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A herança moderna

A modernidade passou da descoberta física do mundo à sua assunção como realidade consistente e quase auto-suficiente. Dos fenómenos naturais tal compreensão transbordou para a fenomenologia humana: sociedade, política ou cultura, tudo se foi auto-regulando, dispensando a tutela religiosa-confessional. Através da secularização, a legitimação da autoridade passou da Igreja para o mundo, como aconteceu com os diversos âmbitos da vida social, que foram subtraídos à influência religiosa, num percurso mais rápido institucional do que mentalmente.

Sem esquecermos que uma sociedade institucionalmente confessional não é, só por isso, absolutamente religiosa, podendo até acontecer que tal conotação a distraia duma autêntica conversão. Secularização, por seu lado, não será sempre sinónimo de descristianização. Paul Valadier entende mesmo que falar de sociedade secularizada pressupõe que ela foi antes intrinsecamente religiosa e é veicular um juízo errado sobre a história, que desvaloriza o presente em comparação com um passado hipotético, que teria sido cristã e totalmente integrado.

As críticas modernas à religião incidiram frequentemente sobre uma noção de Deus que concorria com o homem e abafava o mundo. Neste ponto, secularização pôde coincidir com cristianização, pois o Deus de Jesus Cristo não faz uma coisa nem outra, antes potencia os dois. Outra coisa é o secularismo, que postula a auto-suficiência do temporal, não abrindo a qualquer ultimação ou transcendência da vida.

Algumas «negações» de Deus, são-no afinal das suas imagens demasiado infantis ou infantilizantes, podendo ter uma positividade transitória, que Daniélou já caracterizou como a passagem da infância à adolescência da humanidade. Passagem que, no entanto, não se há-de ficar pelas negações adolescentes, mas atingir um nível superior, onde se reequilibrem os valores religiosos fundamentais.

A própria vida exige opções que necessitam de fundamentação. E, se uma ética puramente secular e humanista é uma possibilidade - mais teórica do que factual? -, o certo é que as vivências concretas buscam sempre mais do que o que deduzem racionalisticamente. Por outro lado, a religião cristã, sendo relação com Cristo, encontra na sua vida e nas suas palavras e parábolas um irrecusável estímulo ético e moral.

A secularização traz desafios novos à religiosidade de cada um. A menor relevância social da religião pode questionar a identidade crente; faltarão também os apoios simbólicos e pessoais para a fé, podendo privatizar-se esta e divorciar-se da vida concreta. A solução não estará no regresso ao passado mas num novo futuro: “No passado, a presença pública da Igreja conseguiu-se ao preço de sacralizar tudo. Hoje deve conseguir-se aprendendo a viver religiosamente o profano” (González-Carvajal Santabárbara).

O Concílio Vaticano II afirma a justa autonomia das realidades terrenas - a secularidade, como realidade consistente - e, ao mesmo tempo, o seu carácter relativo: “Se por autonomia das realidades terrenas se entende que as coisas criadas e as próprias sociedades têm leis e valores próprios, que o homem irá gradualmente descobrindo, utilizando e organizando, é perfeitamente legítimo exigir tal autonomia [... ] Se porém com as palavras ‘autonomia das realidades temporais’ se entende que as criaturas não dependem de Deus e que o homem pode usar delas sem as ordenar ao Criador, ninguém que acredite em Deus deixa de ver a falsidade de tais assertos. Pois, sem o Criador, a criatura não subsiste” (Gaudium et spes, 36).

Na modernidade, a ciência foi alterando a mentalidade tradicional, ao ponto de se tornar ela própria uma nova mentalidade. Ciência e técnica não mudaram apenas a maneira de viver, mas sobretudo a de pensar, esquecendo raciocínios sem confirmação concreta e autoridades não comprovadas. Mais: a pouco e pouco, a ciência pura cedeu lugar à técnica, e à razão dos filósofos e cientistas sucedeu a razão dos técnicos, a «razão instrumental» (Horkheimer). Ao contrário doutros tempos, hoje temos meios e não fins, como se a técnica fosse um fim em si mesma, levando-nos obrigatoriamente para onde não sabemos.

Com tudo isto, o «potencial humano de sentido» não desapareceu por certo. Mas ficou como que “reprimido e encoberto sob o domínio avassalador da razão científica e técnica” (M.B. Pereira). Aliás, a apreensão do sentido é dificultada pela divulgação quase exclusiva duma mentalidade pragmática, em detrimento doutras dimensões mais gratuitas e contemplativas da existência; ou pelo reducionismo ético, que leva a valorizar tudo em função da eficácia, mesmo social.

Por outro lado, a contemplação futura não será um regresso mas um progresso, incluindo a nova visão do mundo que a ciência nos traz. Quer a vivência quer a contemplação passarão a “ler na dinâmica da evolução natural e artificial a acção criadora e inovativa daquele Senhor que falou em nova terra, novos céus, vinho novo, vida nova, homem novo” (L. Archer).

Lendo os sinais dos tempos em meados dos anos sessenta, o Concílio Vaticano II intuía outros tantos apelos do Espírito na procura generalizada de regimes sociais mais correspondentes à dignidade e dignificação do homem, na emergência do terceiro mundo, na luta das mulheres e dos trabalhadores pelos seus direitos de inteira participação social..., observando que “pela primeira vez na história dos homens, todos os povos têm já a convicção de que os bens da cultura podem e devem estender-se efectivamente a todos” (Gaudium et spes, 9).

