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Teatro

O que diz sim. O que diz não

Evocando o Dia Mundial do Teatro, que se assinala a 27 de março, apresentamos o texto de duas pequenas peças escritas por Bertolt Brecht: «O que diz sim»; «O que diz não».

Os primeiros esboços da peça «O que diz sim» foram feitos em 1929. Primeira publicação em abril de 1930. Estreia absoluta em 23 de junho de 1930, no Auditório do Instituto Central para o Ensino e a Educação, em Berlim, com música de Kurt Weill, interpretada por alunos de várias escolas de Berlim. Publicação de uma segunda versão em dezembro de 1930. Entre 1930 e 1932 registam-se 60 encenações na Alemanha e no estrangeiro. Está disponível uma gravação de 1990, pela Delta Music, feita por ocasião das comemorações dos 90 anos sobre o nascimento de Kurt Weill.

Esta peça foi representada pela primeira vez em português (em conjunto com «O que diz não») em 1966, pelo Teatro Amador de Lourenço Marques, com encenação de Mário Barradas.

A peça «O que diz não» foi escrita entre janeiro e outubro de 1931, para formar um díptico com a segunda versão de «O que diz sim». A primeira publicação das duas peças em conjunto fez-se no fim de 1931. «O que diz não» não estreou na Alemanha em vida de Brecht, nem Weill chegou a compor música para o texto. A estreia absoluta das duas peças em conjunto, pelo recém-criado Living Theatre de Nova Iorque, ocorreu em 1951.

Esta peça estreou em Portugal no Teatro António Pedro, no Porto, em maio de 1975, num espetáculo com o título, «Uma tarde com Brecht», pelo Teatro Experimental do Porto.

As duas pequenas peças não devem, sempre que possível, ser apresentadas em separado.

Personagens: O Professor; o Rapaz; a Mãe; os Três Estudantes; o Grande Coro

 

O que diz sim

1

O Grande Coro
Acima de tudo, o importante é aprender a estar de acordo
Muitos dizem que sim, e no entanto ninguém está de acordo
A muitos nem sequer se pergunta e muitos
Estão de acordo com coisas erradas. Por isso:
Acima de tudo, o importante é aprender a estar de acordo.

O Professor no espaço 1, a Mãe e o Rapaz no espaço 2.

O Professor
Eu sou o professor. A minha escola é na cidade e tenho um aluno cujo pai morreu. Já só tem a mãe, que toma conta dele. Vou ter agora com eles e despedir-me pois em breve parto em viagem em direção às montanhas. Surgiu uma epidemia entre nós e é na cidade para lá das montanhas que moram alguns grandes médicos.
Bate à porta.
Posso entrar?

O Rapaz
Sai do espaço 2 para o espaço 1
Quem é? Oh, é o professor, o professor veio visitar-nos!

O Professor
Porque é que não vens à escola há tanto tempo?

O Rapaz
Não pude ir porque a minha mãe adoeceu.

O Professor
Não sabia que a tua mãe também estava doente. Vai lá dizer-lhe por favor que eu estou cá.

O Rapaz
Chama para o espaço 2
Mãe, está cá o professor.

A Mãe
Sentada no espaço 2
Diz-lhe que entre.

O Rapaz
Entre, por favor.

Entram ambos no espaço 2.

O Professor
Há muito que eu não vinha cá. O seu filho disse-me que a doença também a apanhou a si. Está melhor?

A Mãe
Infelizmente não estou melhor, porque não se conhece até hoje medicamento para esta doença.

O Professor
Temos de encontrar qualquer coisa. É por isso que cá vim despedir-me: amanhã vou atravessar as montanhas para ir buscar medicamentos e instruções. É na cidade para lá das montanhas que estão os grandes médicos.

A Mãe
Uma expedição de socorro pelas montanhas! Sim, de facto ouvi dizer que é lá que estão os grandes médicos, mas também ouvi dizer que é uma caminhada perigosa. E estava a pensar levar o meu filho?

O Professor
Isto não é viagem para uma criança.

