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D. Manuel Clemente

«Há uma desmesura que nos explica como portugueses»

D. Manuel Clemente

Presença frequente em programas católicos de televisão ou rádio, D. Manuel Clemente publicou três livros nos últimos meses: “Portugal e os Portugueses”, 1810-1910-2010, Datas e Desafios” (ambos na Assírio & Alvim) e “Um Só Propósito – Homilias e Escritos Pastorais” (na Pedra Angular). Neles trata as artes de ser português, os desafios actuais o país, a relação da Igreja com a cultura.

Nascido em Julho de 1948, o actual bispo do Porto já publicou vários livros como historiador, área em que se formou. Capaz de escrever sobre Manoel de Oliveira ou poesia, literatura ou novas tecnologias, foi o primeiro bispo a publicar uma mensagem no YouTube. E é, desde 2005, presidente da Comissão Episcopal para a Cultura (...).

Em Novembro, o Papa encontra-se com artistas de todo o mundo. Pode acontecer em Portugal um encontro com bispos e artistas?
Pode e deve. O mundo da arte, da literatura, da criação, é particularmente sensível ao tempo, à interrogação. E tenta dar uma resposta plástica, literária, musical. Estar atento ao mundo da criação artística é estar atento à realidade, ao que cada tempo nos sugere.

Um dos diagnósticos das últimas décadas é que a Igreja perdeu a relação com os artistas...
Numa sociedade como a nossa, os únicos locais onde havia disponibilidade para alguém se dedicar à escrita, á composição musical ou plástica eram os âmbitos eclesiais. Era daí que vinham as propostas de criação para fazer igrejas ou decorá-las, para a música religiosa. O próprio teatro europeu está ligadíssimo aos mistérios medievais. O que aconteceu entretanto foi a secularização da vida. Coisas do âmbito religioso estrito vão, a pouco e pouco, passando para a esfera individual. Não acho que alguma vez se recupere ou deva recuperar o quadro institucional de outras épocas, em que os meios eclesiásticos eram os meios da cultura. É óptimo que isso tenha passado para as pessoas em geral e não é por isso que [a arte] é menos religiosa. Isso não dispensa as comunidades cristãs de enriquecerem a sua expressão cultural e serem criativas. Tudo o que seja intercâmbio nestes vários níveis da cultura, em que as fronteiras entre o sagrado e o profano se diluem, é importante, oportuno e é um ganho.

Num dos livros fala do anticlericalismo. Aponta razões nacionais, mas há também marcas estrangeiras, como a Revolução Francesa. Há um anticlericalismo português?
Clericalismo e anticlericalismo são fenómenos coexistentes e próprios de uma sociedade confessional. A cristandade presumia que toda a sociedade era católica. A partir dos séculos XVII e XVIII, começa a dar lugar a esta sociedade, em que cada um foi requisitando para si a capacidade de decidir. O que embatia com a sociedade clericalmente tutelada. Esse anticlericalismo vai paredes-meias com a afirmação da autonomia. Outra vertente faz parte da exigência dos crentes de que aqueles que têm mais responsabilidades na Igreja também procedam de maneira mais conforme com essas responsabilidades. Já no século XVI isto se encontra numa figura tão crente como Gil Vicente, na crítica ao clero, que tem a ver com o contraste entre o que a pessoa se propõe e o que pratica. Há ainda quem tenha uma visão secularista da sociedade, que não quer qualquer espécie de clericalismo.

Onde coloca os conflitos de reis portugueses com Roma ou do Marquês com os jesuítas? Este último não é decisivo?
Faz parte de outra coisa que é a afirmação do Estado. Houve problemas com entidades religiosas, que resistiam a essa intromissão directa do Estado, da Coroa, no domínio público. Em Portugal, com os jesuítas, depois com as ordens religiosas a seguir ao liberalismo. Voltou a acontecer com a Primeira República, quando o grupo mais radicalizado que tomou o poder, com a Lei da Separação de 1911, tentou reduzir o poder do clero.

No final da Monarquia, há católicos que tentam ser ponte entre dois mundos em conflito: Abúndio da Silva, o Conde de Samudães, a Sociedade Católica, a “Voz de Santo António”...
E muita gente, aquilo a que se chama o Movimento Católico...

Essa gente acabou marginalizada pelos dois lados...
Acabaram por semear o futuro. São pessoas que compreendem que a sociedade e a Igreja não coincidem.

E afirmam a separação Igreja-Estado?
Certamente. Como eram católicos, a ligação a Roma também era muito importante, porque lhes assegurava externamente a liberdade que queriam ter em relação ao governo e ao Estado. Porque o liberalismo, contrariamente ao que se pudesse pensar, reivindicou para si a nomeação de todos os responsáveis de todas as paróquias do país. Essas figuras entendiam que, para ser consequente com a sociedade liberal, o Estado devia permitir aos católicos organizados uma maior liberdade na vida religiosa. Essa extinção Igreja-mundo era muito difícil de perceber [na época], mesmo entre intelectuais e mesmo em Roma.

