A teologia visual da beleza
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A propósito de uma obra de arte sacra

O Tríptico do Espírito Santo, na Capela de S. João Baptista, em S. Roque

1. A capela de S. João Baptista na Igreja de S. Roque em Lisboa é, no seu conjunto, uma obra prima da arte europeia, tanto pela sua erudição estilística como pelo forte sentido de unidade entre a arquitectura e as artes decorativas, a teologia e a expressão artística, o poder de emoção estética e a funcionalidade do espaço de culto. Podemos olhá-la segundo o conceito de obra de arte total.

O tríptico de painéis, a que aqui fazemos referencia, concebido pelo pintor Agostino Masucci (1), é composto por três cenas ou mistérios evangélicos. Ao centro está o Baptismo de Jesus no rio Jordão, pela mão de João Baptista, cena que integra uma representação da Santíssima Trindade. O gesto do Pai, entre as nuvens de um céu aberto, prolonga-se pelo Espírito Santo, na representação das suas formas simbólicas e sacramentais, como pomba, raio de luz e finalmente água derramada sobre o Filho, definindo assim um eixo de forte verticalidade descendente, como eixo principal da capela. À direita e à esquerda do painel central, como antecedente e conseqüente do mistério do Baptismo, estão representados os mistérios da Anunciação do Anjo a Maria e da Descida do Espírito Santo sobre Maria e os Apóstolos, em Pentecostes. O Espírito Santo, triplamente representado sob a figura de pomba, unifica as três cenas de teofania ou de manifestação da presença de Deus, numa envolvência que ultrapassa a organização cronológica das cenas bíblicas, e que a Capela pela abstracção e materialidade da arquitectura, pela sua espacialidade habitada, vai reforçar e transformar em acontecimento intemporal.

 

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Capela de S. João Baptista, na Igreja de S. Roque em Lisboa.

Arquitecto Luigi Vanvitelli. Meados do séc XVIII.

 

2. A questão contemporânea da filosofia da arte é a da possibilidade de definição do próprio conceito de arte (2), e nesse contexto pode parecer ainda mais volátil abordar uma obra de arte especificamente litúrgica e cristã. Também se valoriza, hoje, a arte como processo que inclui os momentos de criação e de recepção, e não apenas a obra considerada em si mesma, como objecto isolado, passível de pertencer ao domínio definido pelo conceito “arte”. Assim tornamo-nos hoje mais conscientes da possibilidade da recepção crente de obras de arte produzidas pelo génio artístico, na sua plena autonomia (3). Do mesmo modo, a obra de um artista crente, pode oferecer-se-nos impregnada de discrição crística (4).

 

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Modelo da Capela. G. Palmes, ebanista; Fochetti e Voyet, pintores;

G. Nicoletti, miniaturista.

 

No caso do tríptico do Espírito Santo, parte integrante da Capela de S. João Baptista, estamos perante uma obra atravessada por uma intencionalidade cristã, explícita na sua iconografia e funcionalidade, e ao mesmo tempo indissociável da expressão puramente plástica e artística. No entanto, pode ser que o seu significado para o mundo da arte ultrapasse este particularismo. De facto, a narrativa cristã é inspiradora da história da arte ocidental, não apenas de forma extrínseca, pela sua riqueza figurativa, mas também como matriz cultural legitimadora da própria arte. Este tipo de reflexão remete certamente para o mistério da Encarnação, meditação acerca do Verbo de Deus que se faz carne e figura visível, e no entanto, na correlação própria dos mistérios cristãos, também a Criação e a Redenção devem ser olhados como mistérios de figuração, refiguração e transfiguração da realidade.

 

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Desenho à pena e lápis, Luigi Vanvitelli.

 

3. Proponho assim dois momentos complementares de atenção à obra de arte: O primeiro será no sentido de uma distanciação que nos permite fazer uma “leitura” iconográfica e exegética da obra, digamos, à luz dos mistérios históricos da Redenção. O segundo será um movimento de aproximação à obra, acompanhado por uma forma de atenção específica que designaremos por aproximação fenomenológica e onde a manifestação dos elementos do mundo, ou do mundo na sua elementaridade originária e intemporal, pode enriquecer o conceito teológico de Criação. A primeira etapa tem uma forte dimensão mental, estabelece a obra no seu significado iconográfico e de referência à tradição cristã. Na segunda, deixamos que a obra nos afecte na sua dimensão de “coisa”, na sua corporeidade, matéria e presença real, trazendo estas dimensões para um plano igualmente importante da constituição do seu significado. Os dois olhares que aqui distinguimos são complementares e devem fundir-se para uma experiência total da obra.

