Impressão digital
Paisagens
Pedras angulares A teologia visual da belezaQuem somosIgreja e CulturaPastoral da Cultura em movimentoImpressão digitalVemos, ouvimos e lemosPerspetivasConcílio Vaticano II - 50 anosPapa FranciscoBrevesAgenda VídeosLigaçõesArquivo

Diário

Etty Hillesum

«Nova certeza: que querem o nosso extermínio. Também isso eu aceito. Sei-o agora. Não vou incomodar outros com os meus medos, não vou ficar amargurada se outras pessoas não entenderem do que se trata, para nós, judeus. Esta certeza não vai ser corroída ou invalidada pela outra. Trabalho e vivo com a mesma convicção e acho a vida prenhe de sentido, cheia de sentido apesar de tudo, embora já não me atreva a dizer uma coisa dessas em grupo. O viver e o morrer, o sofrimento e a alegria, as bolhas nos meus pés gastos e o jasmim atrás do quintal, as perseguições, as incontáveis violências gratuitas, tudo e tudo em mim é como se fosse uma forte unidade, e eu aceito tudo como uma unidade e começo a entender cada vez melhor, espontaneamente para mim, sem que ainda o consiga explicar a alguém, como é que as coisas são. Gostava de viver longamente para no fim, mais tarde, conseguir explicar, e se isso não me for dado, pois bem, nesse caso uma outra pessoa irá fazê-lo e então um outro continuará a viver a minha vida, ali onde a minha foi interrompida, e por isso tenho de viver a minha vida tão bem e tão completa e convincentemente quanto possível até ao meu derradeiro suspiro, para que o que vem a seguir a mim não precise de começar de novo nem tenha as mesmas dificuldades.»

É com este fragmento que abre o sétimo volume da colecção «Teofanias», «Diário (1941-1943)», de Etty Hillersum (ed. Assírio & Alvim).

 

A rapariga de Amesterdão

A 9 de Março de 1941, quando Esther (Etty) Hillesum começou a escrever, no primeiro dos oito cadernos de papel quadriculado, o texto que viria a ser o seu Diário, estava-se longe de pensar que começava aí uma das aventuras literárias e espirituais mais significativas do século. Ela tinha vinte e sete anos de idade e morreria sem ter feito trinta.

Era a mais velha dos três filhos de um casal judeu, urbano, sem especial vinculação religiosa: Louis Hillesum, professor de línguas clássicas, e Rebecca Hillesum-Bernstein, emigrante russa (na verdade, foragida a um pogrom). Dos irmãos, Jaap destacou-se como investigador no campo das ciências médicas, e Mischa, o mais novo, embora atormentado por crises psicológicas devastantes, vem a afirmar-se como um dos pianistas de referência, na Holanda desse tempo. Etty dir-se-ia de outra espécie. Ela cunhou uma expressão para descrever o seu estado: «bloqueio espiritual». A sua vida escondia-se por detrás de um enigma contra o qual ela lutava, mas de forma errática e imprecisa. Durante anos, a sua principal ocupação foi uma licenciatura em Direito, que a bem dizer lhe era indiferente, atraída pelo estudo das línguas eslavas e da literatura russa (com graça, conta que, ainda em jejum, começava muitos dos seus dias lendo Dostoiévski). Frequentou, esporadicamente, os círculos socialistas e libertários de Amesterdão. Projectava sem grande empenho um percurso literário… Mas a verdade é que os seus interesses intelectuais e estéticos demoravam a encontrar fluidez: «é como se lá bem no fundo houvesse… algo a prender-me». E era assim com tudo o resto. O próprio amor se configurava, nesses anos, a «um jogo» que a rodeava intensamente, sem conseguir tocar esse fundo secreto e encarcerado que era a sua vida.

Nesse domingo de Março, em que principia a sua narrativa, ela vive no número 6 da Rua Gabriël Metsu, já independente dos pais, mas no mesmo fervilhar hesitante entre possibilidades: é governanta da casa de Han Wegerif («pai Han», no Diário), um contabilista aposentado, viúvo, com quem manteve uma relação sentimental. Aí vivem o filho de Wegerif, Hans, de pouco mais de vinte anos, a cozinheira Käthe, e dois hóspedes, Bernard Meylink, estudante de bioquímica, e Maria Tuinzing, uma enfermeira que se
tornará sua confidente e amiga. A Rua Gabriël Metsu contorna a esplanada verde do Rijksmuseum, onde estão as pinturas de Vermeer, de Pieter de Hooch, de Rembrandt…, e tem alguma coisa da atmosfera delicada e impávida que nessas imagens nos surpreende: «a copa das árvores, achei-as ao acordar… Os botões de tulipas, o vermelho e o branco, inclinados um para o outro… os ramos negros contrastando com o ar luminoso e, mais longe, o Rijksmuseum».

