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Judaísmo

Um «Shabat» com judeus portugueses

São quase 19h30 de uma sexta-feira e o sol ainda não se pôs. D. Clarinda, de 80 anos, está à janela, a sua bata de flores multicoloridas a combinar com o verde das plantas que espreitam para o parapeito. Há mais de meio século que vive aqui, na Rua Filipe da Mata, em Lisboa, mas só “há pouco tempo” se deu conta que, num prédio em frente ao seu, “às vezes entram e saem uns senhores de bem com uma coisas na cabeça”.

Um carro pára em frente à sua porta e ela faz sinal: “Olhe, lá vem um deles.” E um deles é o rabi Jules Harlow, que chega de chapéu bege, adornado com uma fita preta, ambos a condizer com o seu casaco de linho e o vestido negro da sua mulher, Navah. Será ele, já com a “coisa” na cabeça (o kippa, yarmulke ou solidéu) que irá liderar a Kabalat shabat (literalmente, recepção do sábado) no segundo e último andar do modesto edifício onde funciona a Sinagoga Ohel Jacob. É aqui, onde D. Clarinda diz ouvir “uma música alegre parecida com um bailarico”, que regularmente se juntam os Bnei Anussim, ou “filhos dos conversos” – “marranos”.

Assim se identificam os que procuram “retornar” às origens, 500 anos depois de o Estado português e a Inquisição terem forçado os antepassados a esconder ou renegar o seu judaísmo, fé e cultura. O “bailarico” é uma dança em círculo, de mãos dadas e braços no ar, no final de quase uma hora de orações e cânticos selada com palmas, beijos e abraços – é Navah quem anima a festa. E todos proclamam Shabat Shalom.

Esta Kehillat Beit Israel(congregação dos filhos de Israel) é especial. Pertence ao movimento masorti (conservador/tradicional), a segunda maior denominação do judaísmo, ou como os seus membros se definem, “um meio-termo entre a ‘esquerda’ religiosa representada pela reforma e a ‘direita’ representada pela ortodoxia [predominante]”. Dois dias antes do Shabat, num hotel onde ele e Navah se alojam desde que, no Outono de 2005, começaram a vir a Lisboa todos os anos (este é a décima vez), para guiar os Bnei Anussim, o rabi Jules dá-nos mais detalhes. Afinal, ele pertence à Assembleia Rabínica Masorti. É o seu chefe de liturgia, edita e traduz os novos siddurim (livros de orações judaicas).

“Queremos perpetuar a tradição, mas, ao mesmo tempo, temos consciência de que já não vivemos na era da Bíblia ou do Talmude”, explica o rabi de voz doce e sorriso luminoso. “Queremos que a tradição apoie as nossas vidas na realidade actual. Por exemplo, durante séculos, havia uma prece em que os homens diziam: ‘Graças a Deus por não ter feito de mim uma mulher.’ E a mulher dizia: ‘Graças a Deus por me ter feito de acordo com a Sua vontade.” No movimento masorti mudámos isso para dizer: ‘Graças a Deus por me ter feito à Sua semelhança, homem e mulher.’ A fórmula é a mesma, mas o conteúdo foi alterado para reflectir o que sentimos hoje.”

Navah, cuja vivacidade contrasta com a serenidade do marido, enfatiza as mudanças ocorridas nos últimos 15 anos: “Quando eu era pequena, havia uma oração na sinagoga que dizia: ‘Abençoado seja o presidente desta congregação, a sua mulher e os seus filhos.’ Hoje, há mulheres presidentes e até rabis na comunidade masorti. Antes, a oração colectiva só era possível se houvesse um minyam [quórum] de dez judeus homens. Podia haver 20 mulheres e nove homens, mas não havia minyam, porque as mulheres não contavam. A masorti e a reforma [ao contrário da ortodoxia] consideram que as mulheres são membros valiosos e devem ser incluídas.

