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Naquele tempo

Este conjunto de artigos escritos entre 1988 e 1999, a que associei alguns inéditos elaborados durante o mesmo período, vem-se juntar a serie de colectâneas que comecei a publicar em 1980. Mas aparece também como o primeiro volume da serie em que, por amável deferência do Circulo de Leitores, se reúnem as colectâneas anteriores e as obras separadas que fui escrevendo desde a minha tese de licenciatura. A sequência está ainda em aberto, porque continuo a trabalhar no domínio da História, mas resume um caminho já longo, e por isso não poderá prolongar-se muito. Ninguém pode saber se terá mais algum número novo. Vai-se aproximando o momento em que deixará de haver a mediação das palavras e a Verdade me aparecerá cara a cara. Mas então deixarei de poder comunicá-la, porque cada qual tem de a descobrir por si próprio.

Não é meu propósito, porém, fazer um balanço. Apenas arrumar a casa, e abrir a porta aos visitantes. Quero com isto dizer: facilitar a consulta e tornar acessíveis alguns trabalhos actualmente difíceis de encontrar, nomeadamente as minhas teses de licenciatura e de doutoramento (que serão publicadas em tradução portuguesa). Para isso tento impor ao conjunto uma certa ordem. Não a da obra acabada, cuja pretensa completude seria sempre ilusória, mas aquela que resulta de, na arrumação global, e na adopção de um mesmo formato, se poderem evidenciar melhor os processos metodológicos que sempre procurei seguir, as fontes de inspiração comuns apesar da diversidade dos temas, as concepções teóricas em que me fui baseando. Gostaria também de tornar observável uma certa evolução do meu pensamento e das minhas preferências - resultado natural do amadurecimento que a vida e a pratica do ofício trazem consigo, para o bem e para o mal.

Na falta de uma obra unitária, de uma grande síntese que reunisse as contribuições parciais de tantos estudos de pormenor ou de um certo numero de sínteses provisórias, renunciando a uma obra que fosse como que o resumo da minha vida de explorador medieval, reúno as pecas do puzzle, agrupo-as por temas, de modo a salientar as suas afinidades, e acrescento mais alguns traços àquela inacabada composição que inspirava o titulo da minha colectânea anterior, Fragmentos de uma composição medieval. Fica assim em evidencia uma certa ordem temática, conceptual e metodológica, mas também o seu carácter construído. Como a «ordem» procurada por uma composição plástica que não pretende reproduzir a realidade, mas ser uma mediação simbólica que revela harmonias escondidas do mundo, que ajuda a fruir a realidade e que convida a explorá‑la por conta própria. Como qualquer obra de arte.

O carácter incompleto e inacabado da composição não reflecte, porém, a ordem, mas a sua inacessibilidade. Aqueles raros momentos em que julgamos vislumbrar o insondável mistério da totalidade são sempre provisórios e fugazes. Mas o exercício da busca da compreensão, que é uma forma de busca de sentido, vai-nos tornando mais atentos e preparando-nos para o defrontarmos.

É por isso que retomo aqui o título dado as crónicas que tenho vindo a publicar na revista História. Trata-se da tradução portuguesa do titulo dado por Trindade Coelho às suas recordações coimbrãs publicadas em 1902, e, ao mesmo tempo, a fórmula com que, na liturgia da Missa, se inicia a leitura do Evangelho. Pretendo assim não excluir do passado os episódios lúdicos e fortuitos da juventude nem aqueles a que se atribui um significado transcendental.

É costume arredar estes dois extremos do material normalmente usado pelo historiador, isto e, daquilo que se considera «importante». Quanto a mim, gostaria, precisamente, de os envolver também, para exprimir simbolicamente o propósito de conferir a minha pesquisa histórica uma relação com o presente a que só a consideração da condição humana na sua totalidade pode dar sentido. Quereria assim atribuir à Historia a primordial função de «guardiã do passado dos homens» que Ricoeur lhe atribui. O passado dos homens não foi só a sua vida pública. Foi também o jogo ou a luta de cada dia e aquilo em que eles acreditaram.

Desejaria, como Ricoeur diz também, "reabrir o passado para reavivar nele as potencialidades não cumpridas, impedidas, ou mesmo massacradas", particularmente aquelas que a proclamação do Evangelho reclama sempre que é ritualmente anunciado. Desejaria que as minhas explorações do passado não fossem viagens a um reino de sombras, nem mitificação de factos pretensamente privilegiados, mas revelação do que sempre de novo existe no passado, do que sempre de novo o traz até nós, do que sempre de novo nos impulsiona no presente, do que sempre de novo deveríamos transmitir a quem vier depois. Desejaria... Infelizmente os desejos ficam muitas vezes longe do seu cumprimento. Mesmo que me aproximasse deste ideal, nem por isso ele se comunicaria automaticamente a ninguém. Só a busca de cada um dos meus leitores o pode trazer à existência. Esse Ewiges neues de que falava Goethe só se torna realidade quando alguém o descobre.

