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Neutralizações salomónicas do humano (I)

Há tempos o Papa Francisco viajou a Lampedusa, lugar de peregrinação em favor dos humanos que aí naufragam impiedosamente. Um gesto ético em tempo de aparente ausência ética do humano! Este descentramento deu-se em ação de graças eucarística, em modo penitencial, porque aí a Igreja renasce e abre o seu coração ao sentido e destino universal da humanidade. Francisco dirige a sua pergunta não ao silêncio de Deus mas ao silêncio dos homens, à “vulgaridade de um mal radicalizado” (André Jacob, O Homem e o Mal) que nas entranhas da democracia moderna se manifesta subtilmente. Lampedusa, ponto de chegada sem retorno de “refugiados” em condições inumanas, é a recapitulação sempre atual e trágica do Mal originário! Já Ermanno Olmi no seu magnífico filme “A aldeia de cartão” tinha denunciado a tragicidade deste fenómeno colocando-o bem no âmago da ação eclesial, ao ponto de colocar em crise a identidade aparentemente segura dos ministros do sagrado. Também o escritor peruano, prémio Nobel da Literatura, Mário Vargas Llosa prestou há dias um tributo aos emigrantes que desumanamente se afundaram ao largo de Lampedusa. É neste cenário, de intervenção social, que Lampedusa será proposta a prémio Nobel da Paz.

Sob o olhar vago e eticamente indiferente, há uma cortina de fogo aparentemente intransponível que consome em geral o humano contemporâneo. Na atual ordem internacional verificam-se, no dizer de Brueggemann, três tipos de neutralizações salomónicas: neutralização da igualdade com a economia da abundância; neutralização da política de justiça com o crescimento da política de opressão e escravização; neutralização da religião da liberdade de Deus com a religião da acessibilidade de Deus (modalidade escolhida pelo império globalizado do consumo tecnológico e multimedial). Embora as duas primeiras neutralizações sejam bastante atuais, a terceira é bem mais subtil e legitima de alguma forma as duas primeiras. Ilustra esta posição a passagem bíblica do livro dos Reis: “Disse então Salomão: “O Senhor decidiu habitar em nuvem escura// Por isso é que eu te edifiquei um palácio, um lugar onde habitarás para sempre” (1 Re 8, 12-13). Nesta construção imperial Deus torna-se acessível, demasiadamente acessível, ao ponto do humano fundar uma teocracia ilegítima de opressão.

Brueggemann sagazmente interpreta esta passagem do seguinte modo: “agora Deus está à disposição e o acesso a Ele é controlado pela corte”. É a tensão entre a liberdade e acessibilidade de Deus, entre a identidade religiosa e relevância público-prática da religião num contexto pluralista. Habermas fala da emergência de uma aliança entre as instâncias públicas democráticas e a presença religiosa como qualificante do humano. O filósofo alemão fala de uma aliança alargada em torno de três categorias: “senso comum”, “impulso reflexivo” e “sujeito relacional”, qual instância crítica que subtraí o humano à tirania da naturalização do sujeito. Daí a pertinência da pergunta: “pode um só homem determinar naturalmente e a seu belo prazer o “ser-assim” de um outro homem ou de uma inteira comunidade?”.

A neutralização da religião da liberdade de Deus com a religião da acessibilidade de Deus é o princípio fundante das grandes tiranias desumanizantes. É subtil porque convive anfibiamente com todos os sistemas, perdendo a sua dimensão profética, não apenas na sua declinação crítica mas na instauração do novum, de uma consciência social alternativa que vem de Deus. Neste contexto de neutralização, a religião facilmente e comodamente torna-se instrumento dos impérios políticos, económicos, ideológicos. E, por isso, ela é eficazmente utilizada como força legitimadora de um monopolitismo terrificante exercido em nome da divindade suprema incarnada no déspota humano (político, económico ou religioso. O ser humano configura diversas constelações /figuras sociais pelas quais exerce o seu poder absoluto sobre os outros). Perdendo a sua dimensão profética (crítica e reforçativa), a religião deixa de ser consciência e comunidade alternativa.

Como podem os seus agentes apelar à refundação da esperança quando ela mesma (a religião) se acomoda aos laudos banquetes democráticos mas não menos opressores? A “religião usada neste modo é perfeitamente compatível com o sistema, privada de qualquer aspeto crítico” (Brueggemann), tornando-se ela mesma um sistema reforçativo. A perda da legitimidade crítica e credível dá-se quando a religião participa no jogo trinómico e circular entre a economia da abundância-política de opressão-religião da imanência. Mas a questão é complexa e paradoxal, como afirma mais uma vez Brueggemann: “hoje, a Igreja americana (e não só, mundial?!) está de tal forma inculturada no ethos consumístico americano que tem pouca capacidade de crer ou agir”. O problema situa-se precisamente na ausência e na perda progressiva da capacidade profética, de consciência crente eticamente diferenciada nas estruturas eclesiais comunicativas.

 

João Paulo Costa
© SNPC | 29.08.13

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