Espiritualidade
O direito ao desânimo
"Espelho meu - A leitura diária do Evangelho pode mudar a vida", de Gabriel Magalhães, é o novo volume da coleção "Poéticas do viver crente" que a Paulinas Editora lança a 18 de fevereiro nas livrarias.
O Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura continua a apresentar excertos da obra, que pode ser conhecida no texto indicado em "Artigos relacionados".
O direito ao desânimo
Se eu tivesse de escolher um texto, meu preferido, dos quatro Evangelhos, a minha escolha recairia sobre o apêndice do Evangelho de São João. Há textos que, quando os lemos, tornam tudo possível na nossa vida: este é um deles. Muitas vezes este episódio faz-me pensar naquelas passagens narrativas de Flaubert em que se diz algo de muito profundo sem nada se explicar concretamente: mostrando apenas as reações dos personagens - a sua maneira de olhar, por exemplo. Para um leitor distraído, este excerto não passa de mais uma das aparições do Senhor depois da sua Ressurreição. Devo dizer que, para mim, é muito mais do que isso.
O texto começa por nos contar que Pedro resolve ir pescar: «Vou pescar», diz ele a Tomé, a Natanael, aos filhos de Zebedeu e a outros dois discípulos que o evangelista não identifica. «Também nós vamos contigo», respondem eles. Isto de resolverem ir pescar pode parecer algo insignificante: eles não eram pescadores? A verdade é que eles tinham sido pescadores - o que é muito, mesmo muito diferente. Agora, já não o eram. Jesus chamara-os a uma nova missão. O facto de irem pescar configura um enorme passo atrás na sua vida: um arrependimento da sua vocação.
Que estes homens se encontram num estado de absoluta falta de Fé, de imenso vazio espiritual, nota-se nos resultados da pescaria. Segundo o autor, naquela noite «nada apanharam». O nosso vazio de dentro, normalmente, prolonga-se no vazio dos acontecimentos que nos rodeiam. Uma alma esvaída não se consegue encher através da ação. Esta última transforma-se unicamente no prolongamento desse esvaziamento interior. É isto que se passa com os Apóstolos: não pescam nada na sua vida de fora, porque nada poderiam pescar na sua vida de dentro.
Eu não sei se o leitor compreende a gravidade da decisão que eles tomaram: estes homens que viveram com Jesus, que o conheceram, estes homens que, mais ainda, falaram com Ele após a sua Ressurreição; estes homens, que tinham todas as razões e mais uma para acreditarem, resolvem voltar para trás. Como se nada se tivesse passado. E isto na altura em que a Ressurreição já tinha acontecido - Ressurreição de que, ainda por cima, eles eram privilegiadas testemunhas. Neste ir pescar, há uma traição imensa: uma fragilidade imensa.
Também nós, muitas vezes, nos recusamos a Deus, mesmo depois de Ele nos ter dado amorosas provas da sua companhia. Fazemos isso sobretudo nos momentos de desânimo. Este texto é um texto sobre o desânimo - e sobre o direito ao desânimo. Trata-se de algo que nos acontece: pode mesmo acontecer-nos, como é o caso aqui, quando já tínhamos todas as razões para nunca mais desanimarmos. O desânimo é como que um órgão do nosso corpo que, por vezes, se nos revela - e que pode surgir até naqueles que mais perto se encontram de Deus.
Gabriel Magalhães
In Espelho meu, ed. Paulinas
© SNPC |
06.02.13
Espelho meu
Autor
Gabriel Magalhães
Editora
Paulinas
Ano
2013
Páginas
128
Preço
9,90 €
ISBN
978-989-673-286-8