Vemos, ouvimos e lemos
Paisagens
Pedras angulares A teologia visual da belezaQuem somosIgreja e CulturaPastoral da Cultura em movimentoImpressão digitalVemos, ouvimos e lemosPerspetivasConcílio Vaticano II - 50 anosBrevesAgenda VídeosLigaçõesArquivo

Olhares sobre o padre no cinema

Agradeço o convite e a oportunidade que me foi dada pela Comissão Episcopal das Vocações e Ministérios, na pessoa de D. Virgílio Antunes, para participar neste encontro.

Saúdo de forma particular os reverendos bispos bem como todos os sacerdotes aqui presentes.

Abordar o tema Olhares sobre o Padre no Cinema é um desafio tão entusiasmante quanto exigente, dada a pluralidade e a diversidade de obras que o cinema tem produzido ao longo do seu já século de existência e que bem se poderiam adequar à participação neste simpósio.

Desde os primórdios do cinema, criadores da sétima arte têm demonstrado interesse em explorar temas de natureza espiritual, designadamente de aprofundamento do sagrado, procurando cumprir o impulso que a natureza do cinema confere à capacidade humana de transcender o terreno.

Mais ou menos inspirados pela literatura e pela história, desde os primórdios do cinema encontramos obras de grandes criadores que se empenham quer em fazer eco de grandes escritores e grandes obras literárias, quer, por seu moto próprio em criar as suas próprias abordagens a temas de natureza espiritual, independentemente da sua natureza religiosa ou catequética.

Nem sempre, no entanto, a poderosa indústria cinematográfica se interessou por todas as obras de todos os criadores do cinema, pelo que quando falamos dos olhares do cinema sobre um determinado aspeto, não nos podemos nunca esquecer de que falamos daqueles que conheceram ampla divulgação. Provavelmente aqueles que no seu contexto, onde e quando foram criados, e no contexto que abordam, atraíram o interesse comercial de investidores que ali procuraram o retorno do seu investimento. Não serve este preâmbulo para diminuir o valor das muitas obras que o cinema nos tem legado, mas apenas para separar claramente o que é o interesse dos criadores do cinema por exemplo pelo sagrado, no que o cumpre como arte, do que tem sido ao longo dos tempos o respetivo interesse dos promotores do cinema, no que o aproxima de indústria ou mesmo comércio.

Imagem

Com os meios de que hoje dispomos, com a livre circulação de obras em canais abertos da internet, a possibilidade de acesso do público à pluralidade de olhares sobre os temas que nos são mais caros amplificou-se feliz e substancialmente. Não estamos hoje, por isso, tão circunscritos às obrigações comerciais como estivemos durante tantos anos. Mas o que por um lado é uma entusiástica porta aberta a um quase infinito número de filmes de registos e formatos variados implica também uma muito maior exigência da nossa parte, no uso da nossa consciência e do nosso ímpeto, como público, na procura, seleccão e divulgação ou partilha daquelas obras que promovam os valores que nos são mais preciosos.

Imagem

Concentrando-nos na abordagem dos Olhares do Cinema sobre o mistério e o ministério da fé, e mais especificamente do sacerdócio, encontramos ao longo da sua história obras tão diversas e marcantes que o tempo aqui disponível não chega para enumerar.

Destacarei por isso algumas mais emblemáticas, usando como critério os olhares multifacetados de grandes cineastas sobre a figura do padre.

Começo pelo registo aparentemente mais descontraído e humorístico da impagável e acutilante figura religiosa e política de “Don Camillo”, com o seu pequeno mundo tornado grande primeiro pela literatura e posteriormente pelo cinema. Uma referência que serve para abrir o apetite à listagem que se segue:

Imagem

Na década de 30, Michael Curtiz oferece-nos em “Anjos de Cara Negra”a  história de um padre de origem irlandesa que não mede esforços para abrir caminho à redenção de um amigo de infância tornado gangster.

Mais tarde, na década de 50, quatro filmes de autoria bem diversa exploram de forma múltipla o ministério e o mistério da fé: “Diário de um Pároco de Aldeia”, é adaptação da obra de Georges Bernanos por Robert Bresson sobre a forma como um padre combate a descrença e a desconfiança do seu novo rebanho com humildade, grande abnegação e sofrimento.

Já em “Confesso!” Alfred Hitchcock, no seu registo peculiar, aborda a intransigência absoluta de um padre ante a quebra do segredo de confissão de um assassino, levada ao limite de passar a encabeçar ele próprio a lista de suspeitos do homicídio.

Imagem

Elia Kazan revela-nos em “Há Lodo no Cais” o papel decisivo de um padre na tentativa de que seja denunciada a injustiça, corrupção e exploração a que um grupo de trabalhadores duma zona portuária são diariamente sujeitos.

