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Neutralizações salomónicas do humano (II)

A consciência crente é também uma consciência ética formada pelo princípio da liberdade e da justiça de Deus. Esta ideia é revisitada pertinentemente pelo dramático filme La Rafle (As crianças de Paris). Uma visão sobre a deportação dos judeus de Paris para os campos de concentração. A um dado momento, convicta de que a ajuda internacional ou das instâncias significativas do humano chegaria (a sociedade francesa no seu todo e as instituições), uma das crianças do campo de concentração desabafa: “perdi toda a esperança”. A perda do horizonte de esperança mesmo em “tempo de escombros” é o início de uma morte lenta e cruel. O rosto dos indigentes deveria provocar na nossa consciência crente uma consciência ética prática. Memoria passionis, uma clara recordação provocatória a uma consciência mundial acomodada e entretida com eurobonds, com mercados e paraísos fiscais e resgates bancários àqueles que provocaram a bolha financeira (é notável o filme “O capital” de Costa-Gavras ao mostrar os jogos perversos do sistema financeiro mundial). Também aqui o exercício crítico e profético é necessário, porque a excessiva participação eclesial no sistema capital retira-lhe a legitimidade do protesto e a força da proposta alternativa.

É, portanto, neste sentido, simplesmente anacrónico interrogarmo-nos como foi possível ter acontecido a tragédia da Shoah! A comunidade humana atual dispõe de uma memória histórica e de uma consciência coletiva que deveria ser capaz de imunizar as atrocidades dos regimes e ideologias desumanizantes. É aqui que se situa o atual escândalo humano da Síria, por exemplo. O cristianismo, os crentes, a humanidade não pode deixar de sentir o grito de homens e mulheres deserdados e reduzidos a objetos. Não é possível esperar que daqui a vinte anos se faça justiça, ou que se procurem armas químicas como argumento interventivo quando já morreram cerca de 100 mil pessoas. O evento do êxodo é surpreendente e atual: “Eu sou o Deus de teu pai, o Deus de Abraão, o Deus de Isaac e o Deus de Jacob […] Eu bem vi a opressão do meu povo […] e ouvi o seu clamor […] desci a fim de o libertar […] eis que o clamor chegou até mim, e vi também a tirania” (Ex 3, 4-8).

O Deus bíblico não é um Deus metafísico ou estático (estáticos são os deuses que se comprazem com os sacríficos entre os humanos, sinal de potência e domínio), é um Deus do êxodo, que coloca o humano a caminho de uma qualidade de vida digna. Se a história nos ensina alguma coisa, a comunidade internacional, os homens influentes, religiosos ou não, o cristianismo no seu todo, deverão gritar e exercer a sua influência contra este novo homicídio coletivo. A religião não pode legitimar o sacrifício banal dos inocentes. E se o martírio pela fé é o caminho do cristão, o martírio pelo próximo não pode calar esta violência na Síria contra a dignidade humana.

A única autoridade existente no mundo é “autoridade universal dos que sofrem” (J.B. Metz). É este o paradigma e o critério da teologia cristã. É impossível continuar a anunciar uma esperança camuflada e douradamente revestida. Se ainda existe uma consciência crente, ela é uma consciência ética que reflete a consciência de Cristo na sua relação justa com Abbá-Deus capaz de libertar o humano de todas as escravidões. Não podemos continuar somente preocupados com a recuperação do sacro litúrgico, de celebrar devotamente os santos mistérios, a multidão eufórica das JMJ 2013 gritando por um Jesus multifunções e multifacetado, quando o corpo de Cristo, que é a humanidade inteira presente no corpo eucarístico eclesial, e neste caso os humanos da Síria, continuam todos os dias a ser espezinhados por inércia, por silêncios cautelosos e prudentes (!) das chamadas consciências democráticas e religiosas do mundo civilizado. A todos os homens é pedido um grito concreto, constante e firme que mobilize a comunidade internacional a agir. A consciência do humano, da sociedade mundial, não pode esquecer os princípios fundativos da nossa condição humana: a fraternidade, a liberdade e a igualdade de uns para com os outros.

Neste âmbito o cristianismo tem um papel fundamental em despertar as consciências para a defesa da dignidade humana. Contudo, parcas têm sido as vozes, salvo ocasiões de circunstância, eclesiais que se tenham mobilizado ativamente em favor da questão síria. O que impele a ação humana é a “autoridade universal das vítimas inocentes” que julgarão a nossa consciência coletiva e individual. Todos somos responsáveis por este novo massacre, uns mais do que outros é certo, mas todos somos responsáveis sempre que a retórica da dignidade é o princípio da inação! Se há momento em que o cristianismo prático/pático deve afirmar veementemente a dignidade da pessoa humana e o valor da vida é neste conflito inumano. Seria um ato claramente profético se as comunidades eclesiais de todo o mundo se mobilizassem em torno da situação trágica da Síria, em favor da autoridade universal dos que sofrem, dos que esperam a ajuda do chamado mundo democrático e civilizado. Um ato público que deveria envolver todas as religiões do mundo que defendem a dignidade humana e dos inocentes selvaticamente mortos. Para o crente cristão, acreditar na proexistência de Cristo é crer na memória provocatória da paixão, morte e ressurreição de Jesus de Nazaré como ato prático da realização do Reino de Deus. 

 

João Paulo Costa
© SNPC | 01.09.13

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