Encíclica "A luz da fé": Crer em Deus torna o mundo melhor
Excertos da encíclica “A luz da fé”, publicada esta sexta-feira pela Sala de Imprensa da Santa Sé. O documento, assinado pelo papa Francisco, conta com a redação do seu antecessor, Bento XVI.
A fé não é um refúgio para gente sem coragem, mas a dilatação da vida: faz descobrir uma grande chamada — a vocação ao amor — e assegura que este amor é fiável, que vale a pena entregar-se a ele, porque o seu fundamento se encontra na fidelidade de Deus, que é mais forte do que toda a nossa fragilidade. (n. 53)
Assimilada e aprofundada em família, a fé torna-se luz para iluminar todas as relações sociais. Como experiência da paternidade e da misericórdia de Deus, dilata-se depois em caminho fraterno. Na Idade Moderna, procurou-se construir a fraternidade universal entre os homens, baseando-se na sua igualdade; mas, pouco a pouco, fomos compreendendo que esta fraternidade, privada do referimento a um Pai comum como seu fundamento último, não consegue subsistir; por isso, é necessário voltar à verdadeira raiz da fraternidade. Desde o seu início, a história de fé foi uma história de fraternidade, embora não desprovida de conflitos. Deus chama Abraão para sair da sua terra, prometendo fazer dele uma única e grande nação, um grande povo, sobre o qual repousa a Bênção divina (cf. Gn 12, 1-3). À medida que a história da salvação avança, o homem descobre que Deus quer fazer a todos participar como irmãos da única bênção, que encontra a sua plenitude em Jesus, para que todos se tornem um só. O amor inexaurível do Pai é-nos comunicado em Jesus, também através da presença do irmão. A fé ensina-nos a ver que, em cada homem, há uma bênção para mim, que a luz do rosto de Deus me ilumina através do rosto do irmão.
Quantos benefícios trouxe o olhar da fé cristã à cidade dos homens para a sua vida em comum! Graças à fé, compreendemos a dignidade única de cada pessoa, que não era tão evidente no mundo antigo. No século II, o pagão Celso censurava os cristãos por algo que lhe parecia uma ilusão e um engano: pensar que Deus tivesse criado o mundo para o homem, colocando-o no vértice do universo inteiro. «Porquê pretender que [a verdura] cresça para os homens, em vez de crescer para os mais selvagens dos animais sem razão?» «Se olhássemos a terra do alto do céu, que diferença se nos ofereceria entre as nossas atividades e as das formigas e das abelhas?» No centro da fé bíblica, há o amor de Deus, o seu cuidado concreto por cada pessoa, o seu desejo de salvação que abraça toda a humanidade e a criação inteira e que atinge o clímax na encarnação, morte e ressurreição de Jesus Cristo. Quando se obscurece esta realidade, falta o critério para individuar o que torna preciosa e única a vida do homem; e este perde o seu lugar no universo, extravia-se na natureza, renunciando à própria responsabilidade moral, ou então pretende ser árbitro absoluto, arrogando-se um poder de manipulação sem limites. (n. 54)
Além disso a fé, ao revelar-nos o amor de Deus Criador, faz-nos olhar com maior respeito para a natureza, fazendo-nos reconhecer nela uma gramática escrita por Ele e uma habitação que nos foi confiada para ser cultivada e guardada; ajuda-nos a encontrar modelos de progresso, que não se baseiem apenas na utilidade e no lucro mas considerem a criação como dom, de que todos somos devedores; ensina-nos a individuar formas justas de governo, reconhecendo que a autoridade vem de Deus para estar ao serviço do bem comum. A fé afirma também a possibilidade do perdão, que muitas vezes requer tempo, canseira, paciência e empenho; um perdão possível quando se descobre que o bem é sempre mais originário e mais forte que o mal, que a palavra com que Deus afirma a nossa vida é mais profunda do que todas as nossas negações. Aliás, mesmo dum ponto de vista simplesmente antropológico, a unidade é superior ao conflito; devemos preocupar-nos também com o conflito, mas vivendo-o de tal modo que nos leve a resolvê-lo, a superá-lo, como elo duma cadeia, num avanço para a unidade.
Quando a fé esmorece, há o risco de esmorecerem também os fundamentos do viver, como advertia o poeta Thomas Stearns Eliot: «Precisais porventura que se vos diga que até aqueles modestos sucessos / que vos permitem ser orgulhosos de uma sociedade educada / dificilmente sobreviveriam à fé, a que devem o seu significado?» Se tiramos a fé em Deus das nossas cidades, enfraquecer-se-á a confiança entre nós, apenas o medo nos manterá unidos, e a estabilidade ficará ameaçada. Afirma a Carta aos Hebreus: «Deus não Se envergonha de ser chamado o “seu Deus”, porque preparou para eles uma cidade» (Heb 11, 16). A expressão «não se envergonha» tem conotado um reconhecimento público: pretende-se afirmar que Deus, com o seu agir concreto, confessa publicamente a sua presença entre nós, o seu desejo de tornar firmes as relações entre os homens. Porventura vamos ser nós a envergonhar-nos de chamar a Deus «o nosso Deus»? Seremos por acaso nós a recusar-nos a confessá-Lo como tal na nossa vida pública, a propor a grandeza da vida comum que Ele torna possível? A fé ilumina a vida social: possui uma luz criadora para cada momento novo da história, porque coloca todos os acontecimentos em relação com a origem e o destino de tudo no Pai que nos ama. (n. 55)
Esta transcrição omite as notas de rodapé.
In Encíclica "Lumen fidei" ("A luz da fé")
05.07.13
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