A classificação do “cante” alentejano como património imaterial da humanidade representa o reconhecimento de um aturado trabalho coletivo, envolvendo muitas instituições e individualidades, para o estudo, salvaguarda e promoção desta manifestação cimeira da identidade da nossa região.
Ter-se conseguido este reconhecimento é algo da maior importância, não apenas para o Alentejo, mas também para Portugal.
Deve-se uma palavra de gratidão à legião de voluntários que está por detrás desta candidatura, agora coroada de êxito.
A classificação reveste-se de especial significado para a Diocese de Beja, já que é no seu território que se situa o coração do “cante”. Por outro lado, a própria Diocese, através dos seus padres e leigos, colaborou muito ativamente na recuperação deste património, de profunda ressonância espiritual, cujas raízes religiosas emergem com grande força.
Se o “cante” não deriva, como tudo parece indicar, da liturgia medieval, pelo menos foi por ela fortemente influenciado.
Isto foi devidamente considerado por alguns especialistas na matéria, como o Padre António Marvão, hoje injustamente algo esquecido, que dedicou muitas décadas de trabalho ao "cante", sobre ele escrevendo coletâneas e ensaios, de primordial importância para a investigação do assunto, ou, mais recentemente, o Padre António Cartageno e o Cónego António Aparício, que reintroduziram, na década de 1980, o “cante” na vida litúrgica e devocional das nossas comunidades.
A matriz cristã perpassa todo o património do “cante”. São cristãos os valores por ele difundidos: o culto do Deus Menino, a importância da família e da comunidade, o bem coletivo, o sentido da justiça, o apego à terra e às origens, a dignidade humana, a comunhão com a natureza. Outros valores são caracteristicamente portugueses, e logo alentejanos, como a saudade. Há também reflexos da vida contemporânea, como a tristeza perante o exílio, cantada com notas sentimentais que lembram os Salmos.
Sentem-se nisto os ecos da pregação das ordens mendicantes, cujos missionários – franciscanos, carmelitas, dominicanos – deixaram fortes marcas no Alentejo. Mas outras ordens, entre elas a dos eremitas de São Paulo, presente em Serpa, podem ter tido também grande influência. A tradição do cantochão e as salmodias medievais moldaram indiscutivelmente a herança do “cante”.
Sem o legado da Igreja, torna-se incompreensível a profundidade antropológica deste legado estético.
Desde os seus primórdios, em 1984, que o Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja tem feito questão de inserir sempre o cante em todas as suas atividades culturais.
José António Falcão