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Voltas que a vida dá

«Histórias incompletas de vidas reais que, de uma forma ou de outra, têm sempre algo a ver com as de cada um de nós»: é destes dramas, também lições de vida, que é tecido "Voltas que a vida dá", o novo livro da psicoterapeuta Margarida Cordo.

O volume, lançado esta quarta-feira em Lisboa, «é dedicado a todos», escreve a autora na introdução: «Também aos sábios de outras artes que não imaginam o que é uma psicoterapia e ignoram por completo aquilo que representa para alguém ter um "espaço evolutivo" apenas seu, onde pode ser sem fazer de conta acerca de coisa alguma.»

«É bom que fique claro que não se trata de uma mostra do que é um psicoterapia. Muito menos de um "manual de boas práticas". Costumo dizer que "somos os outros dos outros" e, provavelmente, a leitura deste livro corresponde a um desafio empático de, "colocando-me na pele de alguém que não sou eu", aprender para a minha vida com a vida dele/a.»

As histórias incompletas de vidas reais narradas neste livro são «misturadas como se fossem uma só e com as referências não essenciais totalmente alteradas, de modo que só os próprios se identificarão em cada recorte», explica Margarida Cordo.

«Trabalhar demais. Inverter prioridades», «disfuncionalidade e família», «homossexualidade escondida», «inveja, desconfiança e dificuldades de socialização», «as mulheres e a aceitação de si no processo de envelhecimento», «o mistério da vida e o mistério da morte», «suicídio» e «interferências das famílias de origem nos casais» são alguns dos temas das conversas entre terapeuta e paciente.

 

De vergonha e de medo - Testemunho de resiliência
Margarida Cordo

Paciente: Tenho uma história dramática e uma vida quase igual. A exceção é que sei que sou amada e isso retira o drama das coisas. Veja como é importante. Faz a diferença toda. Tenho pensado muitas vezes que a doença do desamor é a mais grave de todas as doenças. (...) Como facilmente perceberá, não vai ser nada fácil falar de mim e do que vivi (...)

Aos 18 anos tive muitas dores, assim quase de repente. Tantas e tão extensas que as retenho em memória como uma ameaça permanente. Já pensei muito nisto. Assim, sei que será, decerto, possível alinhar todas as ideias que quero transmitir. Por isso continuo. Tive medo e vergonha de me queixar. Medo, porque achei que ia morrer. A fazer sofrer daquela maneira, qualquer doença me mataria. Vergonha porque, aos 18 anos, toda a gente tem saúde ou, pelo menos, todas as pessoas que, até então, conhecia a tinham.

Vivia numa aldeia alentejana onde nem escola existia e, por isso, já tinha sido o cabo dos trabalhos para fazer o ensino secundário. Apanhava o autocarro todos os dias muito cedo e chegava muito tarde. Os transportes eram escassos e, se perdesse aqueles, não me restavam alternativas. Era um enorme sacrifício estudar. Cansava-me, passava muito tempo só e não tinha outras crianças para me fazerem companhia na minha terra. A verdade é que eu gostava de ler e mantinha uma certa curiosidade, crescente, aliás, por algumas das coisas que ia aprendendo. Chegava a sonhar que podia vir a ser isto ou aquilo, mas o mais certo era não vir a ser nada, já que as probabilidades de evoluir academicamente eram escassas, porque exigiam um orçamento mínimo que os meus pais não tinham.

Sou a mais nova de quatro irmãos e a única rapariga. Todos estavam a ficar pelo campo e, com certeza, a minha sorte seria a mesma. Não me interessava nada, mas tinha de aceitar. Ninguém era culpado por isso.

Ao cabo de poucas semanas, o meu sofrimento físico era indisfarçável, até porque se fazia acompanhar de um cansaço visível aos olhos de todos. Eu continuava a calar, mas a minha aparência falava por mim. O meu pai, que parecia o mais distraído, perguntou-me o que tinha. A minha tendência natural teria sido dizer que não tinha nada, mas saiu-me: «não sei». Foi perante esta resposta que a minha mãe "ligou as antenas". Ambos me fizeram muitas perguntas às quais, na sua maioria, não respondi, mas percebi que ficaram preocupados. Terão falado durante a noite e, no dia seguinte, partiram comigo para as urgências do hospital da cidade, das quais já não saí. Passei 15 dias a fazer exames e, pelos vistos, o meu panorama clínico foi-se desenhando. Não me explicaram bem o que tinha, mas ficou claro que o tempo que me sobraria com alguma qualidade de vida seria pouco. De repente, todos em casa passaram a ter muito mais delicadeza comigo.