A Mãe
Está bem. Espero que volte de saúde.

O Professor
Agora tenho de ir. Adeus.
Sai para o espaço 1.

O Rapaz
Segue o Professor até ao espaço 1:
Tenho de dizer-lhe uma coisa.

A Mãe escuta encostada à porta.

O Professor
Que coisa?

O Rapaz
Quero ir consigo às montanhas.

O Professor
Tal como acabei de dizer à tua mãe
Esta viagem é difícil e
Perigosa. Não vais conseguir
Acompanhar-nos. Além disso:
Como podes deixar a tua mãe
Que está doente?
Fica. É completamente
Impossível vires connosco.

O Rapaz
É por a minha mãe estar doente
Que quero ir convosco, para lhe ir
Buscar medicamentos e instruções
Junto dos grandes médicos na cidade para lá das montanhas.

O Professor
Tenho de voltar a falar com a tua mãe.
Regressa ao espaço 2. O Rapaz escuta encostado à porta.

O Professor
Voltei. O seu filho diz que quer vir connosco. Disse-lhe que ele não a devia abandonar estando você doente e que era uma viagem difícil e perigosa. Disse-lhe que era completamente impossível ele vir. Mas ele disse que tinha de ir à cidade para lá das montanhas buscar medicamentos e instruções para a sua doença.

A Mãe
Eu ouvi tudo. Não duvido daquilo que o rapaz diz que ele gostaria de fazer a caminhada perigosa consigo.
Anda cá, meu filho!

O Rapaz entra no espaço 2.

Desde o dia em que
O teu pai nos deixou
Que só te tenho a ti
Ao meu lado.
Nunca estiveste mais tempo
Longe do meu pensamento nem da minha vista
Do que o tempo que precisei para
Preparar as tuas refeições
Tratar da tua roupa e
Arranjar dinheiro.

O Rapaz
É tudo como tu dizes. Mas apesar disso não há nada que me faça demover da minha intenção.

O Rapaz, o Professor, a Mãe
Vou (vai) fazer a perigosa caminhada
E trazer medicamentos e instruções
Para a tua (minha, sua) doença
Da cidade para lá das montanhas.

O Grande Coro
Eles perceberam que nenhum argumento
O podia demover.
Então o professor e a mãe disseram
A uma só voz:

O Professor, a Mãe
Muitos estão de acordo com coisas erradas, só que ele
Não está de acordo com a doença, ele exige
A cura da doença.

O Grande Coro
Mas a mãe disse:

A Mãe
Já não tenho forças. Se tem de ser
Vai com o professor.
Mas volta depressa, depressa
Do perigo.

 

2

O Grande Coro
Os viajantes partiram
Em direção às montanhas.
Entre eles contava-se o professor
E o rapaz.
O rapaz não estava preparado para suportar tanto esforço:
Puxou demais pelo coração
Que exigia o rápido regresso a casa.
Ao chegar a madrugada no sopé das montanhas
Já quase não conseguia arrastar
Os pés cansados.

Entram no Espaço 1: o Professor; os Três Estudantes e por fim o Rapaz com um cantil.

O Professor
Fomos rápidos a subir. Está ali o primeiro abrigo. Vamos descansar ali um pouco.

Os Três Estudantes
Nós obedecemos.

Sobem a um estrado no espaço 2. O Rapaz detém o Professor.

O Rapaz
Tenho de lhe dizer uma coisa.

O Professor
O que queres tu dizer?

O Rapaz
Não me estou a sentir bem.

O Professor
Não digas mais! Quem faz uma viagem destas não pode falar assim. Deves estar cansado porque não estás habituado a subir montanhas. Pára um bocado e descansa.
Sobe para o estrado.

Os Três Estudantes
Parece que o rapaz está cansado da subida. Vamos perguntar ao professor.

O Grande Coro
Sim. Façam isso!

Os Três Estudantes
Para o Professor:
Ouvimos que o rapaz está cansado da subida. O que é que ele tem? Estás preocupado com ele?