 

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A Anunciação. Mosaico de Mattia Moretti transpondo uma pintura de

Agostino Masucci.

 

De facto as experiências fundantes do cristianismo, que nos ajudam a interpretar a nossa própria experiência, chegam-nos, através da Escritura e da Tradição, sob as formas de textos e imagens que se referem, interpelam e interpretam mutuamente. Quem conhece, por ler ou ouvir com frequência, os textos centrais da tradição, não pode deixar de os ouvir interiormente enquanto vê as imagens correspondentes, ou de recordar essas imagens quando lê os textos que as referem. Objectivamente até, na relação deste tríptico com os textos que refere, nem o texto bíblico é isento de imagens, nem a imagem é isenta de inscrição literal do texto bíblico. Na faixa que envolve a cruz, na mão de João Baptista inscreve-se o “[Ec]ce agnus Dei” que S. João evangelista põe na boca do santo precursor em Jo 1, 36.

 

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O Baptismo de Cristo.

 

No entanto, uma obra de arte não é um livro. A sua força passa por uma outra dimensão, que pertencendo à arte de todos os tempos, Kandinsky chamou o “elemento propriamente artístico” (5). O recurso à fenomenologia abre-nos um outro modo de olhar os painéis, na atenção dada à obra como fenómeno que se manifesta e se dá à percepção e consciência do espectador, como uma presença que o afecta. A fenomenologia, como método, pretende cultivar uma atenção, ou intencionalidade capaz de ultrapassar o preconceito que temos das coisas e acolhê-las em si mesmas.

 

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Pentecostes.

 

Aplicada à arte, a atitude fenomenológica pede um silenciamento activo e receptivo do espectador, como condição de possibilidade de manifestação daquilo que com frequência o hábito e o preconceito anulam e passa, desapercebido à atitude natural. Suspendemos o exercício de leitura e compreensão mental da obra de que anteriormente tratamos, procuramos anular, momentânea e metodologicamente, o plano dos significados iconológicos, que em geral apreendemos primeiro, para dar atenção às figuras como formas, em si mesmas carregadas de estímulos, à emoção da cor e da luz, à materialidade da obra, à sua execução, à textura e brilho das superfícies. Num primeiro momento, aquilo que julgávamos ser familiar aparece como estranho, mas essa estranheza é apenas indicadora do rompimento do preconceito, da saída de si ao encontro do desconhecido, como princípio de conhecimento e de verdade.

 

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Pormenor da Anunciação.

 

Surpresa! O que supúnhamos ser pintura não o é. À medida que entramos na capela e nos aproximamos dos painéis, vamos percebendo que os campos de cor são preenchidos por minuciosas reticulas de mosaico, em materiais diversos e surpreendentes escalas cromáticas, ondulantes, seguindo direcções variadas, sempre em favor da definição de formas que as transcendem, sem nunca perder a dignidade da pedra e do esmalte, que enquanto mosaico, lhe dá corpo e espessura. Trata-se, de facto, da obra do mosaicista Mattia Moretti transpondo pinturas de Agustino Masucci.

 

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Anjo. Pormenor da Anunciação.

 

4. A progressiva concentração da atenção, cada vez mais próxima e penetrante na materialidade da obra, conduz ao mundo arcaico, de cor e matéria, anterior à lógica do sentido, mas não desprovida de sentido meta-lógico, que um autor contemporâneo designou por “estofo da arte” (6). Se numa primeira abordagem a obra de arte suscita a linguagem, agora ela pede silêncio e contemplação. A obra pede para se manifestar, por si mesma, no seu silêncio. O drappé já não é “tecido” mas pretexto para o trabalho da forma, da cor e da luz. A “leitura” da obra tinha-nos deixado à superfície do fenómeno artístico, mas agora o significado ganha corpo e ressurge como presença, na convergência mútua e alterada do sentido e do corpo. A arte levou-nos ao limiar da re-presentação onde ela é a-presentação.

 

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Pormenor do Baptismo de Cristo.

 

Seremos certamente levados a dar passos para diante e para trás oscilando, diante da obra, entre estes dois pólos da nossa atenção. E se acontecer envolver-nos na celebração litúrgica, que é de facto a dimensão performativa da obra em questão, e sem a qual não pode ser compreendida na totalidade, habitaremos a obra por dentro, ao modo do personagem dos Sonhos de Akiro Kurosawa que se passeia dentro da paisagem de cor de um quadro de Van Gogh (7).

 

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Pormenor do Baptismo.