De forma bem diferente, “Nazarín” de Buñuel, o único filme do cineasta que estreará durante muitos anos em Portugal, explora as provações de Nazario, um padre que numa cidadezinha do México a todo o custo se procura manter fiel à sua vocação e missão apesar do descrédito, humilhações e tentações humanas a que é sucessivamente sujeito.

Da década 60 podem destacar-se três obras fundamentais:  “O Cardeal”, de Otto Preminger, “As Sandálias do Pescador” de Michael Anderson e “O Evangelho Segundo São Mateus” de Pier Paolo Pasolinni. A primeira, que contou com a consultoria do então Arcebispo de Munique, Joseph Ratzinger, explora os conflitos interiores de um padre numa longa e árdua missão por vários países até chegar ao Colégio de Cardeais. A segunda, traduz-se simultaneamente numa visão futurística e reflexo do ímpeto do Concílio Vaticano II em contexto de Guerra Fria, que provoca num recém-eleito papa um desejo igualmente urgente de promover a paz no Mundo e relacionar-se com esse mesmo mundo, através do mais comum dos cidadãos, de quem reconhece saber tão pouco.

Imagem

“O Evangelho Segundo São Mateus”, sem naturalmente incluir a figura do sacerdote, propriamente dito, é o mais indelével reflexo do Concílio Vaticano II e do seu impacto na sociedade e na arte. Nele, Pier Paolo Pasolinni, que se alheia das correntes estéticas do cinema europeu do seu tempo e aquele que mais afastado se poderia considerar da Igreja, oferece-nos um olhar simultaneamente límpido e radical sobre a figura de Jesus em cujo aspeto minimal mas portentosamente simbólico se abre e refresca a visão evangélica e pastoral não apenas de um Jesus mas de um Homem Novo. Obra natural e particularmente acarinhada pelo Papa João XXIII, será provavelmente a mais fiel, em forma e conteúdo,  transposição cinematográfica desse evangelho.

Criadas nas décadas seguintes, encontramos “Manhã Submersa”, adaptação do romance de Vergílio Ferreira por Lauro António que retrata num registo simultaneamente neorrealista e existencialista a vida de António, um menino enviado para o seminário antes mesmo de poder sentir o genuíno apelo da vocação.

Imagem

Nanni Moretti oferece-nos em “A Missa Acabou”, de 1985, um olhar simultaneanente sarcástico e tocante sobre a missão de um padre enviado a uma comunidade que encontra em estado caótico.

Um ano mais tarde, Rolland Joffé presta em “A Missão” uma empolgante e honesta homenagem à fidelidade do serviço missionário jesuíta junto de uma comunidades brasileira no séc XVIII. Servindo a Deus e não à Coroa.

Imagem

Em 1993, o realizador britânico Ken Loach, recentemente agraciado pelo Patriarca de Veneza com o Prémio Robert Bresson pelo seu forte compromisso político e social, partilha no seu “Chuva de Pedras” um olhar profundo, incómodo e comovente sobre o drama de um homem devoto que coloca a salvação da sua própria alma em risco para garantir à filha tudo o que considera necessário à sua primeira comunhão.

Na aurora do séc. XXI, “Palavra e Utopia” é a obra que em extraordinário registo metafórico, metafísico e espiritual situa, pelo prisma de Manoel de Oliveira, a vida do Padre António Vieira quando este é instado a responder perante a Santa Inquisição sobre a denúncia da situação de exploração e escravidão a que a população índia é sujeita no Brasil.

“Amen”, do cineasta grego Costa-Gavras, suscita grande polémica entre a crítica, dentro e fora de portas da Igreja, quando a sua adaptação de uma obra literária, versa sobre os esforços de um cientista alemão e de um sacerdote jesuíta para tentar que um presumivelmente indiferente Papa Pio XII se manifeste contra o martírio de judeus às mãos de Nazis, em plena II Guerra.

Imagem

Em 2004, “O Nono Dia” do alemão Volker Schlöndorff foca a difícil escolha de Henri Kramer, um sacerdote prisioneiro num campo de concentração que terá que optar entre salvar a sua pele, colaborar com o regime Nazi ou salvar os seus companheiros aprisionados no “Bloco de Padres” de Dachau.

Um ano mais tarde, o documentário “O Grande Silêncio” rompe com a estrutura narrativa que aproxima todos os filmes até agora citados, para nos embeber na profundíssima dimensão contemplativa de uma comunidade de monges cartuxos. O filme tem grande impacto junto da crítica e do público em geral, revelando bem a apetência que existe por propostas que preterem o ruído exterior em benefício do silêncio interior.

2010 é o ano de “Dos Homens e dos Deuses” que pela mão de Xavier Beauvois recria no cinema o martírio verídico de uma comunidade de monges cistercienses na Argélia. Em plena guerra civil, os monges terão que optar, arriscando a vida, entre manter o apoio à população pobre e desprotegida que servem e a possibilidade de, abandonando-a, garantir a sobrevivência e e o serviço a outras tantas populações.