O Professor
Não se sente bem, mas de resto tudo em ordem. Está cansado da subida.

Os Três Estudantes
Então não estás preocupado com ele?

Pausa longa.

Os Três Estudantes
Entre eles:
Estão a ouvir? O professor disse
Que o rapaz só está cansado da subida.
Mas não o acham com um aspeto estranho?
Logo a seguir ao abrigo vem a passagem estreita.
Só com ambas as mãos agarradas às rochas
Se consegue passar.
Esperemos que não esteja doente.
Porque se ele não conseguir continuar, temos de o
Deixar aqui.
Chamam, para o espaço 1, com as mãos em forma de concha:
Vamos perguntar ao professor.
Para o Professor:
Quando há bocado te perguntámos sobre o rapaz, disseste-nos que ele só estava cansado da subida, mas ele agora está com um ar muito estranho. Até se sentou.

O Professor
Já percebi que ele ficou doente. Tentem carregá-lo pela passagem estreita.

Os Três Estudantes
Vamos tentar.

Efeito técnico: Os Três Estudantes tentam ajudar o Rapaz a atravessar a "passagem estreita". A "passagem estreita" tem de ser feita pelos intérpretes com a ajuda de estrados, cordas, cadeiras, etc., de tal maneira que os Estudantes consigam atravessar sozinhos mas não quando carregam o Rapaz.

Os Três Estudantes
Não conseguimos atravessar com ele e não podemos ficar junto dele. Seja como for, temos de continuar, pois uma cidade inteira espera os medicamentos que vamos buscar. É horrível dizer isto, mas se ele não pode vir connosco, temos de o deixar aqui nas montanhas.

O Professor
Pois, talvez tenham. Não me posso opor. Mas parece-me correto perguntar àquele que ficou doente se ele acha que devemos voltar para trás por causa dele. O meu coração sofre muito por conta desta criatura. Quero ir ter com ele e prepará-lo com calma para o seu destino.

Os Três Estudantes
Faz isso então. Colocam-se de frente uns para os outros.

Os Três Estudantes, o Grande Coro
Vamos perguntar-lhe (perguntaram-lhe), se ele quer (queria) Que voltemos (voltássemos) para trás por sua causa
Mas mesmo que ele o peça
Nós não queremos (eles não queriam) voltar para trás
Mas lançá-lo no vale.

O Professor
Desceu para o espaço 1, aproximando-se do Rapaz:
Ouve bem! Como estás doente e não és capaz de continuar, vamos ter de te deixar aqui. Mas é correto perguntar àquele que ficou doente, se se deve voltar para trás por causa dele. E o costume determina também que aquele que ficou doente responda: Não devem voltar para trás.

O Rapaz
Compreendo.

O Professor
Queres que voltemos para trás por tua causa?

O Rapaz
Não voltem para trás!

O Professor
Estás de acordo, então, em que te deixemos aqui ficar?

O Rapaz
Deixe-me pensar.
Pausa para reflexão.
Sim, estou de acordo.

O Professor
Chama do espaço 1 para o espaço 2:
Ele respon­deu conforme devia.

O Grande Coro e os Três Estudantes
estes descendo para o es­paço 1:
Ele disse que sim: Continuem!
Os Três Estudantes ficam parados.

O Professor
Continuem, não fiquem parados
Agora que decidiram continuar.

Os Três Estudantes ficam parados.

O Rapaz
Quero dizer uma coisa: Peço-vos que não me dei­xem aqui deitado, mas que me lancem ao vale porque tenho medo de morrer sozinho.

Os Três Estudantes
Não podemos.

O Rapaz
Parem! Eu exijo-o.

O Professor
Decidiram continuar e deixá-lo aqui deitado É fácil decidir o destino dele
Mas é difícil executá-lo.
Estão preparados para o lançar ao vale?

Os Três Estudantes
Sim.
Os Três Estudantes levam o Rapaz até ao estrado no espaço 2.
Encosta a tua cabeça ao nosso braço. Não faças força.
Nós levamos-te com cuidado.

