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Invisível herói

De 2 a 12 de maio deste ano, fiz uma maratona cinematográfica, assistindo às 7 longas-metragens e 17 curtas-metragens que integraram a competição nacional da 16.ª edição do festival Indie Lisboa. Foi uma experiência muito rica e gratificante, pessoal e intelectualmente. Festival é uma palavra próxima de festa, e o Indie é uma verdadeira celebração do cinema, da cultura viva, do encontro. Penso que esta última palavra descreve bem o que ali se passa: encontro de geografias diferentes, de olhares, de propostas, de maneiras de ser, encontro, enfim, de indivíduos que, justamente na sua singularidade, enriquecem a vida do espaço-tempo que todos habitamos. Esta riqueza e pluralidade são absolutamente insubstituíveis e, não sendo de todo exclusivas deste evento, elas lembram-nos que a vida e o sonho não são monólitos inamovíveis, mas sobretudo fazem-se de movimentos de procura. Este foi um dos aspetos que valorizámos na escolha do filme galardoado com o prémio Árvore da Vida para o cinema português, cujo júri tive o privilégio de integrar no festival Indie, e que, no dia 11 de maio, foi atribuído ao filme de Cristèle Alves Meira (n. 1983) Invisível herói.

Cada dia que passa tenho mais certeza da escolha que fizemos. Parece que vão crescendo em mim os sentidos visíveis e invisíveis de uma história em que o equilíbrio resulta da justa tensão entre a realidade evidente e uma dimensão onírica que se vai instalando, e que nos desinstala.

Trata-se de uma curta-metragem de 28’ que segue a vida de Duarte, um homem de 50 anos que é cego. Perdoe-se-me o uso deste adjetivo, mas custa-me escrever “invisual”. O prefixo in- exprime a ideia de negação, de falta; todavia, a Duarte não lhe falta a dimensão visual da vida. Ele vê e faz-se ver na procura do amigo Leandro, a quem quer entregar a letra de uma canção.



Vários momentos que podiam tocar o ridículo acabam por se transformar em poesia: como Duarte a boiar em cima de um gelado insuflável ou a passear com a sua bandelete com o laço da Minnie a piscar na noite. A realizadora “estica a corda” do ridículo até ao limite em que, com extrema elegância, este se transforma em doçura



Na praia, Duarte vai perguntando por Leandro a conhecidos e desconhecidos. Ninguém sabe quem é ou onde está. A procura daquele amigo de cuja existência começamos a desconfiar é justamente o que permite a Duarte a sua existência singular. Perguntar por Leandro permite-lhe conversar, conhecer pessoas e ter um destino. Leandro é o destino, e não importa se ele é visível, se ele é real. Por outro lado, é esse amigo ausente que dá visibilidade a Duarte perante os outros. Se não fosse a pergunta que insistentemente coloca, Duarte não existiria para o amigo homem-estátua, para as três adolescentes da praia, para a vendedora de gelados, para os trabalhadores da obra, para a jovem francesa à beira da roulotte.

A princípio, a câmara segue Duarte como se se tratasse de um documentário. Na cena inicial da película, Duarte canta com os companheiros, vemo-lo a vestir-se no quarto, preparado para um dia normal, de visita à biblioteca da casa, assistimos a declarações ao estilo de uma entrevista feitas na marquise, o ditar da letra da música, a saída para a rua à procura de Leandro, etc.

O olhar de documentário vai-se desenvolvendo, afastando-se do relato e assumindo um tom meditativo, de que são exemplo maior os planos filmados na praia, já vazia, em que o ritmo da narração abranda, ou Duarte sentado no cais, costas curvadas, pés pendurados na madrugada pontuada ainda pelas luzes das margens do Tejo.



No quadro final, Duarte canta com a sua amiga cabo-verdiana, interpretada por Lucília Raimundo, belíssima e brilhante no vestido de lantejoulas verde-água. A melodia, as vozes, as silhuetas marcadas a contraluz, aquele beijo nada ridículo, concorrem para o mágico cólofon



No jogo entre a realidade e o sonho, sentimos que Duarte é partícipe fundamental, que ele é o ator Duarte Pina ao mesmo tempo que é Duarte, personagem no ecrã. Como se neste filme ele estivesse concretizando (uso o gerúndio propositadamente) a vontade de ir para dentro da câmara (no caso, a fotográfica), que o protagonista nos confidenciara na conversa na varanda. Percebemos que Duarte é especial a partir da sua relação com os livros. Ele adora os livros e fala deles como uma casa onde se pode entrar, oportunidade de conhecer quem lá vive. De novo, o movimento de embalo entre a vida vivida e a vida sonhada.

Alves Meira corre vários riscos com este filme, e um deles, recorrente, é o do ridículo. O ridículo é aquilo que sabemos que está desadequado e que faz rir. Embora o sentido de humor e a surpresa não estejam afastados do filme, não se trata de uma obra humorística. Vários momentos que podiam tocar o ridículo acabam por se transformar em poesia: como Duarte a boiar em cima de um gelado insuflável ou a passear com a sua bandelete com o laço da Minnie a piscar na noite. A realizadora “estica a corda” do ridículo até ao limite em que, com extrema elegância, este se transforma em doçura (como no caso das adolescentes que espalham protetor solar na cara de Duarte ou a do beijo que sela a história, na derradeira cena do filme).

Não é possível terminar esta breve leitura de um filme que nos pede bem mais que 6000 caracteres sem falar da música, presente do início ao fim, como num itinerário circular que se fecha, mas sem que estejamos exatamente no mesmo sítio: não é a mesma a música, não é a mesma a noite, não é a mesma a vida. No quadro final, Duarte canta com a sua amiga cabo-verdiana, interpretada por Lucília Raimundo, belíssima e brilhante no vestido de lantejoulas verde-água. A melodia, as vozes, as silhuetas marcadas a contraluz, aquele beijo nada ridículo, concorrem para o mágico cólofon.

Há muito que já não estávamos no domínio do documentário, mas bem perto da ficção, em que são permitidos todos os devaneios entre o real e sonho, entre as vidas, as duas, que Fernando Pessoa colocou em versos e que são também recitados no filme, como uma espécie de meta-discurso sobre a narrativa:

[…]
«Temos, todos que vivemos,
Uma vida que é vivida
E outra vida que é pensada,
E a única vida que temos
É essa que é dividida
Entre a verdadeira e a errada.

Qual porém é verdadeira
E qual errada, ninguém
Nos saberá explicar;
E vivemos de maneira
Que a vida que a gente tem
É a que tem que pensar.»








 

Inês Espada Vieira
Investigadora e docente de Estudos de Cultura, Universidade Católica Portuguesa
Imagem: D.R.
Publicado em 20.05.2019 | Atualizado em 09.10.2023

 

 

 
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