 

O coração deles é judeu

Navah mostra-se convencida de que foi este “carácter inclusivo” que atraiu os criptojudeus da Kehillat Beit Israel. E revela como tudo se passou. “Um dia, em Nova Iorque, fomos contactados pelo Departamento Central Masorti Olami em Jerusalém. Disseram-nos que algumas pessoas em Lisboa tinham contactado o movimento, através de um rabi masorti que viera a Portugal, e queriam recuperar a sua herança judaica. O rabi Joe Wernick, director executivo do Masorti Olami mundial, veio depois a Lisboa, achava que isto não era credível, mas não tinha a certeza, e pediu-nos que assegurássemos se eles estavam seriamente empenhados em tornar-se judeus segundo a lei judaica (Halakah). Se sim, que iniciássemos com eles um curso de estudos de textos sagrados e prática religiosa, necessário a todos os que pretendem converter-se ao judaísmo.”

Eles eram uns 12 ou 15, no princípio. Relatavam tradições familiares que são exclusivas dos judeus. “A avó de um deles, por exemplo, tinha uma faca grande em que ninguém podia tocar. Quando queria matar uma galinha, ela ia para o quintal, pegava na galinha, dizia umas palavras que ninguém entendia e degolava a ave. Pensamos que a avó dele era shohet [talhante], porque tinha aquela faca, sabia como matar animais com a mínima dor e dizer uma oração especial em hebraico.2

Adi Bat-Yehuda (o nome adoptado confirma que já é uma judia segundo a Halakah), economista reformada, de 58 anos, também nunca questionara por que a família separava em duas gavetas distintas os talheres do peixe e da carne. “A minha avó fazia isto, a minha mãe fazia isto.” Na tradição judaica é preciso ter dois conjuntos de cutelaria: um para os lacticínios e outro para a carne. A família de Adi manteve a tradição mas sem perceber porquê.

Na sexta-feira, foi Adi, ou Adriana, membro fundador da Kehillat Beit Israel, que nos abriu a porta do espaço comunitário e fez entrar num estreito corredor que dá acesso a uma cozinha, a uma sala de refeições, a uma varanda, a um pequeno museu e, claro está, à sinagoga – em cada umbral um mezuzah (pequeno rolo de pergaminho contendo duas passagens da Torah). Fomos falar com ela, antes que o céu escurecesse – Navah avisara, peremptoriamente, que depois não seriam permitidas gravações, fotografias ou sequer tirar notas. O bloco e a caneta teriam de ser guardados antes de se acenderem duas velas que davam início ao Shabbat. A exigência, cronometrada ao minuto, foi cumprida. Por volta das 20h45, começava o “dia do descanso” instituído por Deus, segundo os crentes.

Antes, porém, sentada num dos bancos de madeira da varanda, Adi partilha com o «Público» a sua história e o desfecho feliz. “Desde miúda que sempre me insurgi contra a Igreja Católica. Em Moçambique, onde nasci, fui baptizada aos quatro anos para poder frequentar uma escola de freiras. Dei-lhes muitos problemas por causa das perguntas que fazia. Nunca me satisfaziam as respostas que me davam. Acabei a instrução primária aos nove anos e, por esta altura, emitiram uma autorização especial para que eu fizesse logo a comunhão solene e o crisma. A minha carreira de praticante acabou aqui.”

Adi nunca se interrogou sobre esta rebeldia até começar a remexer as memórias. “A minha mãe disse-me uma vez, em Lourenço Marques [actual Maputo] que, se eu viesse para Portugal, havia uma coisa que, em casa da minha avó, eu nunca poderia falar. Era sobre judaísmo. É um assunto interdito, disse-me ela, sem mais explicações. Eu achei isto muito estranho. Até porque a minha mãe só viveu com a minha avó dos 18 aos 24 anos, tendo sido criada pela família do pai. Quando estudava, eu ia à sinagoga. Sentia-me lá bem. Entretanto casei-me e fui ‘obrigada’ a fazê-lo pela Igreja Católica, porque o meu primeiro ex-marido era muito cumpridor. Eu ia levá-lo à missa e depois ia buscá-lo.”

Tudo mudou quando, um dia, em 1972, já com duas filhas, Adi foi visitar um tio que estava muito doente. “Ele fez um comentário, eu dei a minha opinião e ele replicou: ‘Não há dúvida nenhuma que és judia como a tua avó!’ Eu fiquei espantada. ‘A minha avó é judia?’ Ele observou: ‘Mas, ao fim destes anos todos, isto continua a ser um segredo?’ foi um dia muito feliz. Encontrei a explicação para tudo.”