Os Três Estudantes colocam-se à frente dele, tapando-o, na parte de trás do estrado.

O Rapaz
Escondido:
Eu sabia que ao fazer esta viagem
Podia perder a minha vida.
Foi a pensar na minha mãe
Que quis fazer a viagem.
Peguem no meu cantil
Encham-no com medicamentos
E levem-no à minha mãe
Quando regressarem.

O Grande Coro
Os amigos pegaram então no cantil
E queixaram-se dos tristes caminhos do mundo
E das suas leis amargas
E lançaram o rapaz.
Os pés bem juntos, lado a lado
Na beira do precipício
Lançaram-no com os olhos fechados
Nenhum mais culpado que o outro
E lançaram depois pedaços de terra
E pedras lisas
Por cima.

 

O que diz não

1

O Grande Coro
Acima de tudo, o importante é aprender a estar de acordo
Muitos dizem que sim, e no entanto ninguém está de acordo
A muitos nem sequer se pergunta e muitos
Estão de acordo com coisas erradas. Por isso:
Acima de tudo, o importante é aprender a estar de acordo.

O Professor no espaço 1, a Mãe e o Rapaz no espaço 2.

O Professor
Eu sou o professor. A minha escola é na cidade e tenho um aluno cujo pai morreu. Já só tem a mãe, que toma conta dele. Vou ter agora com eles e despedir-me pois em breve parto em viagem em direção às montanhas. Surgiu uma epidemia entre nós e é na cidade para lá das montanhas que moram alguns grandes médicos. Bate à porta. Posso entrar?

O Rapaz
Sai do espaço 2 para o espaço 1:
Quem é? Oh, é o professor, o professor veio visitar-nos!

O Professor
Porque é que não vens à escola há tanto tempo?

O Rapaz
Não pude ir porque a minha mãe adoeceu.

O Professor
Não sabia que a tua mãe também estava doente. Vai lá dizer-lhe por favor que eu estou cá.

O Rapaz
Chama para o espaço 2:
Mãe, está cá o professor.

A Mãe
Sentada no espaço 2:
Diz-lhe que entre.

O Rapaz
Entre, por favor.

Entram ambos no espaço 2.

O Professor
Há muito que eu não vinha cá. O seu filho disse-me que estava doente. Está melhor?

A Mãe
Não se preocupe com a minha doença, eu estou bem.

O Professor
Fico contente de a ouvir dizer isso. Vim despedir-me porque em breve parto numa expedição às montanhas. É na cidade para lá das montanhas que estão os grandes médicos.

A Mãe
Uma expedição às montanhas! Sim, de facto ouvi dizer que é lá que estão os grandes médicos, mas também ouvi dizer que é uma caminhada perigosa. E estava a pensar levar o meu filho?

O Professor
Isto não é viagem para uma criança.

A Mãe
Está bem. Espero que volte de saúde.

O Professor
Agora tenho de ir. Adeus.
Sai para espaço 1.

O Rapaz
Segue o Professor até ao espaço 1:
Tenho de dizer-lhe uma coisa.

A Mãe escuta encostada à porta.

O Professor
Que coisa?

O Rapaz
Quero ir consigo às montanhas.

O Professor
Tal como acabei de dizer à tua mãe
Esta viagem é difícil e
Perigosa. Não vais conseguir
Acompanhar-nos. Além disso:
Como podes deixar a tua mãe
Que está doente?
Fica. É completamente
Impossível vires connosco.

O Rapaz
É por a minha mãe estar doente
Que quero ir convosco, para lhe ir
Buscar medicamentos e instruções
Junto dos grandes médicos na cidade para lá das montanhas.

O Professor
E estarias tu de acordo com tudo o que te pudesse acontecer durante a viagem?

O Rapaz
Sim.

O Professor
Tenho de voltar a falar com a tua mãe.
Regressa ao espaço 2.

O Rapaz escuta encostado à porta.

