A história do encontro entre S. Francisco e um grupo de muçulmanos, em plena Cruzada, ensinou o conselheiro político do grande mufti do Líbano que a relação entre as religiões não se pode basear na eliminação, nem sequer na tolerância.
Na intervenção que proferiu durante o primeiro dia do encontro "Sede de paz: religiões e culturas em diálogo", que começou este domingo, em Assis, e que no último dia, terça-feira, conta com a presença do papa Francisco, Mohammad Sammak lamentou o desvio ao islão protagonizado pelo Daesh, e que tem resultado na morte de cristãos e na destruição de património histórico.
Apresentamos, na íntegra, a intervenção do aconselhador do grande mufti, o responsável mais alto da lei religiosa de determinada região.
«Permiti-me começar com uma breve história. Durante as Cruzadas, na Idade Média, Damieta, hoje uma grande cidade egípcia, foi mantida sob assédio pelos Cruzados e as forças islâmicas egípcias contra-atacavam. O assalto prosseguiu durante muito tempo, apesar de ser em vão.
Num dia calmo e sem combates, um monge vestido com o seu característico hábito saiu do acampamento dos Cruzados tendo na mão nada mais do que uma Bíblia, Não levava consigo armas, nem sequer um bastão.
Os muçulmanos ficaram surpreendidos por o ver chegar do acampamento inimigo, mas não ousaram fazer-lhe mal. O seus hábitos indicavam que se tratava de um monge e sacerdote, e o Corão louva os cristãos porque entre eles há monges e sacerdotes.
Do mesmo modo, a Bíblia que levava é considerara sagrada pelos muçulmanos porque creem, como para o Corão, que foi revelada por Deus e que oferece orientação e conhecimento. O Corão afirma inclusivamente "possa o povo do Evangelho julgar segundo o que Deus lhes revelou através dele".
Por essa razão, os soldados muçulmanos receberam com respeito, mas também com confusão, este homem de Deus que vinha do acampamento inimigo, e disseram-lhe: "Quem és? E que queres?". Ele afirmou que queria encontrar-se com o rei.
Após algumas hesitações e consultas, o homem de Deus foi conduzido ao acampamento do rei, que, naquele tempo, era Al-Kamel, primo de Salah ad-Din Yusuf ibn-Ayyub (conhecido como Saladino). O rei colocou a mesma pergunta: "Que queres?" E a resposta do monge foi: "Quero a paz".
- "Mas estais combatendo contra nós..."
- "Nós não combatemos por amor à batalha, mas porque queremos que a nossa estrada para Jerusalém seja um caminho de paz e segurança."
E o rei pergunta: "E como é que isso é possível?", O monge responde, dizendo: "É muito simples. O problema será resolvido logo que todos vós se convertam ao cristianismo. Então seremos todos irmãos".
O rei não ficou perturbado. Disse: "Apresentar-te-ei a alguns dos nossos sábios muçulmanos com os quais poderás discutir a questão e com eles decidir qual das duas religiões é verdadeira, e quem deverá adotar a religião do outro".
Durante o encontro estabelecido pelo rei, um dos sábios muçulmanos propôs audazmente acender um fogo e lançar o monge, se ele assim aceitasse. Se dele saísse ileso, significaria que a sua religião - o cristianismo - era justa, e consequentemente seguiria a religião cristã.
O monge visitante não demorou a pensar e disse imediatamente: "Aceito... Se sair ileso do fogo, quererá dizer que o cristianismo é a verdadeira religião, e todos vos convertereis ao cristianismo. Mas se o fogo me consumir, será por causa dos meus pecados pessoais". Ou seja, equivaleria a dizer que também nesse caso o cristianismo seria a verdadeira religião.
O rei e os sábios ficaram sensibilizados pela sua profunda espiritualidade e inteligência. O diálogo terminou com o regresso do monge ao seu acampamento, levando presentes reais que creio estarem atualmente expostos junto ao seu túmulo. O homem de Deus era S. Francisco de Assis, sob cuja proteção espiritual estamos hoje reunidos, graças à Comunidade de Santo Egídio.
Senhoras e senhores, partilhei convosco esta história verdadeira não só porque nos encontramos na terra de S. Francisco, mas para colocar as seguintes perguntas:
- Se S. Francisco voltasse hoje à vida e visitasse as áreas de conflito no Médio Oriente, como seria acolhido pelo Daesh e pelos seus semelhantes?