No momento actual, o quadro nacional continua a ser, como sempre, o lugar privilegiado das minhas pesquisas. Mas ao preferir os pontos de vista cultural e antropológico para orientar o olhar com que examino as fontes, deparo com exigências a que a documentação nacional muitas vezes não responde. Dai ter de alargar cada vez mais o quadro das fontes ao âmbito peninsular ou ate europeu, quando os testemunhos nacionais se mostram insuficientes para fundamentar as interpretações que me parece dever propor. Ao salientar esta orientação disciplinar, estou, desde já, a exprimir a prevalência que tenho vindo a conceder ao mental sobre o social e o económico. Enquanto que nos meus estudos sobre a nobreza medieval e na Identificação de um país me inspirava sobretudo nas ciências sociais para descobrir as estruturas da sociedade portuguesa (embora a cada passo tivesse, já então, de apelar para interpretações baseadas na historia da cultura e das mentalidades), são agora cada vez mais os fenómenos mentais que reclamam a minha atenção. Se, nesta colectânea, os problemas da historia social, nomeadamente de historia da nobreza e da cavalaria vila, aparecem ainda com algum relevo, e se apresento aqui alguns textos de síntese recentes em que procuro definir o «estado da questão», devo confessar que não me parecem trazer nenhuma contribuição verdadeiramente nova do ponto de vista científico, para além do que já tinha exposto em trabalhos anteriores. São respostas a solicitações que não podia rejeitar e cujo mérito residira, porventura, em clarificar a expressão das minhas ideias e em evidenciar conexões que em trabalhos anteriores podiam passar despercebidas de alguns leitores. Pretenderam também salientar o mérito de investigações alheias no mesmo campo.

Por isso, deste conjunto, salientarei apenas o estudo sobre o suporte social da Universidade portuguesa, que me parece trazer alguma novidade relativamente a maneira como a historiografia tradicional entendia o papel que o ensino «superior» desempenhava na sociedade portuguesa durante os séculos XIII a XIV.

Quer isto dizer que atribuo maior importância ao conjunto de artigos em que me situei mais perto da perspectiva mental, e que reuni no conjunto sobre «O corpo, o sangue e as lágrimas». De facto, foram indícios de carácter «mental» que me levaram a mostrar que tipo de estrutura do parentesco está subjacente ao Cantar dos infantes de Lara ou que género de matrimónio é pressuposto pelo uso do termo barregao e pelas regras de conduta acerca da barregania. Já se vê a relação destes problemas com o da sexualidade e da afectividade, por um lado, e com o do corpo, por outro. Prolongo, assim, o estudo sobre o corpo e a doença que apresentei nos Fragmentos de uma composicao medieval, dedicando‑lhe, agora, uma reflexão sobre a história das epidemias. Continuo no mesmo campo ao estudar a expressão da emotividade por meio de um artigo sobre as lágrimas. Aqui, porém, o corpo torna-se o lugar em que se tocam os extremos da matéria e do espírito, do divino e do humano, enquanto expressão da emoção mística. Encontrar-se-á outra vertente deste paradoxo no estudo sobre o amor sagrado e o amor profano, de que me ocupo ao tratar da sexualidade e a afectividade na Idade Media. Que os leitores mais exigentes perdoem o facto de em algumas destas contribuições me ter limitado a aspectos acessíveis ao publico não especializado a que se destinavam.

As incursões que assim tento fazer no mundo subterrâneo do corpo e da sexualidade pretendem atingir os níveis mais profundos da mentalidade medieval. Numa outra série de estudos, que reuni sob o título de «As palavras, as ideias e as crenças», viajo num nível mais superficial do mesmo território, mas também povoado por ideias estruturantes. É o que acontece com os compromissos sociais expressos pela feudalidade, com o desenvolvimento da noção e da expressão da «prática» na historia das ideias entre 1250 e 1350 (por oposição a «teoria»), com os preconceitos sociais que decerto condicionaram a comunicação da mensagem cristã nos séculos IV e V, com o mito milenarista, tão importante para a vivencia medieval do tempo, com a concepção medieval da cidade, com a concepção dos espaços longínquos e do mar na visão do mundo dos séculos XII a XV. Tudo isto são áreas em que se revelam as formas como o homem medieval tentava organizar a sua relação com os outros, quer com os outros homens, na constituição da sociedade, quer com o mundo em geral, enquanto espaço preenchido por seres desconhecidos, ou enquanto povoado por seres e forcas susceptíveis de dominar por meio da acção pratica. Deste conjunto de estudos exclui aqueles que se referem ao mundo invisível, que reservo para um volume inteiramente dedicado a essa temática.