De facto, as doenças graves, quando chegam, são intrusas. Não são convidadas. Soube mais tarde que o médico que acabou por ficar responsável pelo meu caso terá dito à minha mãe que fizesse os sacrifícios que pudesse, que mobilizasse tudo o que tinha ao seu alcance para que eu fosse feliz. Ora, o que ela pensou foi que o que eu mais gostaria de fazer seria continuar a estudar e, com a ajuda dos meus irmãos, acabei por ir para a Universidade de Coimbra.

Terapeuta: Fazia algum tratamento para lhe atenuar as dores? Achou estranha a mudança do seu futuro previsível?

P - Tratamento, sim, fazia. Era numa espécie de autogestão. Os remédios prescritos faziam mal a outras coisas. Por isso, não podia tomá-los sempre, mas era muito mais fácil viver sabendo que dispunha de meios para atenuar o meu sofrimento físico. Senti uma imensa liberdade.

Quanto à mudança de projeto de vida, conversei com os meus pais e com os meus irmãos também. Todos me deram a entender, ainda que discretamente, que, como era a filha mais nova, afinal podia ter a oportunidade de tirar um curso superior. Claro que eu percebi que seria outra coisa porque, até à minha estadia no hospital, nem se falava de faculdade lá em casa. No entanto, também quis fazer de conta que o que me diziam era aquilo mesmo. Dava-me imenso jeito pensar assim.

Todos sabiam mais do que diziam.

Exatamente. Sei hoje que essa era uma forma de fuga ao problema, mas, naquela época, serviu muito bem. Foi muito útil. Hoje percebo quando algumas pessoas dizem que não têm medo da mor­te, mas têm medo do que vão sofrer. Eu, como já tinha os meus com­primidos, enquanto existisse, havia encontrado um modo possível de não pensar nisso.

Claro que as coisas não são assim tão fáceis e, no fundo, eu acabava por ser uma pessoa com pouca esperança e, mesmo sem o dizer, com bastante revolta. Até isso esteve na origem da escolha do meu curso. Optei por Relações Internacionais. O que pensei foi: se me restar pouco tempo, enquanto cá andar, farei o que gosto. Este é um curso que dá azo a ampliar claramente a cultura das pessoas e eu sempre tive um fascínio pelo saber. Se, por acaso, me fosse dada a oportunidade de prolongar a vida, então tudo faria para escolher a carreira diplomática. A minha sede de mundo, de convívio, de relações, de notícias interessantes, era imensa. O que até então tinha lido, o que via nas notícias bastava-me para imaginar que ele era muito maior e mais colorido do que aquilo a que eu e a minha família tínhamos acesso.

Procurava um mundo melhor.

Hoje, digo-o com consciência, não sei se melhor. Apesar dos momentos materialmente difíceis por que passámos, éramos uma família unida e ninguém tinha emigrado. Acho sinceramente que por decisão de ficar perto uns dos outros. Morávamos em casas próximas e convivíamos, sobretudo no verão, quando o calor invade os interiores e os passeios são os melhores sítios para desfrutar o fresco da noite, contar graças, jogar cartas...

Fui para Coimbra cheia de sonhos, mas, de uma forma ou de outra, não tinha grandes projetos de médio prazo. Lá aprendi a valorizar cada dia, sem pressa de viver. No fundo, tinha o diagnóstico de uma doença crónica que sabia que me podia matar ou incapacitar precocemente, por ser também progressiva, mas recusei entregar-me a essa crença.

O curso foi decorrendo e, porque não me sentia mais doente, a esperança ia crescendo devagarinho. Muitas vezes pensei que ela sofreria transformações no encurtamento de horizontes de quem tem uma doença como a minha, desde o querer viver muito até só querer morrer sem dor e com dignidade, mas isso não aconteceu. Fui querendo mais e mais da vida e achando que esta não era uma exigência excessiva, considerando a forma como me ia sentindo e o sucesso que ia tendo.

Recordava, ainda assim, com alguma frequência, o mal que, num passado que, então, era recente, me havia sentido.

O seu corpo transformou-se num obstáculo. Sentia-o exces­sivamente e pelas piores razões.

Era. Tenho memórias muito vivas não apenas das dores de que lhe falei (esse acabava por ser o mal menor), mas também de desidratação, de um mau gosto na boca...

Falando do seu sucesso...