Imagem

“Encontrarás Dragões”, de Rolland Joffe, trará um novo olhar sobre a vida e início da Obra de São José Maria Escrivá, no contexto da Guerra Civil Espanhola.

Finalmente, em 2011, Ermanno Olmi realiza “A Aldeia de Cartão”, filme que chegou a Portugal direto ao circuito televisivo, com modestíssima exibição; um olhar delicioso sobre um padre que redescobre o sentido do seu ministério e particularmente a virtude da caridade, quando vê a sua igreja, sempre tão fechada aos fiéis, coercivamente ocupada por um grupo de imigrantes ilegais.

A escolha do filme que vos trago não foi fácil, precisamente pela quantidade de boas obras que aqui se adequariam. No entanto, de entre os olhares possíveis, pareceu-me pertinente priorizar:

Imagem

- a atualidade e a frescura do olhar a trazer à reflexão – é o mais recente filme de abordagem pastoral distribuído em Portugal;

- um olhar de fora para dentro da igreja;

- uma abordagem séria e profunda sobre a procura de Deus, protagonizada por uma adolescente, desafiada pelas transformações do seu corpo e do seu espírito e ainda por uma busca identitária, a caminho do Crisma;

- um olhar sobre o trabalho pastoral de uma comunidade periférica da Calábria, também ela sob desafios identitários, e a capacidade de resposta pastoral a esta adolescente;

Imagem

Um filme que exige uma leitura não literal da nossa parte mas atenta ao seu forte e permanente registo simbólico, em que nenhuma personagem é diminuída na sua condição humana, quer no uso da sua boa vontade, quer no respetivo conflito interior que se vai revelando.

Por fim, uma obra que percorrendo o circuito dos festivais, onde obteve reconhecimento e premiações diversas, pela qualidade e seriedade com que é desenvolvida, não se inclui no registo mainstream que interessa aos grandes distribuidores e a que, se não fosse esta oportunidade, poucos de nós teriam acesso.

“Corpo Celeste”, o filme que visionaremos, foi escrito e dirigido em 2011 por Alice Rohrwacher, uma jovem realizadora italiana sem ligação à Igreja a quem a procura de Deus terá, de alguma forma tocado.

Imagem

O filme foi trazido a Portugal pela mão de um jovem realizador português de curtas metragens que criou recentemente uma pequeníssima distribuidora. Não tem igualmente qualquer ligação à Igreja e de entre os poucos filmes que distribuiu, num circuito comercial modesto, este interessou-lhe particularmente. Porventura também tocado por Deus.

A nota que deixaria antecipando a partilha e debate, além das tantas outras que certamente surgirão após  o visionamento do filme, é o agrado pela forma como duas pessoas, criadora e promotor do filme, presumivelmente mais alheados do que qualquer um de nós do mistério e ministério da fé, por ambos se interessam; permitindo-nos hoje aqui enriquecer-nos com o seu empreendimento. Poderiam escolher temas que mais facilmente os catapultassem para a popularidade, mas não o fizeram.

Imagem

Como nota final, e dado que por limitação de tempo não será possível visionar a obra na íntegra, pelo que peço desculpa, situo-a até ao início da nossa projeção: Marta, adolescente de 13 anos de idade acaba de regressar da Suíça onde cresceu, juntamente com a Mãe e a irmã. A família instala-se na periferia da Calábria junto de tios e uma prima, de onde é originária e Marta inicia a sua preparação para o Crisma entusiasmada pela comunidade católica local. Num contexto de profunda mudança a diversos níveis, Marta tenta adaptar-se aos costumes locais e procura o seu lugar na família e na comunidade enquanto tenta discernir sobre o lugar de Deus no seu coração.

Uma busca identitária a que a comunidade, em contexto político eleitoral e onde tradição e modernidade nem sempre se harmonizam, não é alheia.

Imagem

Começaremos a ver o filme a partir de uma aula de catequese em que é anunciada a presença de um antigo crucifixo figurativo na celebração do Crisma, como oferta especial do Pároco para a ocasião e que este deverá trazer da sua aldeia natal.

 

 

A conferência foi seguida da projeção do filme "Corpo Celeste", de Alice Rohrwacher, 2011

 

Margarida Ataíde
Grupo de Cinema do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura
7.º Simpósio Nacional do Clero ("O padre, homem de fé: do mistério ao ministério")
Fátima, 5.9.2012
© SNPC | 07.09.12

Redes sociais, e-mail, imprimir

Foto

 

Ligações e contactos

 

 

Página anteriorTopo da página

 


 

Subscreva

 


 

 


 

 

Secções do site


 

Procurar e encontrar


 

 

Página anteriorTopo da página

 

 

 

2012: Nuno Teotónio Pereira. Conheça os distinguidos das edições anteriores.
Leia a última edição do Observatório da Cultura e os números anteriores.