 

5. Gostaria de sugerir que o valor da arte vai muito além da sua função de representação, que em si mesma não é desprezível. A representação figurativa joga um papel importante na fixação da memória, pessoal e colectiva, as imagens artísticas já cumpriram na história a função de catequese dos iletrados (8), e continuam a cumprir a função de construção da imaginação religiosa. No entanto, a religião cristã não faz apenas um uso extrínseco da arte, como memória da sua narrativa ou suporte da sua doutrina.

 

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Pormenor com aproximação que permite a percepção do mosaico.

 

A arte não é feita apenas para guardar a memória, antes guarda uma presença imemorial. Por isso a fé cristã tem necessidade da arte para ir mais além das suas representações, porque o seu mistério consiste numa presença, ainda que a arte não possa senão dispor e conduzir à fronteira da sua manifestação. A representação é meramente indicativa, e por vezes distractiva. É o limiar de silêncio a que a obra de arte dispõe a pessoa - e de modo ainda mais notável, sintoniza num mesmo sentir toda uma comunidade – que cria as condições de acolhimento gratuito de uma presença que transcende toda a mediação. Também é verdade que a Palavra bíblica, e neste caso a sua imbricação na imagem figurativa, qualificam esse silêncio. Por isso, em todos os tempos, a Igreja buscou mediações artísticas da espiritualidade e na celebração litúrgica do seu mistério, sempre nesta tensão entre o silêncio e a Palavra.

 

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Pormenor do mosaico.

 

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Pormenor.

 

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Pormenor.

A maior parte destas imagens não seria possível sem o trabalho

fotográfico de A. Homem Cardoso para: Maria João Madeira

Rodrigues, A capela de S. Roque e as suas colecções,

Inapa, Lisboa, 1989.

 

(1) “Os painéis laterais, Anunciação e Pentecostes, são indiscutivelmente de Masucci (...) todavia, considerando a documentação disponível admite-se a possível intervenção de Corrado e Ballari”, Maria João Madeira Rodrigues, op. cit. p. 50. «

(2) "É lógicamente impossivel definir a arte como o quiseram fazer as teorias estéticas tradicionais", in Danielle Lories, L’esthétique et la philosophie de l’art, de Boeck , Bruxelles, 2002, p. 179, acerca do pensamento de Morris Weitz, autor da estética analítica. «

(3) O Padre M. A. Couturier, dominicano, mentor da revista L’Art Sacré, preocupado com a falta de qualidade artística das obras da Igreja no início do s. XX dizia : « antes dirigir-nos a homens de génio sem fé que a crentes sem talento » ; « toda a verdadeira arte é sagrada ». Antoine Lion (ed.), Un combat pour l’art sacré, Actes du Colloque de Nice, 2004. «

(4) Jean Collet, Figures christiques au cinema, Centre Sèvres, Paris, distingue, aplicando ao cinema, entre representações da vida de Cristo e representações de vidas crísticas, assim designadas por referência a Jesus Cristo mas próprias de todos os tempos, e ainda com alguma conotação de discreta quotidianidade. «

(5) Ou « elemento puramente pictural ». Kandinsky descreve a sua experência, em Moscovo no ano de 1895, diante do quadro « Molho de feno » de Monet, notando o impacto inesquecível das cores e formas antes de identificar o objecto representado, e como esta experiência marcou a sua pintura. Hans Rainer Sepp, « Kandinsky, Husserl, Zen », in La part de l’oeil, 407, 1991. «

(6) Pierre Rodrigo, L’Étoffe de l’art, DDB, Paris, 2001. «

(7) Sobre a tensão do olhar que vê e é visto, habita e é habitado pelo que vê, numa perspectiva antropológica : George Didi-Huberman a propósito da obra do artista norte-americano James Turrell, in, L’homme qui marche dans la couleur, ed. Minuit, Paris, 2001 ; Caminhar sobre o olhar do céu, p. 63. «

(8) Por exemplo, Gregório o Grande, Epistola Sereno episcopo massiliensi (c.600) « Porque o que a escrita aporta aos que lêem, a pintura oferece aos analfabetos que a olham» in, Daniele Menozzi, Les images, l’église et les arts visuels, Cerf, Paris, 1991, p. 75. Sobre as Bíblia pauperum de Krumau (1350) e Klosterneuburg (1330), edição ilustrada in Most beautiful Bibles, Taschen, Köln, 2009, pp.216, 222. «

 

João Norton de Matos, sj
Excertos seleccionados e revistos a partir do artigo, com o mesmo título, publicado na Revista Brotéria, Maio-Junho de 2009.
26.06.09

Anunciação

 

 

 

 

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