É impossível não aproximar o percurso que faz Etty Hillesum daquele vivido também por Simone Weil. São contemporâneas, ambas judias, debatendo-se por salvaguardar o sol interior num século de horas sombrias, ambas escritoras, ambas consumando até ao fim (ou mais para lá do fim) um destino de aniquilamento como se de uma incrível aventura espiritual se tratasse. A própria morte as aproxima, ocorrida no mesmo ano: 1943. Simone morre num hospício inglês, como se expirasse entre as vítimas, na frente mais exposta de um combate, e Etty num campo de concentração, para o qual partiu cantando.

Mas há uma diferença na iconografia. Simone de Beauvoir conta que Weil se vestia como quem traja uma farda, cancelando, numa opção moral implacável, os sinais que a pudessem distinguir a ela, filha de uma Paris burguesa, da mais humilde operária fabril (coisa que, aliás, ela não sossegou enquanto não foi). As imagens de Etty são as de uma mulher bem diferente: elegante, feminina, com um toque de mundaneidade, e uma inteligência também física… Isso ilumina, creio, as duas trajectórias. Simone era, desde o princípio, ascética, disciplinada, rigorista: tinha a precisão de um diamante, mas quase não tinha corpo. Etty era imprecisa, sensual, dispersa: e é isso que ela vai trabalhar, a altíssimas temperaturas, até tudo se tornar corpo, para depois se tornar chama. A conversão de Etty Hillesum, ou melhor, a sua «mudança de razão» (como o grego do Novo Testamento, com o termo metánoia, nos ensina a dizer), vai desenvolver-se em três encontros decisivos: o primeiro tem o nome de uma pessoa; o segundo tem o nome de um lugar; o terceiro não tem nome: é o encontro com o próprio Inominável.

 

O despertar espiritual

O projecto de um diário pessoal surge a Etty Hillesum como proposta terapêutica feita por Julius Spier (nomeado pela inicial do apelido, S.). A influência deste personagem, de «olhos cinzentos e gastos, espertos, incrivelmente espertos», é tão grande que os primeiros cadernos estão-lhe praticamente dedicados: ou com considerações a seu respeito, ou avaliando a reverberação fulgurante que provoca, ou, simplesmente, com transcrições minuciosas do seu pensamento. Julius Spier é um judeu de Frankfurt, refugiado no bairrro judeu de Amesterdão, onde tem o seu pequeno consultório (a três ruas, um canal e uma ponte da casa dela). Chegou a ser director de um banco, foi depois editor, estudou canto até que chegou, passados vinte e cinco anos, à «psicoquirologia», uma diagnose psicológica que parte da leitura da morfologia da mão (que ele considera «o segundo rosto»). Fez análise com Carl Jung, em Zurique, que lhe escreveu um texto elogioso a recomendar o seu método. A «psicoquirologia» tornou-se, desde aí, a sua principal ocupação. Etty conheceu-o por finais de Janeiro, um mês antes de começar o seu Diário, num sarau musical, onde o seu irmão Mischa tocava piano e Spier cantava.

Etty conta que chegou a ele com um grande sentimento de solidão e insegurança: «quem me dera que houvesse alguém que me pegasse pela mão e se ocupasse de mim». Spier representou, na descoberta, na sabedoria e mesmo na desordem, a concretização desse desejo. Ele constituía uma mistura, perigosa e deslumbrante como podem essas misturas, de mestre espiritual, psicanalista, quiromante e xamã. No heterodoxo tratamento que propunha, que incluía sessões de luta física entre ele e os pacientes, as fronteiras muitas vezes se esbatiam, e Etty não foi certamente a única a escrever: «sou abafada por essa personalidade e não consigo libertar-me». Mas tudo somado, Spier representou indiscutivelmente para Etty Hillesum um verdadeiro iniciador na vida espiritual, o «obstetra da minha alma», para utilizar palavras suas. Spier chamava-lhe carinhosamente «a minha secretária russa». Ele ensinou-lhe «a pronunciar com naturalidade o nome de Deus». Iniciou-a na prática da oração. É ele quem lhe aconselha a leitura do Antigo e do Novo Testamento, ou de autores como Santo Agostinho e Tomás de Kempis. E, por outro lado, Etty conseguiu progressivamente trabalhar a sua autonomia, revisitar de forma distanciada e original o que recebia dele, defender o seu próprio espaço de deliberação (a dada altura, por exemplo, decide prosseguir o trabalho psicológico com Spier, mas recusa já a abordagem psicoquirológica, que não a convence). É, de facto, a pensar nele que Etty escreverá: «eu sei que os mais importantes pioneiros do futuro serão esses homens que têm uma ampla dose de feminilidade - e que não deixam de ser homens verdadeiros.»