Depois do 25 de Abril, em 1974, quando Adi veio para Lisboa, “agarrava nas filhas e ia aos sábados de manhã à sinagoga [ortodoxa sefardita] Sharé Tikvá”, na Rua Alexandre Herculano. “Entrava, não percebia nada daquilo, mas ficava contente por lá estar.” Chegou então o momento de provar a sua ascendência. “Fui frequentar a cátedra Alberto Benvenisti na Universidade de Letras. Tornei-me amiga de dois judeus, um de bastante idade e outro de Belmonte, que me disse para aparecer na Elias Garcia [rua onde antes funcionava a sinagoga Ohel Jacob]. O mais idoso ofereceu-se para falar com um amigo judeu no Porto e foi este, depois de eu expor a minha situação, que me enviou uma carta a dizer que conhecia a minha família e que, sim, eram judeus. A minha avó e o seu irmão eram livreiros alfarrabistas, e o meu tio costumava estar num recanto escondido com um kippa na cabeça. A minha avó não queria que soubessem que era judia. Tinha medo. Mais tarde vim a saber que ela era conhecida como ‘a judia da Rua da Picaria’, em todo o Porto.”

Com esta descoberta, Adi começou a frequentar os serviços religiosos e a entender por que nunca aceitara a confissão e a comunhão, o celibato dos padres e o dogma da Santíssima Trindade. A sua filha mais nova casou-se com um judeu francês. A neta Leah, de seis anos, “fez um serviço especial na sinagoga”; o neto, benjamim, de três anos, foi submetido, logo nos primeiros oito dias de vida, como exige a Halakah, a uma brit milah (circuncisão).

“Não há descrição para o que sinto”, confessa Adi. “Encontrei justificação para a minha busca. Quando compareci perante o Beit Din [tribunal rabínico, uma das fases do processo de ‘retorno’], em Londres, disseram-me: ‘Sabe que, uma vez sendo judia, jamais poderá deixar de o ser?’ Comovi-me e respondi: ‘Medo teria eu se isso pudesse acontecer.’ Foi algo por que lutei e ninguém me pode tirar.”

 

Encontrar legitimidade

Emoção foi também o que sentiu Hayat bat-Yonatanm de 37 anos, quando chegou a Londres, em 2006, com a sua melhor amiga, para prestar provas perante o Beit Din. O momento que a deixou sem palavras foi o mikveh (banho ritual): “Dizer uma oração e depois submergir na água foi... Ao fim de dez anos, fui reconhecida por aquilo que sentia que era. Andava à procura desta legitimidade.”

E essa procura começou aos 13 anos, quando uma tia comentou, numa conversa de circunstância, que a família, muito pouco religiosa, era judia. “Na altura só pensei: ‘Olha que giro’12, conta ao «Público», os seus olhos azuis confundindo-se com o turquesa da camisola. No 11.º ano, porém, Hayah foi para a Alemanha. “Achava que talvez vivendo lá conseguisse perceber como é que tinha sido possível um país inteiro alinhar naquilo. Tentar perceber como é que o Holocausto tinha sido possível. Continuo a não perceber.”

Chegada a hora de fazer uma tese de final de curso (Antropologia), Hayah escolhei ir para um kibbutz (comuna) em Israel. Do trabalho como voluntária na vacaria reforçou o gosto pelos animais, que a levou a estar agora a acabar outro curso, o de Veterinária. “Nunca fui especialmente religiosa”, afirma. “Passei por uma fase de agnosticismo profundo. Aos 15 anos era ateia. Mas, lembro-me de estar em Jerusalém, em Janeiro de 1995, e sentir que tinha chegado a casa. Que todas as dúvidas que tinha em relação à religião não eram à religião, em geral, mas à religião católica. De repente vi-me num sítio onde havia muita gente igual a mim. Aquilo fazia sentido.”

Plena de espiritualidade (ainda que o seu kibbutz fosse “totalmente secular”), Hayah lembra-se ainda de tentar arranjar um serviço de Shabat gravado. “Não sabia como rezar”, admite. “Na altura já lia hebraico, porque na faculdade tirei um curso de hebraico bíblico. Foi uma senhora sul-africana, Rufina [Bernadetti Silva] Mausenbaum, que criu um fórum chamado Saudades, a apresentar-me ao grupo na Elias Garcia.” Agora, na congregação masorti, Hayah sente que alguém a entende.