Uma outra forma de dominar o mundo e a que se traduz na política. Os estudos aqui reunidos sob a epígrafe de «O poder» não se inspiram só na história das mentalidades, mas também na história propriamente «política, na história social, na história militar e ate na história erudita. A primeira inspira os textos sobre a coroação dos primeiros reis de Portugal e sobre as cidades como sedes do poder. Seguindo G. Duby, aponto neste ultimo uma perspectiva que tem estado demasiado ausente dos estudos dos especialistas da história urbana, normalmente mais preocupados com os aspectos económicos e sociais do que com os aspectos políticos. A história erudita fornece a base para a investigação sobre a Cúria regia de 1211. A história social constitui a base interpretativa da maneira como três sectores diferentes da sociedade portuguesa viam o nosso primeiro rei. A história militar é a que melhor explica o papel das autonomias fronteiriças na formação da nacionalidade. Enfim, a segunda, a história propriamente política, na vertente de história das instituições, traça um quadro para o estudo sobre as origens do Estado português; na vertente de história narrativa, inspira a síntese sobre o triunfo da monarquia portuguesa nos anos cruciais de 1258 e 1264. O artigo sobre «a nova face» de Afonso Henriques constitui um dossier que resume as contribuições dos historiadores recentes acerca da personalidade do nosso primeiro rei e da sua actuação politica.

Enfim, não abandono nunca o plano da crítica textual, base de toda a interpretação que se pretende rigorosa dos documentos medievais. A importância do fundamento literal revela-se plenamente quando sobre ele se apoia não só o estabelecimento dos factos, mas também o conhecimento de fenómenos de ordem social e cultural. Por isso me pareceu que merecia a pena voltar aos livros de linhagens e mostrar a perene importância da historia erudita. Foi a razão que me levou a fazer o ponto de situação quanto à transmissão textual das linhagens, respondendo a certas críticas e reformulando opiniões minhas que estudos alheios mostraram infundadas.

Resta-me advertir que todos os trabalhos publicados nesta colectânea foram revistos e actualizados. Nalguns deles introduzi alterações importantes. Devem, pois, preferir-se estas versões em vez das que foram publicadas anteriormente.

Não queria terminar este prefácio sem uma palavra de agradecimento aos leitores que com tanto carinho tem recebido os meus escritos, e aquele que foi o primeiro mediador entre mim e eles, o Sr. António Manso Pinheiro, como proprietário da Estampa. Foi ele que, com toda a generosidade, me entusiasmou a editar a primeira colectânea de trabalhos; e a ele que devo a publicação da parte mais importante da minha obra. Se não fosse a receptividade do público, plenamente demonstrada no número de edições que a maioria dos meus trabalhos já teve, não se justificaria o empreendimento que agora devo ao Circulo de Leitores. Assim, a reunião dos meus escritos numa serie única representa ainda um diálogo com eles e com os universitários a quem os meus trabalhos têm servido de apoio ou de inspiração. Sinto um prazer ainda maior por verificar que eles suscitaram investigações novas (que em não pequenos pontos os corrigiram) e que a pesquisa sobre temas que lancei, ou sugeri, renovaram muitas das perspectivas da história medieval de Portugal. Não me compete fazer um balanço acerca da minha contribuição científica para a História medieval de Portugal. Gostaria que um dia alguém o viesse a fazer, não por ser meu, mas porque os balanços têm uma função crítica indispensável para o progresso da «arte». Mais tarde ou mais cedo, as minhas contribuições tornar‑se‑ao superadas. Será cada vez mais difícil encontrar nelas aquele Ewiges neues que fascinava Goethe e que aqui convido os meus leitores a procurar. É isso o que verdadeiramente importa no estudo da Historia.

 

José Mattoso
In Naquele tempo, ed. Temas e Debates
02.06.09

Capa

Naquele Tempo

Autor
José Mattoso

Editora
Temas e Debates

Páginas
568

Ano
2009

Preço
€ 22,05

ISBN
978-989-6440-527











































































































































 

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