Ao longo do Diário encontramos disseminados muitos ensinamentos de Julius Spier: o mais importante de todos, impresso não na letra mas na imensa transformação que Etty realiza, foi a fé inequívoca na possibilidade de vivermos uma vida plena e inteira. Tudo o resto é matéria convergente, são cintilâncias dessa verdade maior, como os exemplos que aqui se dão.

1. A expressão «Palavra de Deus» não se restringe unicamente à Bíblia. É antes uma espécie de conhecimento original cuja expansão continua, uma inspiração, em sentido amplo, através da qual o Espírito Santo continua a sua revelação no interior dos corações.

2. «Ajuda-te que o céu te ajudará.» É quando nos ajudamos a nós mesmos, cultivando uma sincera confiança em nós, que confiar em Deus se torna possível.

3. É necessário trazer os outros dentro de si, espiritualmente: esta pode ser uma «memória orante», uma verdadeira oração. Para rezar é-nos requerida a entrega a um profundo recolhimento.

4. No final de cada dia, é importante recolhermo-nos, uns dez minutos, a recordar o modo como o vivemos, e o que ele nos trouxe de bem e de mal.

Um dia, e Etty conta-o a 25 de Setembro de 1941, ele ter-lhe-á dito:«Tenho a impressão de ser um “estado preparatório” para um grande amor teu.» Spier morre em Setembro do ano seguinte, em Amesterdão. Ela reentra no campo de Westerbork pouco depois de assistir à rápida cerimónia fúnebre.

O despertar espiritual de Etty liga-se ainda a outra amizade, a de Henny Tideman, uma cristã que ela conhece precisamente nos encontros com Spier. Etty lembra-se do comentário que este fazia a seu respeito: «tem a inteligência da alma». Com Tide, perceberá o alcance da oração, aprenderá da «sua voz radiosa e afirmativa» a dirigir-se também a Deus por palavras suas, numa abertura misteriosa e total, onde passa a caber, com a maior naturalidade, a alusão ao sofrimento, à beleza dos gerânios ou a um verso de Rilke.

 

Descobrindo a sua pátria

No tempo em que o Diário avança, a Holanda surge cada vez mais na mira expansionista do nazismo. Desde há um ano que os judeus holandeses vinham sendo discretamente isolados. Mas em Fevereiro de 1941, realiza-se na cidade de Amesterdão uma inédita greve geral contra o pogrom, e a repressão alemã torna-se então declarada: os judeus foram despedidos dos seus empregos, não podiam frequentar os lugares de comércio e lazer, eram empurrados para ghettos e campos ditos «de trabalho». A 14 de Junho desse ano, Etty escreve: «Mais prisões outra vez, terror, campos de concentração, o levar indiscriminadamente pais, irmãs, irmãos. Uma pessoa procura o sentido da vida e pergunta-se se ela na realidade ainda tem sentido. Mas este é um assunto que cada um deve decidir consigo e com Deus.» É a terceira vez que este nome surge no seu escrito.

Na zona oriental da Holanda, não muito longe da fronteira, começa a ser construído um campo de concentração intermédio, donde os judeus eram posteriormente encaminhados para o extermínio.

A 29 de Abril de 1942 os judeus foram obrigados a usar a estrela de David. Quase dois meses depois, Etty escreve (à meia-noite e meia): «Esta manhã passei de bicicleta pelo Stadionkade e desfrutei do vasto céu ali nos limites da cidade e inspirei o ar fresco e não racionado. E tabuletas por toda a parte, que impediam aos judeus o livre acesso aos caminhos e ao campo aberto. Mas sobre aquele pedaço de caminho, que permanece nosso, também existe o céu total. Não nos podem fazer nada, não nos podem fazer realmente nada.» É curioso que, nesse mesmo dia, o sábado de 20 Junho de 1942, há em Amesterdão outra rapariga, bem mais nova do que ela, também a escrever um diário: chama-se Anne Frank.

