Paisagens
Pedras angulares A teologia visual da belezaQuem somosIgreja e CulturaPastoral da Cultura em movimentoImpressão digitalVemos, ouvimos e lemosPerspetivasConcílio Vaticano II - 50 anosBrevesAgenda VídeosLigaçõesArquivo

8.ª Jornada da Pastoral da Cultura

Há uma Alegria e uma Esperança para nós

1. Nunca gostei de vender o que não tenho. Nunca gostei de prometer o que não sei se posso cumprir. Esse des-gosto é tanto mais assumido quanto mais sei do impacto, das espectativas de realização que tal anúncio pode gerar nos desprotegidos buscadores de algum produto.

Ainda por cima, aqui, o produto é muito mais que o mero resultado de uma feliz combinação de coisas e jeitos. São, é, nada mais e nada menos que a pedra angular e também o horizonte de uma original e irrepetível existência humana pessoal.

Com a não desejada mas inevitável carga institucional que devo assumir, posso afirmar, convictamente, que “Há uma Alegria e uma Esperança para nós”? Posso, devo e quero.

Sem entrar na definição de outros termos, ouso explicar já que entendo “nós” igual a “todos”, a todo ser humano, independentemente de credos ou outras condições pessoais e sociais; “há”, por sua vez, na minha leitura, quer significar viabilidade de acesso ou até meta já suficientemente alcançada.

 

2. Delimitado este quadro, devo tentar responder ao que legitimamente se espera de mim: Jesus Cristo, a Igreja que pintam nisto?

[Jesus Cristo, a Igreja] estiveram, estão, podem estar, do lado do caminho, da sinalização, da meta?

Começo por evocar esse luminoso texto, com quase 50 anos de vida, que abre a Constituição Pastoral sobre a Igreja no Mundo Contemporâneo (Gaudium et Spes) do Concílio Vaticano II: “As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos aqueles que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo” (GS 1).

Recordo apenas que, ao contrário do sublinhado mais habitual, o Concílio não embarca numa conceção idílica do ser humano. Não assume apenas “as alegrias e as esperanças”, mas também “as tristezas e as angústias”. Esta conceção não ensombra, contudo, “as alegrias e as esperanças”: situa-as no seu quadro real que, unitariamente, se alarga às “tristezas e angústias”.

Mas é sintomático que um dos documentos mais emblemáticos do Concílio que marca todo o século XX, e que está longe de se ter esgotado, escolha para o seu início e, por isso, para título os termos alegria e esperança.

Esta opção estava em linha com os sublinhados mais habituais da reflexão teológica e das intervenções do Magistério da Igreja dos últimos séculos? Arrisco dizer que não.

Apenas uma curiosidade, que não pretende ser um argumento para a minha afirmação. O índice temático da edição portuguesa mais conhecida dos documentos conciliares (a edição do Apostolado da Oração) não inclui a entrada alegria; a esperança sim, ainda que com marcada orientação para a reflexão teológica.

Mas, abusando de uma frase da Escritura, podemos dizer que “no princípio não foi assim”(cfr Mt 19, 8). Folheando autores da literatura cristã antiga, que espelham a vida das primeiras comunidades, encontramos aí traços nítidos de vidas vividas na serenidade e na alegria. E, permanentemente com a cabeça a prémio, não lhes faltavam motivos para a preocupação e o pessimismo.

Autores das primeiras décadas do século II, como Clemente Romano, Inácio de Antioquia, o chamado Pastor de Hermas, falam da alegria e da esperança como espelho da serenidade que os invadia. Clemente Romano, na Carta aos Coríntios (33, 2), apela à harmonia e generosidade, baseando-se em que “o Artífice e Dono de todas as coisas se alegra e compraz nas suas obras; “Portador de Cristo” – assim se autodefine Inácio – alegra-se de poder escrever aos seus irmãos na fé da comunidade de Éfeso (cfr. Carta aos Efésios, 9, 2); a mensagem de esperança percorre todo o Pastor de Hermas: apesar das infidelidades e pecados os batizados têm acesso a novas oportunidades de perdão, graças à misericórdia de Deus. Numa das muitas comparações a que deita mão fala da distribuição de varas de choupo: as que são devolvidas verdes simbolizam a fidelidade a Deus. “Os homens cujas varas foram achadas assim – escreve – estavam muito alegres. E também o anjo se alegrava por eles e o Pastor também estava extremamente alegre” (Comparações, 8, 1, 18).

Martinho de Dume, autor do século VI que está nas raízes da nossa cultura, transporta Séneca para o aconselhamento da vida cristã. Com recurso a um notável sentido comum, escreve coisas como estas: “Aquele que está bem consigo mesmo nasceu rico” (Pensamentos de S. Martinho de Dume, 23); “Sê comedido a falar, mas paciente com os que falam muito” (Pensamentos de S. Martinho de Dume, 31).