Fátima tem “sucesso” porque a devoção mariana está presente no sentir português?
Sim, mas Fátima não é a primeira. Em 1904, comemoraram-se por todo o país os 50 anos da definição do dogma da Imaculada Conceição. Houve concentrações de centenas de milhares de pessoas, como acontece hoje em Fátima.

O que é que isso traduz da alma portuguesa?
É uma devoção quase nacional. A sensibilidade portuguesa é muito mariana, no sentido em que a relação com Deus e com Jesus, antes e depois da origem da nacionalidade, está sempre marianamente referida. Quando vem a Restauração [de 1640], o padre António Vieira identifica a Imaculada Conceição com a restauração do mundo e a recriação de Portugal. Quando chegamos aos séculos XIX e XX, reparamos que a vontade de regeneração de Portugal – o sentimento genérico da sociedade portuguesa até aos nossos dias – pode ter afirmações de tipo esquerdista, eliminando as causas da decadências, e outra católica, que diz que Portugal renascerá quando for outra vez cristão e mariano.

A regeneração tem a ver com o que escreve em “Portugal e os Portugueses”: «Tanta gente em tão pouco espaço só pode espraiar-se numa geografia universal»? Há essa nostalgia da regeneração e do Portugal que atravessou os mares?
Mesmo em Quinhentos, tirando alguma euforia inicial, o próprio Camões admira-se com o que pode fazer a “pequena casa portuguesa”. Rapidamente se repara que não estamos à altura de tanta coisa. Esta mescla de se ter feito muito, de não se conseguir aguentar tanto e de se contradizer tantíssimo, está sempre presente na história portuguesa. Um povo que teria um milhão de habitantes no princípio do século XVI, com cem mil homens disponíveis, que vai deste canto da Europa até à quarta parte nova – o Brasil, depois a Ásia – é uma coisa tão desmesurada que fica sempre o sentimento de que somos gente especial. Porque nos calhou a nós? A argumentação geográfica – estamos numa ponta da Europa – não esvazia o sentimento de que há uma desmesura que nos explica. Ainda hoje, Portugal são cinco: de Leria, para cima, de Leiria para baixo, Madeira, Açores e a diáspora. E com muitas subdivisões. Em qualquer acontecimento, há uma certa decepção do que se faz, uma vontade de se fazer e uma nostalgia de uma grandeza que nunca se atingiu. Isto é o português. A saudade – que tem sentimentos congéneres – vem desta desmesura. As pessoas têm um ideal para o país que é muito maior do que o seu esqueleto.

A Igreja Católica em Portugal sempre teve necessidade de se confrontar com um outro: o mouro, o judeu, o liberalismo, a República, o comunismo em 1975. Hoje é a laicidade?
Sim e por isso o desafio é maior. O desafio de outras épocas, mal resolvido sempre que implicou a exclusão do outro, é identificável. Hoje passa dentro de nós próprios: os grandes debates são interiorizados e temos que ligar o sentimento de autonomia individual, que nos faz contemporâneos, com uma tradição que, no caso de sermos católicos, queremos assumir. Estes debates requerem uma resposta mais cultural do que sociológica. Já não há “batalhões de Cristo Rei”.

Escreve também, no notável texto de abertura de “Portugal e os Portugueses”, sobre a capacidade de adaptação dos portugueses e a incapacidade de deixarmos de ser quem somos. Afinal, quem somos?
Assumo uma ideia do António José Saraiva, nas “Reflexões sobre a Cultura Portuguesa”, quando nos compara a um fruto de polpa macia e caroço duro. Somos capazes de absorver tudo à volta, mas temos cá dentro uma acumulação de gerações e povos – isto foi sempre o fim do mundo, antes de ser o início de outro. Tudo aqui sedimentou. O que nos define é essa capacidade de absorver sem deixarmos de sermos nós. [Emigrantes] da segunda ou terceira geração em Paris, São Paulo ou em Toronto, vivendo em meios tão diferentes. São todos iguais na capacidade de permanecerem os mesmos.

É nesse sentido que diz também que a relação com Portugal não é geográfica e tem uma matriz bíblica?
Muito bíblica. O povo judaico foi sempre nostálgico do tempo do rei David, de ter sido uma realidade imensa. Nós estamos assim: a nossa matriz bíblica é fortíssima, alongada também pela diáspora. A nossa terra também é pequena, em relação aos nossos sonhos. Temos sempre a ideia de que nos vamos reencontrar e realizar, finalmente, o Quinto Império.

Escreve que da poesia vem a nossa disponibilidade para o milagre. Somos poetas e supersticiosos ou esta é uma forma poética de cruzar a teologia e as artes?
É isso, mais do que a superstição. A superstição e a magia retêm na impossibilidade e em cativeiros interiores. A poesia é o contrário, é o domínio que toma o real, não para o constatar mas para o fabricar. É difícil estar numa conversa qualquer sem entrarmos no campo da imaginação e do que poderíamos ser.

 

Entrevista conduzida por António Marujo
Fotografia: Fernando Veludo
In Público (Ípsilon), 25.09.2009
27.09.09










































































































































































































 

 

 

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