Graças ao cuidado de alguns amigos, Etty passa, então, a trabalhar como dactilógrafa numa das secções do Conselho Judaico. Um pouco como nos restantes territórios ocupados, este organismo surge como mediação entre o povo judeu e as autoridades, tornando-se facilmente objecto do interesse e manipulação nazis. Era dirigido por judeus de condição social elevada e mantinha na sua órbita centenas de funcionários, que supostamente auxiliavam o destino dos deslocados e prisioneiros. Etty tem o que ela chama a primeira experiência de descida ao «inferno». Dá-se conta, brutalmente, de que a imensa maioria dos judeus que primeiro estavam destinados à deportação eram os pobres. Decide então pedir para acompanhá-los como voluntária no Campo de Concentração de Westerbork. Começava a compreender que aquela hora extrema do seu povo tinha um significado tal, que ela não podia subtrair-se. De Agosto de 1942 até Setembro de 1943 vive aí, trabalhando no mais que improvisado hospital. Um das vantagens do seu estatuto de voluntária era poder vir algumas vezes a Amesterdão, até porque a sua própria saúde rapidamente se arruinava. Mas acontece o inaudito. No seu quarto «belo e tranquilo», diante da esplanada que dá para o Rijksmuseum, ela sente uma saudade irrecusável de Westerbork. «Apaixonei-me tanto por esse Westerbork e tenho saudades de lá. Estes meses entre o arame farpado foram os meus meses mais intensos e ricos.»

Uma vez, os seus amigos comunistas e trotskistas que haviam passado à resistência quiseram que ela entrasse na clandestinidade, tendo-lhe já preparado um refúgio. Expuseram-lhe todos os perigos que corria, tiveram quase de forçá-la, mas ela respondeu queeles não a entendiam. «Muita gente me acusa de indiferença e passividade e diz que me rendo de mão beijada. E dizem: “Cada pessoa que consiga escapar às garras deles deve tentar fazê-lo e é uma obrigação. E eu tenho de fazer alguma coisa por mim mesma.” Esta é uma frase que não bate certo. Neste momento toda a gente anda, com efeito, ocupada a tratar da vidinha a fim de se safar, e no entanto é preciso que um certo número, um grande número até, vá. E o esquisito é o seguinte: eu não tenho a sensação de estar presa nas garras deles… Não sinto que esteja nas garras de ninguém, só sinto estar nos braços de Deus.»Mas é preciso entender até que ponto crucificante, até que despojamento espiritual Etty viveu este seu «estar nos braços de Deus». Nada é evitado. E na atordoante infelicidade que abraça é que se encontra.

Um dos aspectos mais comoventes é perceber o lugar da Literatura na viagem imensa que Etty realiza. Ela começa por chamar-lhe «a minha segunda pátria». E é, a princípio, uma espécie de outra vida que a ocupa, uma terra prometida para a qual se inclina. O Diário está cheio de referências a essas horas de leitura compulsiva, mesmo antes do pequeno-almoço, horas de explicitado prazer: de Santo Agostinho a Hegel, aos seus amados russos (Dostoiévski, Tolstói, Lermontov, Puschkin…), que ela anota com profundidade, em quem está sempre a pensar e que sonha traduzir. Mas depois, quando parte para o Campo de Concentração tem apenas uma pequena mochila. Faz então as escolhas decisivas. Escreve: «Quero memorizar uma coisa para os meus momentos mais difíceis e também a quero ter sempre à mão: que Dostoievski passou quatro anos em desterro na Sibéria tendo a Bíblia por única leitura.» E leva consigo a Bíblia. Além desta, dois livros mais a acompanharão sempre, ambos de Rainer Maria Rilke: O Livro das Horas e Cartas a um Jovem Poeta.

«Trago sempre o Rilke à baila. É tão estranho, ele era um homem frágil e escreveu muito da sua obra dentro dos muros de castelos hospitaleiros e talvez tivesse ficado completamente destroçado em circunstâncias como aquelas em que vivemos actualmente.

Mas não demonstrará boa economia que, em épocas tranquilas e em circunstâncias favoráveis, artistas sensíveis possam procurar livremente as formas mais belas e adequadas para as suas convicções mais profundas, que dão às pessoas em épocas mais agitadas e extenuantes um apoio e um abrigo para confusões e perguntas que ainda não tomaram uma forma e uma solução próprias, por que as energias diárias são reclamadas pelas aflições diárias?»

Em Westerbork, Etty irrompe finalmente como escritora. Ela que há muito buscava a sua voz vem encontrá-la aqui, neste lugar de tamanho silenciamento, munida apenas de um caderno quadriculado e de um lápis. Há um texto de Anna Akhmátova que pode ser um paralelo iluminador para o caso de Etty:

«À laia de prefácio
Nos terríveis anos de ejovismo passei dezassete meses nas bichas da cadeia de Leninegrado. Uma vez, até alguém me “reconheceu”. Por essa altura, uma mulher de lábios azuláceos que estava atrás de mim, e que de certeza nunca ouvira sequer pronunciar o meu nome, despertou da letargia própria de todas nós e perguntou-me ao ouvido (ali toda a gente sussurrava):
- Pode contar isto?
Respondi:
- Posso.
Então, uma espécie de sorriso deslizou por aquilo que outrora fora o rosto da mulher.»