Dando um salto no tempo, é bem conhecida a serenidade, a esperança, traduzida em bom humor, de S. Tomás More (1478-1535). Condenado a morrer decapitado por não aceitar a rotura da Igreja Anglicana, não perdeu o bom humor nem mesmo no dia de sua morte. Depois de lida a sentença, condenado por permanecer fiel à Igreja Católica, dirigiu-se ao carrasco e disse: “Tenha coragem! Cumpra o seu ofício; mas o meu pescoço é muito curto, cuidado para não manchar a sua honra!” Ao colocar o pescoço na guilhotina, afastou a barba que crescera na prisão e disse: “Não corte a minha barba. Pelo menos ela não traiu o rei”.

É bem conhecida a oração em que pede a Deus bom humor, e que diz assim: “Senhor, dá-me uma boa digestão e, naturalmente, alguma coisa para digerir. Dá-me um corpo saudável, com o bom humor necessário para o manter. Dá-me uma alma saudável, Senhor, que tenha sempre diante dos olhos o que é bom e puro, de maneira que não me escandalize diante do pecado, mas que saiba encontrar formas de o remediar. Dá-me uma alma que não conhece o tédio, as murmurações, os suspiros e os lamentos, e não deixes que eu leve muito a sério essa coisa tão invasiva chamada "eu". Dá-me sentido de humor, dá-me o dom de ser capaz de rir de uma piada, para que eu saiba trazer um pouco de alegria à vida e fazer partícipes os outros. Amén!”

 

3. Sem aludir a tantos outros testemunhos possíveis, qual o segredo, a explicação, que ultrapassa, certamente, meras predisposições naturais?

É a fé em Jesus Cristo: na sua incarnação, paixão, morte e ressurreição; Jesus Cristo que vive. A permanente lição de realismo de um Deus que se faz um de nós; que vive a vida dos homens; que excede todos os discursos sobre a beleza, a verdade e o amor; que entrega em plenitude a Sua vida; que, como gostavam de repetir os autores da literatura cristã antiga, mata a morte no seu próprio habitat.

N’Ele aprendem os seus discípulos e todos os homens de boa vontade, de ontem e de hoje, que a fuga, o abandono dos amigos, a traição dos mais próximos, pode ser o trágico fim de uma relação … ou a importante purificação e consolidação de um alicerce para uma entrega total, sem fissuras. A virtude, a relevância social, não se destroem com uma condenação por mais formal e pública que seja.

As reconstruções pessoais não varrem nada do passado. Mas ensinam a integrar as sombras num jogo de luzes, com um resultado cativante pela sua beleza, pela sua proximidade. Enfim, ensinam que a sua realização, integrando elementos que nos ultrapassam, é deste mundo, é de carne osso.

A fé em Jesus Cristo, vencedor de todas as batalhas, mesmo a morte, alarga horizontes. Ajuda a perceber que a vida é mais que uma conta bancária; é mais que uma crise financeira, por mais cruel e devastadora que se apresente.

O mundo é das gentes de todas as idades: os oficialmente ignorantes podem ser mais sábios que os letrados.

Termino, citando umas palavras de Bento XVI na sua recente Carta Apostólica A Porta da Fé (11. 15): o que se apresenta no Catecismo da Igreja Católica “não é uma teoria, mas o encontro com uma Pessoa que vive na Igreja. (…) A vida dos cristãos conhece a experiência da alegria e a do sofrimento. Quantos Santos viveram na solidão! Quantos crentes, mesmo em nossos dias, provados pelo silêncio de Deus, cuja voz consoladora queriam ouvir! As provações da vida, ao mesmo tempo que permitem compreender o mistério da Cruz e participar nos sofrimentos de Cristo (cf. Col 1, 24), são prelúdio da alegria e da esperança a que a fé conduz: ‘Quando sou fraco, então é que sou forte’ (2Cor 12, 10)”.

“Há uma Alegria e uma Esperança para nós”!

 

D. Pio Alves
Bispo auxiliar do Porto, presidente da Comissão Episcopal da Cultura, Bens Culturais e Comunicações Sociais
8.ª Jornada da Pastoral da Cultura, Fátima, 22.6.2012
© SNPC | 24.06.12

Redes sociais, e-mail, imprimir

Foto
D. Pio Alves
Foto de arquivo























Citação





























Citação





































Citação

























Citação

 

 

 

Página anteriorTopo da página

 


 

Subscreva

 


 

 


 

 

Secções do site


 

Procurar e encontrar


 

 

Página anteriorTopo da página

 

 

 

2011: Eurico Carrapatoso. Conheça os distinguidos das edições anteriores.
Leia a última edição do Observatório da Cultura e os números anteriores.