Espiritualidade
A maldade das «boas pessoas»
"Espelho meu - A leitura diária do Evangelho pode mudar a vida", de Gabriel Magalhães, é um dos novos volumes da coleção "Poéticas do viver crente" que a Paulinas Editora lança a 18 de fevereiro nas livrarias.
O Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura conclui a apresentação de excertos da obra, que podem ser lidos nos textos indicados em "Artigos relacionados".
A maldade das «boas pessoas»
Existe uma figura arquetípica da cultura portuguesa que é a «boa pessoa». Todos nós ouvimos, todos os dias, coisas como esta: «Fulano [ou Sicrano] é muito boa pessoa.» Sei que, de mim mesmo, haverá gente que diz: «É boa pessoa.» Durante muitos anos da minha vida, fui uma «boa pessoa» muito militante da sua bondade. Hoje em dia, nem toda a gente dirá isso de mim.
Convém talvez recordar que houve quem não considerasse Jesus, no seu tempo, como uma «boa pessoa». Julgavam-no pretensioso porque se fazia igual a Deus (João 10,33). Seria curioso escutar todos os comentários dos seus conterrâneos de Nazaré quando, no templo da sua cidade de origem, Jesus se proclamou como o ungido por Deus (Lucas 4,16-21). Repetimos: a figura de Jesus não corresponde ao nosso paradigma da «boa pessoa». (...)
Se toda a gente achar que nós somos «muito boas pessoas», decididamente algo deve estar mal na nossa vida. Provavelmente, se isso acontece, é porque o nosso comportamento se apresenta mais moldado aos preconceitos que nos rodeiam, do que propriamente aos mandamentos que Jesus nos deu. Se formos cristãos a sério, somos sempre um pouco escandalosos.
Façamos, pois, da nossa vida um escândalo. Mas atenção: um escândalo de bondade, um escândalo de amor, um escândalo de fé. Não estou a pensar em escândalos vanguardistas, ou de vestuário: esses constituem um modo de tudo continuar na mesma de uma maneira diferente. Eu refiro-me, sim, àqueles comportamentos estranhos que levam os outros a pensarem que nós somos «parvos».
Porque, quando se dá esmola, quando se é generoso a fundo, quando tudo se perdoa amplamente, muitas vezes é isso que pensam, ou podem pensar de nós: que somos «parvos». Pelo amor de Deus, não tenhamos medo de parecer «parvos»: indo pelo caminho da nossa parvoíce, chegaremos à nossa felicidade. Devemos ter mais medo de sermos considerados «boas pessoas» do que de sermos considerados «parvos».
Normalmente, as «boas pessoas» são o que são por ambição ou por insegurança. A sua bondade omnipresente, ou revela um desejo de trepar socialmente, ou então configura o reflexo de uma vergonha, de uma timidez, que leva o sujeito a tudo fazer para ser benquisto da estrutura social. Eu fui uma «boa pessoa» do segundo tipo. De qualquer modo, em ambos os casos o sujeito acaba por se fiar mais nas estruturas sociais do que em Deus.
No fundo, é isso que está errado nas «boas pessoas»: sem darem por ela, divinizam as estruturas sociais em que se integram, chegando mesmo a aceitar os erros, as podridões da sociedade que lhes coube. Pactuam com muita coisa que está mal neste mundo. E fazem isso porque acreditam mais nos poderes de uma cumplicidade com a esfera social do que nos efeitos de uma cumplicidade com Deus. (...)
Contudo, eu não tenho nada de muito grave contra as «boas pessoas»: frequentemente, são melhores do que os seres humanos normais. Simplesmente, não são um modelo de perfeição, ao contrário do que se costuma pensar. Representam um modo incompleto de bondade - tão condicionado pela sociedade quanto pelo Espírito. E, em muitos casos, é preciso ter cuidado com elas.
Gabriel Magalhães
In Espelho meu, ed. Paulinas
© SNPC |
23.02.13
Espelho meu
Autor
Gabriel Magalhães
Editora
Paulinas
Ano
2013
Páginas
128
Preço
9,90 €
ISBN
978-989-673-286-8
O cultivar da insegurança
O direito ao desânimo
Espiritualidade: "Espelho meu - A leitura diária do Evangelho pode mudar a vida"