O Professor
Voltei. O seu filho diz que quer vir connosco. Disse-lhe que ele não a devia abandonar estando você doente e que era uma viagem difícil e perigosa. Disse-lhe que era completamente impossível ele vir. Mas ele disse que tinha de ir à cidade para lá das montanhas buscar medicamentos e instruções para a sua doença.

A Mãe
Eu ouvi tudo. Não duvido daquilo que o rapaz diz que ele gostaria de fazer a caminhada perigosa consigo. Anda cá, meu filho!

O Rapaz entra no espaço 2.

Desde o dia em que
O teu pai nos deixou
Que só te tenho a ti
Ao meu lado.
Nunca estiveste mais tempo
Longe do meu pensamento nem da minha vista
Do que o tempo que precisei para
Preparar as tuas refeições
Tratar da tua roupa e
Arranjar dinheiro.

O Rapaz
É tudo como tu dizes. Mas apesar disso não há nada que me faça demover da minha intenção.

O Rapaz, o Professor, a Mãe
Vou (vai) fazer a perigosa caminhada
E trazer medicamentos e instruções
Para a tua (minha, sua) doença
Da cidade para lá das montanhas.

O Grande Coro
Eles perceberam que nenhum argumento
O podia demover.
Então o professor e a mãe disseram
A uma só voz:

O Professor, a Mãe
Muitos estão de acordo com coisas erradas, só que ele
Não está de acordo com a doença, ele exige
A cura da doença.

O Grande Coro
Mas a mãe disse:

A Mãe
Já não tenho forças.
Se tem de ser
Vai com o professor.
Mas volta depressa, depressa
Do perigo.

 

2

O Grande Coro
Os viajantes partiram
Em direção às montanhas.
Entre eles contava-se o professor
E o rapaz.
O rapaz não estava preparado para suportar tanto esforço:
Puxou demais pelo coração
Que exigia o rápido regresso a casa.
Ao chegar a madrugada no sopé das montanhas
Já quase não conseguia arrastar
Os pés cansados.

Entram no espaço 1: o Professor, os Três Estudantes e por fim o Rapaz com um cantil.

O Professor
Fomos rápidos a subir. Está ali o primeiro abrigo. Vamos descansar um pouco.

Os Três Estudantes
Nós obedecemos.

Sobem a um estrado no espaço 2. O Rapaz detém o Professor.

O Rapaz
Tenho de lhe dizer uma coisa.

O Professor
O que queres tu dizer?

O Rapaz
Não me estou a sentir bem.

O Professor
Não digas mais! Quem faz uma viagem destas não pode falar assim. Deves estar cansado porque não estás habituado a subir montanhas. Pára um bocado e descansa um bocado. Sobe para o estrado.

Os Três Estudantes
Parece que o rapaz está cansado da subida. Vamos perguntar ao professor.

O Grande Coro
Sim. Façam isso!

Os Três Estudantes
Para o Professor:
Ouvimos que o rapaz está cansado da subida. O que é que ele tem? Estás preocupado com ele?

O Professor
Não se sente bem, mas de resto está tudo em ordem. Está cansado da subida.

Os Três Estudantes
Então não estás preocupado com ele?

Pausa longa.

Os Três Estudantes
Entre eles:
Estão a ouvir? O professor disse
Que o rapaz só está cansado da subida.
Mas não o acham com um aspeto estranho?
Logo a seguir ao abrigo vem a passagem estreita.
Só com ambas as mãos agarradas às rochas
Se consegue passar.
Nós não podemos carregar ninguém.
Será que devíamos então seguir o grande costume e
Lançá-lo ao vale?
Chamam, para o espaço 1, com as mãos em forma de concha:
Ficaste doente da subida?

O Rapaz
Não.
Não vêem que continuo de pé?
Não acham que eu me sentaria
Se estivesse doente?

Pausa. O Rapaz senta-se.

Os Três Estudantes
Vamos dizer ao professor. Professor, quando há bocado te perguntámos sobre o rapaz, disseste-nos que ele só estava cansado da subida, mas ele agora está com um ar muito estranho. Até se sentou. É com horror que dizemos isto, mas já há muito que reina aqui o costume de lançar ao vale aqueles que não conseguem continuar.