Teremos de desenvolver este assunto com mais detalhe noutra sessão, já que também ele tem muitos conteúdos que fizeram toda a diferença no meu crescimento e na pessoa que sou hoje. No entanto, o que lhe quero dizer é que comecei a sentir, a dada altura, que era vista, que era apreciada, tendo, depois, percebido que também era amada e, curiosamente, como quase tudo na minha vida, também isto aconteceu ao contrário do que é mais frequente. Comecei a ter mais cuidado com a minha aparência e, sem presunção, fui-me transformando numa mulher interessante não apenas intelectualmente. Passei a vestir com outro gosto, embora com pouco dinheiro. Compus a minha imagem.

A atração era manifestamente recíproca e estamos a falar daquele que é hoje meu marido.

Temos uma relação já com nove anos e cada dia que passa somos mais imprescindíveis um ao outro. Fazemos várias partilhas devido ao percurso profissional de cada um e aos projetos que decidimos «abraçar»...

As pessoas passam o tempo a «inventar» mundos perfeitos que não conseguem encontrar. Gastam os dias a procurar gente de caráter que as desilude... E isso acontece na vida real, mas não na nossa relação. Apoiamo-nos sem dramas, mas com maturidade. Dou-lhe um exemplo relativamente recente para ilustrar.

Eu tinha produzido um vídeo institucional (faço destas coisas, apesar de nada terem a ver com a minha formação académica de base). Foi inovador, ficou bastante bem. Enfim, cumpriu a missão a que se destinava. Algum tempo depois recebi um telefonema de uma pessoa que havia estado num congresso no Funchal no qual tinha, entre outras, sido feita uma intervenção de um colega meu, boa parte da qual consistia numa apresentação estrategicamente cortada no momento de passar a ficha técnica, sem qualquer referência ao seu autor, tendo, portanto, ficado os assistentes ao congresso convictos, pela atitude do referido palestrante, que o trabalho era da sua autoria. Ora, quem me telefonou não só conheceu a minha voz na locução, como, por estar habituada a ler várias coisas que eu escrevo, percebeu que aquele texto também teria sido, muito provavelmente, escrito por mim. Em suma, fui descaradamente plagiada por alguém com quem tive de continuar a trabalhar. Partilhei isto com o meu marido e foi ele quem me ajudou a reduzir o impacto dessa traição, aliás não a única do referido colega. Veja que consigo estar com ele com naturalidade e sem ressentimentos. Perdi, é certo, a confiança, até porque já «tropecei» noutras atitudes semelhantes que dele usualmente partem, mas estou em paz até mesmo na sua presença. Depois disso já o ajudei. Já lhe dei outras oportunidades até.

Estou apaziguada, mas isto foi conseguido através da partilha que, em casal, fazemos.

«Ninguém pode fazer-te infeliz sem o teu consentimento». Parece ser isso o que conseguiu na relação com esse seu colega. Decerto não a desiludirá mais. A Isabel já lhe retirou esse poder, mas percebo que foi só um exemplo. O que disto importa é o caminho que percorreu para aqui chegar, em conjunto e em diálogo com o seu marido.

Sim e, não havendo relações perfeitas, nem tendo eu a pretensão de lhe dizer que o meu casamento é uma relação perfeita, somos, mesmo nas desavenças, pessoas que funcionam como equipa de bem-fazer.

Noutra sessão, mais adiante na terapia

Tem sido fundamental, neste momento da vida em que se me colocam desafios essenciais pela frente, andar a fazer estas reflexões. Cada vez mais acredito que a coragem da verdade com que partilhei com o meu marido, enquanto namorados, a minha experiência de doença e a minha potencial condição nos conduziu até aqui. Não estou em negação, nem ignoro os meus problemas, mas tenho um olhar de esperança porque tenho aprendido a relativizar imensas realidades que, antes, julgava serem absolutas.

Trouxe uma coisa que queria partilhar consigo porque acho estes conteúdos de uma enorme riqueza e gostava de os comentar, já que a minha vida também é uma espécie de infirmação do que é mais comum. Foram escritos por Mário Quintana, poeta e pensador brasileiro do século XX, que nasceu em 1906. Vou ler:

«Deficiente» é aquele que não consegue modificar sua vida, aceitando as imposições de outras pessoas ou da sociedade em que vive, sem ter consciência de que é dono do seu destino.»

«Louco é quem não procura ser feliz com o que possui.»

Posso interromper e "dançar" consigo nesta melodia de pensamentos? É que, ao ouvi-la, ocorreu-me que louco é quem não sabe ser grato, quem olha o seu copo da vida sempre meio vazio e nunca foi ajudado a aprender a valorizar o que tem.