 

Em processo de conversão

Passa agora ligeiramente das nove da noite. Na sinagoga Ohel Jacob – a única ashkenaze (criada por judeus polacos e alemães fugidos da I Guerra Mundial) na Península Ibérica -, o rabi Jules Harlow, com a sua tallit (faixa de tzitzit/franjas) ao pescoço, anuncia que vai conduzir um “serviço de estudos” porque não há minyam ou quórum (de dez judeus) para uma completa Kabalat Shabat (embora estivessem presentes 15 pessoas, nem todos completaram o processo de conversão. Está encostado a um bimah (púlpito) de onde cada um tira um siddur (livro de orações) bilingue. Atrás de si, está a Aaron Kodesh, arca sagrada onde guardam os rolos da Torah.

De frente ou de costas para um grande menorah (candelabro), todos se esforçam por corresponder aos pedidos do rabi, ora rezando em português, ora em hebraico. Para os cânticos, as vozes estão pouco afinadas, mas a concentração será total quanto são chamados à amidah, oração individual de pé, composta por uma série de vénias. A cabeça balança, o corpo embala, os pés movem-se. para a frente, para os lados, para trás.

De todos os presentes, um dos que parecem mais extasiados é Bruno Obano, de 28 anos, licenciado em Turismo. Ao contrário de Hayah e Adi, ele admite que não tem raízes judaicas. Está aqui para se converter, embora o rabi Jules o tivesse tentado dissuadir (“Não fazemos proselitismo”, deixou bem claro Navah).

Bruno justifica-se numa conversa telefónica posterior: “Apareci sem ser convidado. Senti uma necessidade espiritual que só o judaísmo me pode dar, pela sua grande sabedoria. Eu não era crente. Não há ilusões quando se cresce, como eu, num meio pobre e miserável do Montijo.”

Bruno estava em Viena, próximo do bairro judeu de onde muitos foram levados para campos de concentração durante o regime nazi. Foi na Áustria, “chocado com uma civilização europeia que desceu tão baixo”, que sentiu vontade de “estabelecer uma aliança” com Deus.

Frequentador assíduo dos eventos da comunidade masorti, Bruno já sabe recitar bênçãos e orações em hebraico. Tornou-se vegetariano para tentar cumprir as regras dietéticas kosher (não misturar lacticínios com carne, que nunca deve ser de porco; não comer moluscos, chocos, polvo ou marisco; no peixe, evitar o safio...). Irá submeter-se a uma circuncisão cirúrgica (“Imagine o profundo compromisso que isto é para um homem”, vincou Navah) e completará o ritual com uma circuncisão simbólica (hataft dam brit), em que um rabi recolhe uma gota de sangue.

Bruno só será judeu quando o Beit Din determinar, mas mesmo não o sendo é bem aceite na cerimónia religiosa e na subsequente Oneg Shabat (refeição-convívio). Antes de passar á mesa, há um ritual de lavagem das mãos e depois não se fala até o rabi cantar o Kidush, uma bênção que agradece a Deus o vinho e dois chalot (pães como sementes de sésamo e de papoila).

O pão é cortado às fatias, temperado com sal e distribuído. Seguem-se os deliciosos pratos confeccionados por Adi: cuscuz com grão, salada de pimentos-encarnados, tomates no forno com óregãos, feijão-frade com atum, tarte de alho-francês e pudim. Todos se apresentam – Danilo (membro mais antigo), Caetano, Lisa, Carlos, Manuela, Adriana (Adi), Eliana, Paula-João (Hayah), David, José, Bruno – e desvelam um pouco de si, gerando uma calorosa discussão. Carlos, que já trabalhou nos montes Golã e sonha morar lá, declara amor incondicional a Israel. Navah avisa-o: “Todos podemos ser sionistas, como são os cristãos fundamentalistas americanos, mas nem todos podemos ser judeus.”

Antes da sobremesa e do café, há uma última oração. É quase meia-noite. Três crianças, filhas de Carlos e Eliana, ainda brincam, sem sinal de sono. na hora da despedida, os participantes dizem obrigado e prometem voltar.

 

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Margarida Santos Lopes

in Público, 03.07.2008

04.07.2008

 

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