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Arte e fé cristã, por um não crente

(…) Não sendo crente, a despeito de ter tido uma educação católica, sou particularmente sensível a uma certa vibração do transcendente que podemos encontrar em certas obras de arte de todos os tempos.

A propósito das relações entre arte e fé, observo liminarmente que ainda este ano Martim de Albuquerque publicou um brilhante ensaio intitulado Dante, a Divina Comédia e a Fé (Alêtheia), explorando até à exaustão a maneira como a fé vivida e pensada é absolutamente estruturante da arquitectura e do jogo conceptual do poema do Alighieri, na sua relação com a Teologia, a Filosofia e o enciclopedismo do conhecimento de que a Divina Comédia é testemunho.

Se a fé implica a aceitação de uma verdade sem passar por uma prova ou por qualquer modo de verificação racional, parece que, uma vez dada como assente essa verdade, nada impede que a partir dela funcionem mecanismos racionais e emocionais do espírito humano, podendo desencadear com frequência expressões artísticas que a têm presente e, por vezes, se aproximam do sublime ou conseguem mesmo atingi-lo. E é tal a energia que delas se desenvolve que como que nos atravessam o ser e proporcionam uma experiência existencial qualitativamente diferente da que pode chegar-nos por outras obras de arte sem esse coeficiente.

Estou a pensar, no campo da literatura, e além de Dante, em obras como as redondilhas "Sôbolos rios que vão" de Luís de Camões, inexplicáveis sem a conjugação da genialidade poética do autor com a mais profunda crença no divino, ou, já em pleno Barroco, na "Noche oscura del alma" e na "Llama de amor viva", ambas do Cántico Espiritual de San Juan de la Cruz, impensáveis sem uma capacidade literária inigualada de percurso místico pelas três vias, purgativa, iluminativa e unitiva, que, segundo os teólogos levam à união da alma com Deus.

Mas estou também a pensar na Pietà de Miguel Ângelo, mater dolorosa de uma beleza platónica na expressão do sofrimento intolerável, mais jovem do que o filho morto que tem no regaço, nisso também ilustrando um verso de Dante, "Vergine madre, figlia del tuo figlio", ou na Santa Teresa do Bernini, ou, para falar em pintura, no retábulo de Isenheim, de Mathias Grünewald, para não falar em anunciações, natividades ou crucificações em que perpassa como que um sopro do divino, ou na enigmática e cerebral Flagelação de Urbino de Piero della Francesca. Nas relações entre arte e fé, estes casos interessam-me bem mais do que as meras cenas de martírio religioso de que a pintura flamenga dá tantos exemplos torturantes, com brasas, degolações, setas, rodas de Santa Catarina, etc., que, a meu ver, traduzem menos uma fé do que um exercício oficinal.

E, claro, não podemos esquecer a música. Como não sentir que há uma busca da relação com Deus nos ofícios de trevas de Gesualdo da Venosa, ou nas obras de Heinrich Schütz, ou, mais vivida ainda numa arte dos sons e da construção musical em que humanidade, crença na Redenção, impulso para Deus, são vias inefáveis de um sublime que se encontra constantemente nas Paixões de João-Sebastião Bach? Ou ainda no Haydn das Sete Palavras de Cristo na Cruz, no Mozart do Requiem, e no Beethoven do "Agnus Dei" da Missa Solemnis op. 123, naquela passagem de tão funda ansiedade implorativa do "miserere nobis" a que se segue um momento de êxtase pleno, como o rasgar dos céus de alto a baixo pelo relâmpago de uma resposta divina?

O que antecede não passa de um punhado de exemplos desgarrados que me vieram à cabeça à medida que escrevia. Muitos outros poderiam ser trazidos à colação. Nem me referi à arquitectura das catedrais, nem a muitas outras obras de arte em que a fé tem um papel como que genético. Mas não esqueçamos também que só com aquela destreza oficinal que é própria do génio criador e com a sua plena mestria dos recursos expressivos é que vale a pena falar das relações entre arte e fé. (…) A grande arte traz consigo uma dimensão de angelismo que, ao confrontar-nos connosco, nos aproxima do transcendente. E ocorrem-me aqueles versos algo rilkianos do Nemésio: "Anjos são os terríveis/ modos de Deus connosco. / Nós, as suas possíveis/ transparências a fosco."

 

 

 

Vasco Graça Moura
Escritor, presidente da Fundação do Centro Cultural de Belém
In Diário de Notícias
28.11.13

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ImagemRetábulo de Isenheim (det.)
Matthias Grünewald

 

 

 

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