- Teriam respeitado o seu hábito religioso e a sua Bíblia Sagrada?
- Teriam interagido com ele enquanto crente cristão, à luz do que dos cristãos dizem o Corão e o Profeta muçulmano Maomé (paz e bem sobre eles)?
Penso que não é preciso responder... todos conhecemos a resposta.
Conhecemos o destino do jesuíta italiano padre Paolo Dall'Oglio, que dedicou a sua vida para servir os muçulmanos e os cristãos na Síria. E conhecemos o destino do bispo Yohanna Ibrahim, de quem sentimos hoje a falta, tal como em eventos da Comunidade de Santo Egídio e nas plataformas de diálogo entre muçulmanos e cristãos no Médio Oriente e noutros locais.
Sabemos o que aconteceu aos muitos mosteiros e igrejas que foram destruídos, embora sejam descritos pelo Corão como casas de Deus, e não obstante a advertência do Profeta Maomé aos muçulmanos de não os danificar, negando aos muçulmanos o uso de uma pedra que seja de uma igreja para a construção de uma cada para os muçulmanos, considerando-a um ato de desobediência a Deus e ao seu Profeta.
O islão não mudou. O texto corânico é constante e os "Hadith" (as palavras do Profeta) são claras. Não mudou nem antes nem depois do encontro de S. Francisco com Al-Kamel no Egito. O que mudou é que um grupo de extremistas vingativos e desesperados desviou o islão e está a usá-lo com instrumento de vingança. Tornaram-se um novo movimento totalitário, mas desta feita em nome da religião.
Por essa razão, nós, muçulmanos, compreendemos que devemos libertar a nossa religião deste "desvio" e reorganizar o islão no seu interior, alinhando-o com os princípios espirituais do islão e com os princípios gerais que constituem o fundamento da civilização humana no séc. XXI.
Também por esta razão, enfrentar o tema do extremismo religioso é um dever antes de tudo dos muçulmanos. O islão acredita no pluralismo e considera a diversidade entre os homens uma expressão do desejo divino de que as pessoas sejam diferentes entre elas. Este é o motivo pelo qual Deus as chamou a conhecerem-se umas às outras. E o diálogo é meio para o fazer, mas não pode haver diálogo na ausência de liberdade. A liberdade religiosa é a base, a coroa de todas as liberdades, como é afirmado na exortação apostólica sobre o Médio Oriente e no documento de Azhar Al Sharif sobre liberdades fundamentais. Por isso o papa Francisco demonstrou ser um líder espiritual para toda a humanidade quando declarou que não existem religiões criminosas, mas existem criminosos em todas as religiões.
Senhoras e senhores, aprendi da história de S. Francisco no Oriente que as relações entre pessoas de diferentes religiões não podem basear-se na eliminação, como faz hoje o Daesh, e nem sequer na tolerância, como creem alguns bem intencionados. Deverá basear-se na fé no pluralismo e na diversidade e no respeito pelos fundamentos intelectuais e ideológicos que estão na base do pluralismo e da diversidade, de tal modo que tomem o lugar da tolerância, que Nietzsche descrevia como um insulto em relação ao "outro".
A cidadania de um Estado não se baseia na tolerância, mas nos direitos. Ao primeiríssimo sinal de mudança ou tensão nas relações, a tolerância poderia levar a uma violação dos direitos humanos. A tolerância é praticada com um certo nível de superioridade - de quem tolera em relação a quem é tolerado. Por sua vez, os direitos são fundados na igualdade e na justiça, e protegem as relações humanas e nacionais graças ao respeito recíproco. É exatamente isto de que os nossos Estados nacionais têm necessidade e sobre o qual devem ser fundados.
Permiti-me concluir confirmando a seguinte realidade, ou o facto de que "o outro" sou eu "o diferente"; que quanto mais dou lugar ao "outro" em mim mesmo, melhor me compreendo a mim mesmo e ao outro. Só através da liberdade de expressão, da liberdade de religião e da liberdade de praticar a religião posso compreender o que significa ser tu. Obrigado à Comunidade de Santo Egídio, e obrigado a vós.»
O papa Francisco apelou este domingo aos católicos para rezarem pela paz na próxima terça-feira.
Trad. / edição: Rui Jorge Martins