«Cego é aquele que não vê o seu próximo morrer de frio, de fome, de miséria e só tem olhos para os seus (...) problemas e pequenas dores.»

É o egocêntrico que despreza a relação em prol do próprio umbigo.

«Surdo é aquele que não teve tempo de ouvir um desabafo de um amigo ou o apelo de um irmão, pois está sempre apressado para o trabalho e quer garantir seus tostões ao fim do mês.»

«Mudo é aquele que não consegue falar o que sente e se esconde por trás da máscara da hipocrisia.»

Aquele que se centra, digo eu, na imagem que passa e na palavra dita em função do que os outros querem ouvir e não do que sente e do que, genuinamente, importava que dissesse.

«Paralítico é aquele que não consegue andar na díreção dos que precisam da sua ajuda.»

O que anda à deriva sem saber para onde, nem para quê; aquele cuja vida não tem nenhum sentido.

«Diabético é aquele que não consegue ser doce.»

O que prefere criticar a reforçar; o que prefere evidenciar defeitos no outro, em vez de valorizar qualidades.

«Anão é quem não sabe deixar o amor crescer.»

Quem teme amar e ser amado ou julga que não precisa disto para ser feliz só porque o amor responsabiliza e dá trabalho.

E, finalmente, diz ainda Mário Quintana, a pior das deficiências é ser miserável. (...) Não deixou de ser curiosa esta dança que acabámos por fazer.

 

Breve reflexão a propósito

Esta é uma história que continua centrada no essencial. Abdica das aparências; prossegue, mesmo que sem desmesurado incentivo; desbrava caminhos que se lhe afiguram transponíveis quando, em certo tempo da existência, julgou nada mais poder esperar.

É, em suma, um grande exemplo de resiliência, porque cada obstáculo aparentemente impeditivo é vencido com serenidade e esperança.

A Isabel saiu de onde vinha para pertencer a um mundo diferente, devido a uma doença que a fez contactar com o que não se espera, ainda na sua juventude, e orgulhando-se daquele que era o seu lugar e as suas gentes, desde antes de ter adoecido. Nunca os encobriu. Nunca os escondeu. É, porque a fizeram ser. Têm-na, devido à sua enorme capacidade de partilhar amor e gratidão.

Das histórias aparentemente simples nascem oportunidades que mudam rumos. De que doença adoeceu aos 18 anos, em concreto, é muito pouco importante detalhar. O que interessa é que disso decorreu o imprevisível, dir-se-ia o impossível - uma viragem para onde ninguém podia imaginar, nem ela mesma; um sonho que se veio a concretizar, mas que, se nada tivesse acontecido, nunca teria passado de sonho.

É frequente acharmos, neste mundo de tão fácil acesso, que já se sabe quase tudo, até o que previsivelmente seremos e para onde iremos caminhar. O inesperado, por sê-lo, apanha-nos sempre desprevenidos e, no que de nós depende, podemos chegar a ser impotentes para o defrontar, mas nunca pensamos nisso. Parece impossível que alguém ainda esteja sujeito a este tipo de «súbitos» difíceis de diagnosticar e compreender, sobretudo naquela idade.

Agora no casal: há momentos em que as conversas profundas são uma espécie de viagem de carrossel - sabem muito bem, mas não servem para nada.

Não é o caso desta história. A Isabel e o marido, porque se amam, aceitam-se mutuamente tal como são; percebem que têm papéis imprescindíveis junto do outro numa vida que, apesar de já não se iludir com a pequenez dos que julgam que nunca sofrerão, enfrenta a existência quotidiana com motivação e vontade confirmada; são valor acrescentado cada um para o outro, cuidando-se e cuidando do seu casamento como de um tesouro que não se quer desperdiçar.

Não chamam a si o que deles nunca dependerá - a desesperança induzida por uma perspetiva de vida (da Isabel) que precocemente pode ser interrompida. Já ultrapassou todas as expectativas. Talvez por isso, consigam desfrutar com gratidão do que possuem, do que vivem, do que planeiam. Têm uma relação feita de presente, mas não deixam de olhar para o futuro que querem conquistar.

Não perdem tempo a dar lugar a medos. Esta parece ser a grande chave capaz de abrir a porta da felicidade que conquistam todos os dias.

 

In Voltas que a vida dá, ed. Principia
© SNPC | 27.03.14

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Capa

Voltas que a vida dá

Autora
Margarida Cordo

Editora
Principia

Ano
2014

Páginas
198

Preço
13,50 €

ISBN
978-989-716-774-8

 

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