Etty Hillesum também escreve: «Não existe um poeta dentro de mim, há sim um pedaço de Deus em mim que poderia desenvolver-se até se tornar um poeta. Num campo assim tem de haver contudo um poeta que experimenta a vida lá, e lá também a poderá cantar». Foi este o modo de atravessar a vida que ela escolheu. Mas aí a Literatura já não era a segunda pátria: coincidia com aquela, única, que ela em plena escuridão encontrou.

 

A eleita de Deus

Aqueles que disseram que a poesia e a possibilidade de Deus cessaram com Auschwitz levantavam questões muito sérias, que marcaram intensamente o debate filosófico e teológico da segunda metade do século XX. E, de facto, dentro de um determinado quadro de compreensão foi o colapso. O que Etty intui fulgurantemente é que a experiência daquele inferno histórico exige a necessidade de uma nova gramática. «Vou ter de achar uma linguagem nova», escreveu ela. E achou.

Olhamos para ela em Westerbork e vemos a eleita do Senhor, passeando-se na solidão e na lama, escrevendo algumas das orações mais extraordinárias que um ser humano pode proferir, mas não na amplidão majestosa de um templo, antes no espaço putrescente da latrina comum, onde se refugiava de madrugada em busca de um instante de silêncio e de concentração. Vemos a enamorada de Deus esgotar-se em atenções aos deportados, curando, intercedendo, ela própria ferida por dores violentas, sempre à procura de uma janela donde se alcance um fragmento de céu, ou de uma tábua onde, por fim, possa sentar-se a ler umas frases de Rilke. Seguimo-la na leitura que faz do Evangelista Mateus, «o meu bom Mateus», nos comentários aos textos de Paulo e de Santo Agostinho como se de uma mestra experimentada nos caminhos do espírito se tratasse. Lemos «Gostaria muito de viver como os lírios do campo. Se as pessoas entendessem esta época, seriam capazes de aprender com ela a viver como os lírios do campo», e é difícil recordar que quem nos fala é aquela rapariga de Amesterdão que ali chegou há poucos meses.

No meio da tortura absoluta, é ela quem se preocupa com Deus. «Vou ajudar-te, Deus, a não me abandonares», escreve. Ou então: «Se eu estivesse encarcerada numa cela acanhada e uma nuvem passasse ao longo da minha janela gradeada, então eu iria trazer-te essa nuvem, meu Deus, se pelo menos tivesse forças para isso.» A sua oração é de agradecimento e de mil pequenas atenções: o perfume de uma flor, a musicalidade de uma palavra, a beleza indizível de um encontro: «Gostaria de falar sobre o que temos em comum, num tom de voz baixo e suave, mas ininterrupto e convincente. Dá-me palavras e a força.»

Claro que é também uma prece nocturna, povoada de dilacerantes interrogações: «Às vezes pergunto-me, num momento difícil como esta noite, quais são os planos que tens para mim, tu Deus.» Mas o traço mais forte é o de uma impressionante e inexplicável confiança: «Quando ontem, às duas da manhã, finalmente cheguei lá acima ao quarto da Dicky e me ajoelhei quase nua, no meio do quarto, totalmente deprimida, eu disse de repente: “Hoje, vendo bem, vivi coisas grandiosas e esta noite também, meu Deus, agradeço-te por eu poder suportar tudo e por haver poucas coisas que não ponhas no meu caminho.”»

A 30 de Novembro de 1943, a Cruz Vermelha comunicou a sua morte em Auschwitz.

 

José Tolentino Mendonça
© SNPC | 29.4.08 | Atualizado em 30.11.13

Redes sociais, e-mail, imprimir

Capa do livro







































Etty Hillersum













































Etty Hillersum














































Página do diário











































Etty Hillersum












































Etty Hillersum









































Julius Speier










































Etty Hillersum











































Páginas do diário









































Etty Hillersum



















 

Ligações e contactos

 

 

Página anteriorTopo da página

 


 

Receba por e-mail as novidades do site da Pastoral da Cultura


Siga-nos no Facebook

 


 

 


 

 

Secções do site


 

Procurar e encontrar


 

 

Página anteriorTopo da página