O Professor
Querem lançar esta criança ao vale?

Os Três Estudantes
Sim, queremos.

O Professor
É um grande costume. Não me posso opor a ele. Mas o costume também diz que se deve perguntar àquele que ficou doente se ele acha que devemos voltar para trás por causa dele. O meu coração sofre muito por conta desta criatura. Quero ir ter com ele e prepará-lo com calma para o seu destino.

Os Três Estudantes
Faz isso então.
Colocam-se de frente uns para os outros.

Os Três Estudantes, o Grande Coro
Vamos perguntar-lhe (perguntaram-lhe), se ele quer (queria)
Que voltemos (voltássemos) para trás por sua causa
Mas mesmo que ele o peça
Nós não queremos (eles não queriam) voltar para trás
Mas lançá-lo no vale.

O Professor
Desceu para o espaço 1, aproximando-se do Rapaz:
Ouve bem! Já há muito que existe a lei que estipula que aquele que adoece numa viagem como esta deve ser lançado ao vale. Morre de imediato. Mas o costume também diz que àquele que ficou doente se pergunta, se se deve voltar para trás por sua causa. E o costume diz também que aquele que ficou doente responde: Não devem voltar para trás. Se eu pudesse estar no teu lugar, gostaria de morrer!

O Rapaz
Compreendo.

O Professor
Queres que voltemos para trás por tua causa? Ou estás de acordo que te lancemos ao vale como exige o velho costume?

O Rapaz
Após uma pausa para reflexão:
Não, não estou de acordo.

O Professor
Chama do espaço 1 para o espaço 2:
Voltem para baixo. Ele não respondeu conforme o costume!

Os Três Estudantes
Descendo para o espaço 1:
Ele disse que não.
Para o Rapaz:
Porque é que não respondes conforme o costume? Quem diz A também tem de dizer B. Quando, na altura, te perguntaram se estarias de acordo com tudo o que pudesse resultar da viagem, respondeste que sim.

O Rapaz
A resposta que dei foi errada, mas a vossa pergunta foi mais errada ainda. Quem diz A não tem de dizer B. Pode reconhecer que A estava errado. Queria ir buscar medicamentos para a minha mãe, mas agora eu próprio fiquei doente e portanto já não é possível. E quero regressar de imediato, tendo em conta a nova situação. Peço-vos que voltem comigo e que me levem a casa. A vossa aprendizagem pode esperar. Se há alguma coisa a aprender por lá, e espero que haja, só pode ser que numa situação destas se deve voltar para trás. E quanto ao grande e velho costume, não vejo que faça sentido. Preciso muito mais de um novo costume, que devíamos introduzir de imediato, nomeadamente o costume de pensar de novo perante cada nova situação.

Os Três Estudantes
Para o Professor:
O que é que fazemos?
O que o rapaz diz é sensato, apesar de não ser heroico.

O Professor
Decidam vocês o que fazer. Mas devo dizer-vos que, se voltarem para trás, vos irão cobrir de gargalhadas e vergonha.

Os Três Estudantes
Não é uma vergonha ele falar a favor de si próprio?

O Professor
Não. Não vejo nada de vergonhoso nisso.

Os Três Estudantes
Então vamos voltar para trás e não há-de haver gargalhadas nem injúrias que nos impeçam de fazer o que é sensato, e não há-de haver velho costume que nos impeça de assumir um pensamento correto.
Encosta a tua cabeça ao nosso braço.
Não faças força.
Nós levamos-te com cuidado.

O Grande Coro
Os amigos levaram então o amigo
E inauguraram um novo costume
E uma nova lei
E trouxeram de volta o rapaz.
Foram bem juntos, lado a lado
Enfrentando as injúrias
Enfrentando as gargalhadas, de olhos fechados,
Nenhum mais cobarde que o outro.

 

Bertolt Brecht
In Bertolt Brecht - Teatro 3, ed. Cotovia
26.03.09

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