Foi no âmbito individual que a liberdade pôs a tónica. O que até aí cabia à quase predestinação social, dependendo cada um do meio em que nascera e da decisão de outros, passou para a escolha pessoal. Agora, cabe a cada um encontrar o seu lugar na profissão, na família, na política e na religião, já não sendo o grupo a determiná-lo necessariamente. Facto relativamente novo, com evidentes repercussões religiosas, porque os crentes actuais, comparticipantes desta mentalidade, não poderão ser menos tidos em conta na Igreja do que na sociedade, sob pena de desmotivação e abandono.

As descobertas científicas modernas, abrindo-se sucessivamente entre si, criaram a expectativa dum progresso contínuo, mesmo quanto ao homem, que quase tomou o lugar da fé religiosa. Há décadas que Dawson constatou que “a crença na perfectibilidade moral e no progresso indefinido da raça humana tomou o lugar da fé cristã na vida do mundo futuro, como alvo final do esforço humano”.

Autêntica crença, que por vezes alienou no futuro a resposta às dificuldades presentes: “a fé no progresso funcionou durante a modernidade como um novo ‘ópio do povo’” (González-Carvajal). Tudo se superaria pelo progresso científico e social .. Os trágicos desmentidos de duas guerras mundiais e respectivas sequelas puseram em causa tal crença, abrindo ao cepticismo pós-moderno.

Por sua vez, as guerras «religiosas» dos séculos XVI e XVII e a descoberta contínua de povos e culturas diferentes abriram caminho à tolerância e à desconfessionalização da ideia de Deus (deísmo), eventualmente conexas com o relativismo e o cepticismo.

Na síntese de J. Lortz, tal “conduziu não só à tolerância efectiva de uma pluralidade de convicções [...], mas também ao abandono da verdade, do conceito de verdade única. Surgiu a tolerância dogmática, isto é, a indiferença dogmática.

Este último facto ocasionou um grave e prolongado diferendo entre a Igreja Católica e os sectores liberais, só doutrinalmente ultrapassado pela reflexão do Concílio Vaticano II, que encarou o problema na perspectiva da assunção pessoal da verdade e não da diminuição da objectividade desta: “Os homens têm a obrigação de aderir à verdade conhecida e de ordenar toda a sua vida segundo as suas exigências. Ora, os homens não podem satisfazer a esta obrigação de modo conforme com a própria natureza, a não ser que gozem ao mesmo tempo de liberdade psicológica e imunidade de coacção externa” (Dignitatis Humanae, 2). Ou, na feliz síntese de González-Carvajal, “a tolerância é boa, não porque não haja verdade objectiva [...], mas porque há uma verdade objectiva e a melhor maneira de nos abeirarmos dela é o diálogo livre”.

Esta nova ordem de ideias aconteceu numa ordenação sociocultural que se costuma denominar «burguesa». Na sugestiva análise de A. Ancel - precisamente um clérigo que assumiu a condição operária -, a mentalidade burguesa distingue-se das precedentes pelo seu carácter compósito. Nem de clérigos, nem de nobres, nem de agricultores, mas de tudo um pouco, na variedade de combinações e escolhas, própria de comerciantes ou legistas, mais isentos de constrangimentos tradicionais: “A burguesia assimilou tudo. Mas esta assimilação torna ainda mais complexa a mentalidade burguesa. O burguês é, ao mesmo tempo, revolucionário e ordeiro, homem de negócios e jurista, pacífico e soldado, homem de governo e individualista”.

A mentalidade burguesa teve e tem correlações religiosas, como a atenção predominante à salvação individual, a escassa vivência comunitária, a privatização da noção de pecado, a sacralização até da ordem estabelecida, com leves correctivos assistenciais.

Tudo isto integrará uma «teologia política do sujeito burguês».

Se tentarmos resumir as tensões entre modernidade e evangelização, poderemos enunciá-las assim, tomando-as tanto por reptos como por possibilidades:

1) A questão cultural: Deus à custa do homem (da sua cultura), ou o homem (e a cultura) caminho para Deus?
2) Secularização: Redução ou recolocação da fé?
3) Ciência e técnica: Perda de sentido ou estímulo ao seu aprofundamento?
4) Liberdade e libertações: Subjectivismo ou responsabilização?
5) Progresso: Progresso terreno ou/e crescimento do reino de Cristo. (cf. Gaudium et spes, 39)?
6) Tolerância: Relativismo ou objectivismo personalista?
7) Mentalidade burguesa: Individualismo ou/e disponibilidade?

 

D. Manuel Clemente
Bispo do Porto, Presidente da Comissão Episcopal da Cultura, Bens Culturais e Comunicações Sociais
In 1810-1910-2010. Datas e desafios, Ed. Assírio & Alvim
26.05.09

Capa

1810-1910-2010
Datas e desafios

Autor
Manuel Clemente

Editora
Assírio & Alvim

Páginas
174

Ano
2009

ISBN
978-972-37-1407-4






































































































































 

 

 

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