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Para uma ética partilhada

«Para uma ética partilhada» é um dos novos títulos da editora Pedra Angular. O seu autor, Enzo Bianchi, fundou em 1965 a Comunidade Monástica de Bose, precisamente no dia em que se encerrava o Concílio Vaticano II (8 de Dezembro). Autor de textos sobre a espiritualidade das tradições cristãs, mantém um diálogo permanente e exigente com o mundo contemporâneo.

Os quatro capítulos da obra abordam a “Presença da Igreja no espaço público”, “Uma linguagem humilde para narrar a fé”, “O peso das palavras” e “A ética e a ciência à luz da fé”.

 

O cristianismo precisa de testemunhas, não de depoimentos

Por vezes, surge o afã em encontrar uma certa coerência em atitudes e comportamentos difundidos nos nossos dias: uma sociedade agora secularizada, definida por alguns como pós-cristã, não só é atravessada pelo recurso a uma nebulosa de espiritualidade envolvente, mas parece inflamar-se por acontecimentos de conotação religiosa, ou até confessional, de forte impacto identitário. Que uma actriz famosa se case na Igreja, afirmando ter reencontrado o catolicismo, ou que o realizador de gostos truculentos produza um filme de hiper-realismo sangrento sobre as últimas horas da vida de Jesus, ou ainda que o romancista de sucesso envolva num thriller barrento o mistério da existência humana do rabi de Nazaré, reconhecido como Senhor pelos seus discípulos, parece que o fascínio do religioso - por alguns apressadamente definido como «a vingança de Deus» - seduz de modo cada vez mais intenso uma sociedade cansada e desencantada, em busca de valores certos, cuja força se mede sobretudo pela intensidade das emoções que suscitam, confundindo o que é impressionante com aquilo que é importante.

Neste contexto será, pois, ainda possível a um crente no Deus revelado por Jesus Cristo narrar a sua fé, dar razão a quem lhe pede contas da esperança que o habita, como o apóstolo Pedro convidava os seus contemporâneos a fazer na diáspora pagã do seu tempo? Que poderá, hoje, um cristão dizer sobre a presença de Deus na sua vida? Estará condenado à alternativa entre o silêncio e o recurso ao milagroso para refutar hipóteses desprovidas de qualquer fundamento, não só científico, mas também simplesmente racional? Será que o quotidiano de uma existência cristã, a fiel perseverança num caminho de constante conversão às exigências evangélicas, se tornou verdadeiramente mercadoria, nem sequer já compra­da num supermercado do religioso, no qual se impõe quem tem o mote mais sedutor ou o depoimento mais certificado?

Não, creio que é ainda possível encontrar palavras e gestos para articular uma linguagem cristã compreensível aos homens e às mulheres de hoje, capaz de os reunir no coração da sua vivência ordinária: é ainda possível dar conta de um vínculo vital com uma presença invisível, que os crentes chamam Deus. Sem dúvida, para tal revela-se doravante infrutífera, se é que não justamente impraticável, a via da exposição da doutrina e da demonstração dos dogmas; podemos, aliás, interrogar-nos se alguma vez a transmissão da fé passou apenas pela exposição de elaborações teológicas. Estas alimentaram, sem dúvida, o pensar e o agir, forneceram um precioso património de conhecimentos, permitiram «dar um nome» e uma articulação a movimentos do espírito, mas o conhecimento pessoal do Senhor Jesus, a adesão na liberdade e por amor à sua vida, mais do que ao seu ensinamento, passou sempre de pessoa para pessoa, de pais para filhos, apesar de todo o tipo de infidelidades e contradições, pela autenticidade e pela intensidade de uma vida decorrida, dia após dia, no cansativo, embora alegre, permanecer unido, «atado» - tal é o significado etimológico do termo «fé» em hebraico - a um Deus apreendido como Outro, embora dele se seja imagem, um Deus colocado longe, embora experimentado como próximo, um Deus sobretudo narrado, explicado por Jesus Cristo.

