ser posteriormente retomado: problematizar esta noção de sagrado na arte contemporânea, a sua incompreensão, má utilização, pretexto de tudo e nada. A este propósito, já depois desta comunicação, aconteceu um interessante debate em redor da exposição L´art du sacré, comissariada porAngela Lampe e Jean de Loisy, no Centro Pompidou, em Paris. Cfr Catálogo da exposição e polémica em Artpress2, nº.9, Le sacré, voilà l´ennemi!, Mai-Jul 2008.

(2) Emmanuel Levinas, Sur Maurice Blanchot, Paris, Fata Morgana, 2004, p.22

(3) Ángel Garrido-Maturano, La estética al servicio de la socialidad: sobre la relación entre la Estética de Levinas e Kant in Revista Portuguesa de Filosofia, Vol.62, Fasc.2-4, Abr-Dez 2006,  p.657.

(4) Kandinsky, Do espiritual..., p.22

(5) Entrevista a Anish Kapoor in Anish Kapoor, Tel-Aviv, Tel-Aviv Museum of Art, 1993, p.62.

(6) Ibidem, p.60

(7) Ibidem, p.59

(8) Ibidem, p.61

(9) Marc Le Bot, L´art et le sacré in Colóquio – Artes, n.º 100, Março 1994, p.38.

 

Paulo Pires do Vale
Comunicação na Semana de Estudos de Teologia, UCP, Lisboa, 2007
08.04.09

Capa

 

 

 

Página anteriorTopo da página

 


 

Receba por e-mail as novidades do site da Pastoral da Cultura


Siga-nos no Facebook

 


 

 


 

 

Secções do site


 

Procurar e encontrar


 

 

Página anteriorTopo da página