Sim, é num espaço de grande liberdade e, ao mesmo tempo, de gratuitidade que a fé em Deus se transmite: o ser humano, de facto, pode viver acreditando em Deus, como também pode viver sem esta fé, não há constrição alguma em ter de acreditar em Deus porque Deus não é o resultado de uma necessidade, não é ananké, «destino». Talvez se afigure escandaloso também aos ouvidos de muitos ateus devotos que hoje pontificam, mas não há nenhuma necessidade mundana de Deus, nenhuma possibilidade de teísmo utilitário como, por vezes, gostaria de fazer crer uma sociedade carecida de ideais. O homem pode ser humanamente feliz sem crer em Deus, tal como o pode ser um crente: não é a fé em Deus que determina a felicidade ou a infelicidade de um ser humano. Aliás, já os rabinos tinham sagazmente concluído que Deus criou uma criatura capaz de lhe dizer: «tu não existes, tu não me criaste». O ser humano é, pois, capax dei como é também «capaz» de ateísmo. E nem sequer a fé em Deus é a única instância capaz de refrear a decadência moral, como por vezes dão a entender, não sem arrogância, os que afirmam que «se Deus não existe, reina a barbárie»: refinadíssimas culturas e religiões «sem Deus» - pense-se no budismo ­não foram menos eficazes do que a cristandade em esconjurar ou em defender orientações e comportamentos mortíferos. Na verdade, segundo a grande tradição cristã, embora o homem não reconheça Deus e não seja crente, permanece sempre à sua imagem: pode negar a sua semelhança com Deus, mas a imagem é como um carácter impresso, de uma vez por todas, em cada ser humano.

Mas então, porque crer? Crê-se, adere-se ao Senhor, porque na busca de Deus, do bem, da felicidade, se aceita o dom da fé: esta é, de facto, dom e «não é de todos», como recorda o apóstolo Paulo. Há homens que acreditam e homens que, de algum modo, não «podem» acreditar, não por predestinação divina, mas porque não conseguem discernir e acolher a fé: esta permanece um acto de liberdade. Mas, então, que traz a fé a quem crê? Diga-se sem reticências: traz a esperança da vida mais forte que a morte, do amor mais forte que o ódio, de uma vida além desta vida. Esta é a especificidade do cristianismo: a fé na ressurreição, a resposta à pergunta que cada homem se faz: «que posso esperar?»

Penso, de algum modo, que a nossa reflexão ganharia em clareza, se não nos prendêssemos à questão sobre o «porquê», mas indagássemos também o «para quê», o espaço da finalidade. O crente, de facto, não deveria levantar apenas o problema dos motivos do seu crer - com o risco de reduzir a pergunta a uma questão de cálculo de custos e benefícios - e nem sequer das «raízes», mas também dos frutos, do saber que dele fez, que dele faz em cada dia da sua fé, que «sinal» põe de uma realidade invisível que os outros homens possam perceber só através de testemunhos visíveis e «credíveis», autorizados porque autênticos. De bem pouco servem, efectivamente, proclamações solenes de convicções abstractas, se estas não souberem penetrar numa vivência humaníssima que dê testemunho da esperança na vida mais forte que a morte. Não se esqueça que a fé cristã nasceu e se desenvolveu através do testemunho de simples homens e mulheres, que tomaram sobre si o jugo leve de uma vida conforme à revelada por Jesus como a vida humana de acordo com o desígnio de Deus, uma vida rica de sentido e de amor, uma vida habitada pela solicitude para com o outro, uma vida autenticamente humanizante.

Sem dúvida, nem sequer o crente está imune à dúvida, à tentação - in primis à tentação da idolatria, do substituir à alteridade a obra das suas mãos, do negar o outro para impor o seu ego; também o crente conhece o risco da incredulidade como pouca fé, como não escuta da vontade de Deus, como treva do não sentido ... Mas justamente esta sua experiência de contradição torna-o capaz de escutar as dificuldades do outro, de captar as perplexidades de quem não partilha a sua fé, de dizer uma palavra sincera que não mergulha a sua autenticidade num dogma, mas numa experiência, o torna capaz de dialogar na diversidade e no respeito das identidades singulares. Numa palavra, de ser testemunha daquele Jesus de Nazaré que «narrou Deus» aos homens, tornando visível o invisível. Porque, hoje como sempre, os cristãos e todos os que para eles olham com simpatia ou com respeito não têm necessidade de depoimentos, mais de testemunhas.

 

Enzo Bianchi

In Para uma ética partilhada, ed. Pedra Angular
© SNPC | 09.09.09

Capa

Para uma ética partilhada

Autor
Enzo Bianchi

Editora
Pedra Angular

Páginas
108

ISBN
978-989-96145-2-9





















































 

 

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